O México faz uso sistemático de violência sexual e estupro contra mulheres presas e suspeitas de cometer crimes no país, denuncia a Anistia Internacional em relatório divulgado nesta terça-feira.
Segundo a ONG de direitos humanos, as sessões de tortura visam obter confissões das mulheres e são praticadas por agentes do Estado, policiais ou militares mexicanos.
A BBC Brasil pediu comentários sobre as denúncias do relatório à Procuradoria Geral da República do México, órgão do Executivo que investiga crimes federais e responde pelo Ministério Pùblico, mas não havia obtido resposta até a publicação desta reportagem.
Durante oito meses, a Anistia Internacional ouviu cem mulheres detidas em prisões federais mexicanas. Os relatos descrevem rotinas de assédio e abuso durante a detenção por policiais (municipais, estaduais ou federais), membros do Exército e da Marinha.
Todas disseram ter sofrido algum tipo de assédio sexual ou abuso psicológico, incluindo ameaças e insultos de cunho sexista.
Das 100 entrevistadas, 72 mencionaram ter sofrido abuso sexual (foram tocadas ou agredidas em suas partes íntimas) no momento da prisão ou nas horas posteriores e 33 disseram ter sido estupradas.
"Fortes golpes no estômago, na cabeça e nos ouvidos, ameaças, semiasfixia, descargas elétricas nos genitais, manuseio dos seios e beliscões nos mamilos, penetração com objetos, dedos, armas de fogo ou o pênis. Essas são só algumas das formas de violência inflingidas às mulheres", diz a Anistia no relatório "Sobreviver à morte - tortura de mulheres por policiais e Forças Armadas no México".
Na investigação para o atual relatório, concluída em abril de 2016, a Anistia recorreu a entrevistas pessoais e questionários por escrito, além processos em 19 Estados. Ouviu integrantes de órgãos de segurança, sistema judicial, advogados, defensores e organizações civis.
Tráfico de drogas
A Anistia Internacional associa o problema da tortura de mulheres em presídios no México de forma indireta ao narcotráfico e ao crime organizado.
Cartéis cooptam mulheres de regiões mais vulneráveis para tarefas básicas e mais perigosas, pois elas podem ser facilmente "descartadas" depois, sem prejuízo para a cadeia criminosa.
Mulheres representam cerca de 5% da população carcerária mexicana, e 7% dos detentos de unidades federais, somando 3.285 presas. A maioria está na prisão pela primeira vez, e quase sempre por crime de drogas.
Outro ponto é que o narcotráfico e o crime organizado em geral são delitos federais, e detenções associadas a essas investigações são feitas com participação de agentes federais, como Polícia Federal, Exército e Marinha.
Tais autoridades, diz a Anistia, percebem as mulheres como elo frágil da cadeia criminosa, e a violência sexual surge como "técnica" de confissão e delação.
Mulheres jovens e de baixo nível socioeducacional, muitas delas mães solteiras, são as que correm maior risco de serem detidas e se tornarem alvo desse tipo de violência sexual.
Relatos
Algumas mulheres entrevistadas para o relatório só falaram com a ONG sob condição de anonimato.
Outras, como Yecenia Armenta Graciano, se identificaram e se deixaram fotografar. Ela contou que foi detida, asfixiada, pendurada de cabeça para baixo e violada sexualmente.
"Era como morrer", disse Yecenia, que narrou à Anistia ter sido forçada a assinar uma confissão de envolvimento num assassinato.
Meses depois, o especialista médico que a examinou na Procuradoria concluiu que ela não tinha sido torturada. O laudo foi contestado por examinadores independentes, que avaliaram o caso com base no Protocolo de Istambul, manual de regras da ONU para investigação da tortura. Yecenia permanece presa.
Verónica Razo foi detida em 2011 e levada a um galpão da Polícia Federal. Foi espancada, submetida a asfixia e choques elétricos e seguidamente estuprada.
Assinou então uma confissão de participação num sequestro. Denunciou a tortura, mas a investigação não avançou. Verónica também continua presa, aguardando julgamento.
Restrições à investigação
A Anistia Internacional critica o que apontou como colaboração reduzida de algumas autoridades mexicanas na investigação para o relatório. Diz, por exemplo, que a Secretaria de Governo impediu o acesso a um grande número de detentas e até barrou a entrada da ONG em um centro penitenciário.
Afirma ainda que representantes do Exército e da Marinha negaram pedidos de uma reunião para tratar do assunto.
O Exército informou à ONG que nenhum soldado foi suspenso do serviço por violação ou abuso sexual de 2010 a 2015. No mesmo período, quatro integrantes da Marinha foram suspensos, e um marinheiro condenado à prisão por abusos sexuais foi afastado temporariamente e reincorporado após cumprir pena.
Erika Guevara-Rosas, diretora da Anistia Internacional para as Américas, diz que a falta de investigações adequadas, sem punição dos responsáveis, transmite à Justiça "a perigosa mensagem de que violar mulheres ou utilizar outras formas de violência sexual para obter confissões é admissível".
Segundo ela, as autoridades mexicanas parecem decididas a manter o assunto oculto.
O relatório cobra medidas urgentes do governo mexicano para combater a violência sexual e a tortura de mulheres presas.
Diz que exames médicos inadequados e outros problemas na documentação de casos contribuem para a impunidade, dificultando eventuais reparações. Menciona um projeto de lei em discussão no Congresso mexicano que propõe a anulação de provas obtidas sob tortura.
Em 2014, a Anistia Internacional fez uma pesquisa com 21 mil pessoas em todo o mundo para saber se os cidadãos temiam por sua segurança ao serem detidos pelas autoridades de seu país. O México teve o segundo maior índice: 64% dos participantes responderam temer a tortura por parte de autoridades.
Mas quem ficou em primeiro lugar nesse índice foi o Brasil: 80% dos entrevistados disseram que não estariam seguros ao serem detidos - quase o dobro da média mundial, de 44%.