As relações internacionais costumam ser definidas como um jogo político em que não há amigos ou inimigos, apenas interesses. A situação global em 2024 mostra que a regra não está sendo seguida à risca por muitos Estados importantes, que enfrentam dificuldades em suas políticas externas por conta de "amizades" problemáticas. Países como Brasil, Estados Unidos e China mergulham em dilemas sem saída fácil por conta de relações que parecem não ter tanto a ver com seus interesses reais.
Frequentemente atribuída ao americano Henry Kissinger, a declaração da impessoalidade e pragmatismo das relações entre Estados tem um registro histórico em discurso de Henry Temple, que viria a se tornar premiê britânico, no Parlamento em 1848. "Não temos aliados eternos nem inimigos perpétuos. Nossos interesses são eternos e perpétuos, e é nosso dever segui-los", disse.
É difícil ver tamanho pragmatismo no posicionamento atual do Brasil em relação à crise na Venezuela, dos EUA sobre a guerra de Israel na Faixa de Gaza e da China ao tratar da guerra russa na Ucrânia. Nenhum dos três casos parece refletir os interesses dos países, mas os governos da vez estão presos em situações complexas por conta do que figura como uma amizade entre os países — ou inimizade com outros atores.
A questão da Venezuela, na verdade, historicamente carece de pragmatismo por parte do Brasil por todos os lados da atual polarização. Durante o governo de Jair Bolsonaro, de forma inversa, o país se comportou como se o regime chavista fosse inimigo e rompeu as relações diplomáticas, o que também não refletia os interesses do Estado.
Como indicado antes, entretanto, esta não é uma questão unicamente brasileira, nem depende exclusivamente de amizades pessoais entre líderes políticos. Os casos dos EUA e da China refletem situação parecida e têm um risco de gerar repercussões ainda maiores na política global.
Às vésperas de uma eleição presidencial muito disputada, o governo de Joe Biden enfrenta o dilema de continuar apoiando Israel na guerra contra o Hamas na Faixa de Gaza e em meio à escalada da violência no Oriente Médio. A comunidade internacional tem se colocado de forma cada vez mais crítica em relação ao governo de Binyamin Netanyahu, enquanto os EUA continuam sendo seu principal fiador no resto do mundo.
O risco de uma guerra regional tem se ampliado com a tensão crescente entre o governo de Tel Aviv, o Líbano e o Irã, e os Estados Unidos têm tido dificuldade em controlar os movimentos israelenses enquanto parecem se sentir forçados a defender a histórica amizade com Israel.
O caso da China talvez seja menos evidente, já que Pequim costuma se projetar internacionalmente com um discurso que pretende fugir de ideologias. Mas a declaração de aliança "sem limites" entre Pequim e Moscou durante a guerra na Ucrânia mergulhou o governo chinês em um dilema parecido: o país se recusa a denunciar a agressão russa enquanto os efeitos do conflito na economia global vão contra muitos dos seus interesses econômicos.
A contaminação ideológica nesses dois casos também pode ser percebida como guiada por inimizades. Além da proximidade histórica, os EUA continuam ligados a Israel por conta do papel que o país tem na região ao lidar com países vistos como rivais, como o Irã. No caso chinês, o apoio à Rússia pode ser interpretado como uma aliança que visa opor os dois países ao Ocidente e aos EUA, rivais no tabuleiro geopolítico global.
Em todas as instâncias, o que se vê é um comportamento de política externa que deveria ser pautado pelo pragmatismo e pelos interesses do país como um todo, mas que acaba sendo guiado por interpretações subjetivas de quem é amigo ou inimigo. Para evitar este tipo de problema, os países precisam tentar adotar a máxima de Temple, esquecer laços afetivos e pensar no que é mais importante para seu próprio país.