República mais antiga do mundo vai abolir prisão por aborto

A despenalização do aborto recebeu um apoio clamoroso, com mais de 77% dos votos, colocando fim a um dos maiores tabus do pequeno Estado de San Marino, cujo território do tamanho da ilha de Manhattan está encravado no nordeste da Itália

29 set 2021 - 08h45
(atualizado às 08h49)
Foto de arquivo de mulher em clínica de aborto
Foto de arquivo de mulher em clínica de aborto
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

A terra da liberdade, como bradava um orgulhoso letreiro de boas-vindas na Sereníssima República de San Marino, conviveu por muitos anos com uma grande contradição. A república mais velha do planeta era um dos poucos países da Europa a ainda criminalizar o aborto com a prisão. A pena para as mulheres ou quem mais ajudasse a interromper a gravidez poderia chegar a três anos.

No domingo (26/9), o sim — pela despenalização do aborto — recebeu um apoio clamoroso, com mais de 77% dos votos, o que põe fim a um dos maiores tabus do pequeno Estado, cujo território (habitado por 33 mil pessoas) do tamanho da ilha de Manhattan (Nova York) está encravado no nordeste da Itália, seu único vizinho.

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Agora, uma nova legislação deve ser aprovada pelo Parlamento em até seis meses. Segundo os termos da consulta popular, o aborto será permitido até a décima segunda semana de gestação. Em caso de malformação do feto ou se ele coloca em risco a saúde da mãe, o prazo para interromper a gravidez pode ser maior.

"Nós chegamos sempre depois nesse tema dos direitos das mulheres. É um problema histórico, que foi sendo empurrado ao longo de décadas", afirmou à BBC Brasil Karen Pruccoli, uma empresária local e presidente da UDS, sigla em italiano da União das Mulheres Samarinenses, associação que promoveu o debate nas últimas semanas.

A lei em vigor remonta a uma outra, editada em 1865, e estabelece ainda uma pena mais leve para as mulheres que abortam por "motivo de honra". Ou seja, se o filho fosse ilegítimo, fruto de uma relação extraconjugal, haveria uma redução da pena. Mais um exemplo escandaloso, segundo as mulheres samarinenses, de uma legislação de "outro mundo" vigente num país no coração da Europa.

San Marino era um dos 4 países da Europa que previam essa pena para mulheres que faziam aborto, ao lado de Andorra, Malta e Vaticano
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Em San Marino, contudo, não se conhece nenhuma mulher presa por abortar. Como na Itália a prática é despenalizada há mais de 40 anos, casais ou mulheres que precisam recorrer à prática quase sempre se deslocam para o território italiano.

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O resultado do referendo — votado por 41% dos eleitores inscritos, segundo dados oficiais — coloca o orgulhoso país de raízes republicanas numa posição parecida com outros países da Europa. Agora, apenas três Estados europeus continuam prevendo a prisão em seu ordenamento jurídico para quem interromper a gravidez: Andorra, Malta e a Cidade do Vaticano (Estado-sede da Igreja Católica).

Atrasada

Em comparação com seu único vizinho, a Itália, ainda hoje seu principal espelho, San Marino — que não faz parte da União Europeia — sempre chegou depois na questão dos direitos das mulheres. Enquanto as italianas puderam votar a partir de 1946, no pequeno Estado elas só foram às urnas em 1964. O divórcio só se tornou uma realidade legal para as samarinenses em 1986, dezesseis anos depois de entrar em vigor na Itália.

"É uma questão de mentalidade: não estamos no mesmo nível dos italianos. Copiamos deles as coisas erradas", diz o historiador Verter Casali, especializado na história de San Marino.

O atraso da sereníssima república era evidente em outros aspectos. Por exemplo: as mulheres de San Marino que cassassem com um estrangeiro automaticamente perdiam a cidadania e os demais direitos, como o de herdar terras ou imóveis. Eram simbolicamente expatriadas por causa de um matrimônio. Os homens, ao contrário, não eram submetidos ao mesmo princípio: eles podiam se casar com as estrangeiras e mantinham todos os direitos.

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Em 1982, houve um referendo nacional sobre o assunto, mas a maioria da população votou pela manutenção da legislação. Só dois anos depois, por pressões da Itália e da Europa, San Marino alterou a lei.

"Era como se o Estado tivesse a propriedade das mulheres, uma coisa meio tribal. Naquela época, a mudança veio de fora. Agora, sobre o direito de as mulheres interromperem a gravidez, a mudança veio de dentro. É impossível desassociar um referendo do outro", diz Valentina Rossi, professora de história e filosofia e também integrante da UDS.

"Os países pequenos são tradicionalmente conservadores, são mais resistentes à mudança. Somos vistos como a terra da liberdade, mas temos uma liberdade relativa".

Catolicismo conservador

Independente do Império Romano no ano de 301 D.C., a Sereníssima República de San Marino (instituída com tal em 1291) virou uma terra celebrada pelos amantes da liberdade como o francês Napoleão Bonaparte, o americano Abraham Lincoln e o italiano Giuseppe Garibaldi.

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Mas, como esteve por muito tempo encravado num território que outrora era um Estado Pontifício, comandado pela Igreja Católica, a religião deixou marcas profundas.

"O catolicismo conservador ainda tem muita influência aqui", afirma Verter Casali.

A religião explica, segundo Karen Pruccoli, a influência da Democracia Cristã — partido criado nos anos 1920 e ainda hoje sob orientação católica — na cena política local.

Cartazes pelo voto 'sim', a favor do fim da pena para mulheres, tomaram as ruas de San Marino
Foto: Reuters / BBC News Brasil

O debate sobre o aborto em San Marino começou em 2003, quando uma deputada apresentou um projeto de lei que descriminalizava a prática, mas o tema nunca foi analisado no Parlamento. As forças políticas tradicionais bloquearam o assunto.

"Três de cada quatro eleitores do país votaram pelo sim. É uma clara resposta à inércia da classe política ao longo de décadas", completa Pruccoli.

Presente nos debates pelos direitos das mulheres em San Marino entre o início dos anos 1970 e o final dos 80, a UDS foi ressuscitada há dois anos exatamente para promover o debate sobre a igualdade de gênero. Foram as mulheres da UDS que recolheram as assinaturas necessárias para o referendo — a Constituição prevê pelo menos mil assinaturas e elas conseguiram mais de três mil.

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San Marino tem desde 2018 uma lei que reconhece a união civil de pessoas do mesmo sexo.

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