Os Estados Unidos vivem um ressurgimento dos casos de coronavírus, na contramão da expectativa de que a curva seguisse uma tendência de baixa, após o pico alcançado em abril.
A situação é tão grave que no último dia 25, o país atingiu seu recorde de diagnósticos de covid-19 contabilizados em 24 horas.
Foram 41,1mil, número superior aos daqueles dias de superlotação de hospitais e abertura em massa de covas em cemitérios de Nova York.
Com o maior número de casos e mortes pela pandemia no mundo - 2,4 milhões e 125 mil respectivamente -, os americanos enfrentam ainda sua primeira onda de infecções.
Ao contrário de outros países, como Itália, Alemanha ou Bélgica, em que a tendência de mortalidade se manteve em queda após atingir o topo, os Estados Unidos chegaram a um platô com leve viés de baixa até que, na última semana, a tendência se inverteu por completo e a curva voltou a apontar de maneira íngrime para cima.
A alta é tão significativa que, após quase dois meses, a Casa Branca voltou, nesta sexta-feira, dia 26, a fazer uma coletiva de imprensa exclusivamente para tratar da epidemia.
Mas, ao contrário do que acontecia em março e abril, quando Trump assumiu o papel de apresentador de um "talk-show" de funcionários da administração para expor as ações de seu governo em prol da saúde dos americanos, dessa vez Trump se manteve longe do púlpito.
No lugar do presidente, o epidemiologista Anthony Fauci, líder da força-tarefa americana contra o coronavírus, e o vice-presidente Mike Pence assumiram a responsabilidade de falar à nação sobre o problema, em tons opostos.
Fauci tentava soar o alarme de que o uso de máscara e o distanciamento social são essenciais enquanto não há vacina contra a doença e dizia que "se não extinguirmos esse novo surto, mais cedo ou mais tarde, mesmo aqueles (estados) que estão indo bem estarão vulneráveis à pandemia". Já Pence fez um autoelogio à administração Trump ao dizer: "diminuímos a transmissão, achatamos a curva e salvamos vidas".
E foi mais longe ao defender, por duas vezes, comícios eleitorais até mesmo em locais fechados.
No último fim de semana, Trump retomou a campanha de reeleição com um evento em um ginásio que poderia acomodar 19 mil pessoas.
Ele ignorou as críticas por promover o ato em um ambiente fechado em Tulsa, no estado de Oklahoma, um dos que registrou recordes nos casos de coronavírus nos últimos dias.
O comício no entanto, acabou sabotado por fãs de Tiktok e do ritmo kpop, que se inscreveram no ato mas não compareceram. Apenas em torno de 6 mil pessoas apareceram para apoiar Trump.
A doença no celeiro republicano
A contradição entre as duas autoridades - uma de saúde pública e a outra política - se explica no contexto: a pouco mais de 4 meses da tentativa de reeleição de Trump, o ressurgimento de casos de coronavírus se concentra em 12 estados, dez deles governados por republicanos e cujo eleitorado em 2016 votou para eleger Donald Trump.
"O coronavírus deixou de ser um problema de estados azuis e passou a ser um problema de estados vermelhos", diz o analista político David Livingston, da consultoria Eurasia Group, em referência ao fato de que o início da pandemia atingiu majoritariamente áreas democratas (cujo partido adota cor azul), como Massachussets, Nova York e Nova Jersey.
Agora, enfrentam altas: Texas, Flórida, Arizona, Alabama, Carolina do Sul, Idaho, Missouri, Mississipi, Wyoming e Oklahoma. Do lado democrata, há surtos na Califórnia e em Nevada.
O efeito colateral do discurso
A concentração dos casos em áreas republicanas não é uma coincidência.
Trump relutou em recomendar a quarentena aos americanos e chegou a ir ao Twitter ainda em março para dizer: "Não podemos deixar que a cura seja pior que o próprio problema".
Enquadrado pela equipe de saúde pública, apoiou o distanciamento social até que, em meados de abril, quando a pandemia mal dava sinais de arrefecer, ele passou a exortar os governadores dos 50 estados americanos a reabrir suas economias.
"Os americanos querem a América aberta", disse Trump, no dia 17 de abril. "Estamos começando nossa vida novamente, estamos ativando nossa economia novamente de uma maneira segura, estruturada e muito responsável."
Ele decidiu ainda apoiar protestos contra quarentenas impostas pelos governadores. "LIBERE MICHIGAN", tuitou Trump, dias antes que manifestantes armados até com fuzis invadissem a Assembleia Legislativa de Michigan exigindo o fim do distanciamento social.
A pressão de Trump tem explicação óbvia: a economia americana, que antes da epidemia tinha crescimento estável na casa dos 2% e chegara a níveis de pleno emprego, mergulhou em uma recessão que jogou a taxa de desemprego em quase 15% em apenas três meses.
Tudo isso, em ano eleitoral, acabou com o discurso de campanha que o republicano imaginava adotar.
"Restou a ele se vender como o presidente que capitaneou o retorno da economia americana. Foi nisso que ele apostou", afirma Livingston.
O chamado de Trump foi mais eloquente aos governadores do partido do presidente. Na primeira semana de maio, dos 26 estados governados por republicanos, 20 já tinham relaxado medidas de distanciamento. Entre os 24 sob comando democrata, apenas seis seguiram o mesmo caminho.
"O repique da pandemia está ao menos parcialmente relacionado com uma reabertura apressada demais da economia", afirmou o epidemiologista Arnold Monto, especialista em saúde pública da Universidade de Michigan.
Nos últimos dois dias, Texas, Flórida e Arizona já anunciaram que diminuirão o ritmo da reabertura. Bares, por exemplo, seguirão fechados por tempo indeterminado.
Outro fator importante é o comportamento desse público em relação ao vírus. De acordo com Monto, como boa parte desses estados só tinha visto o potencial destruidor da doença pelas imagens de TV e internet, pode ter havido uma atitude mais relaxada da população em relação a precauções.
"Contribuem pra isso as falhas no discurso da liderança. Se o seu líder político te fala para usar máscaras mas ele mesmo não as usa, você se sentirá menos impelido a usar", afirma Monto, em uma referência ao fato de que Trump se recusa a usar proteção no rosto em eventos públicos.
Candidatura em risco
Acossado pela explosão de casos, Trump propôs em mais de uma ocasião nos últimos sete dias que os governos fizessem menos testes como forma de conter a alta no número de casos.
De acordo com Monto, é verdade que há uma maior testagem agora do que se fazia em março, quando kits para exame de covid-19 faltaram em todo o país por uma falha de produção do Centro de Prevenção e Controle de Doenças dos Estados Unidos (CDC).
"Isso pode explicar em parte a alta. Mas há um limite. E deixar de testar não adianta, porque não se pode esconder cadáveres", afirma o epidemiologista.
A maior vitimização pela doença de seu próprio eleitorado ameaça retirar de Trump parte de seus votos e arrefecer o entusiasmo de sua base eleitoral, conhecida por ser aguerrida e assídua nas urnas.
A popularidade do presidente, abaixo dos 40% - dez pontos percentuais a menos do que há dois meses - e a esvaziada plateia do comício em Oklahoma são sinais de que isso pode já ter começado a acontecer.
Mas esse não é o único problema. "Ao tentar estimular a reabertura da economia, Trump pode ter criado um problema que na prática impedirá o retorno vigoroso da economia", afirma Livingston.
Ele explica: ao atingir com força Califórnia, Texas e Flórida, a pandemia atinge os Estados que produzem um terço de todo o PIB (Produto Interno Bruto) americano.
No pior cenário, até mesmo um novo pacote de ajuda econômica poderia ser necessário - o governo federal já injetou mais de R$2 trilhões em socorro e estímulo aos produtores americanos.
"Esses estados vão ter que tomar medidas restritivas pra conter o vírus e isso derruba a economia. Se a economia não volta, Trump deixa de ter discurso pra fazer", diz Livingston.
Para o cientista político Michael Cornfield, da Universidade George Washington, a atual condição da campanha de Trump ameaça não apenas sua reeleição, mas também a manutenção do partido republicano como majoritário no Senado Federal.
Nas últimas semanas, correligionários do presidente têm demonstrado preocupação com a situação e pedido mudanças de rumo.
Uma série de pesquisas divulgadas essa semana mostram o democrata Joe Biden em posição confortável. Hoje, ele teria 90% de chance de ser eleito contra Trump, de acordo com o modelo matemático da revista britânica The Economist.
"O presidente tem disseminado um discurso politico que tem potencial letal para os que o compram: ele argumenta que máscaras privam os americanos de sua liberdade, que o vírus foi um ataque chinês à América e que basta parar de testar que o problema desaparece. A escolha que os americanos enfrentarão no dia da eleição, daqui a 130 dias, é cada vez mais entre a fantasia e mistificação dele ou a dura realidade", diz Cornfield.