A tensão entre Jair Bolsonaro e o presidente eleito da Argentina, Alberto Fernández, deve alterar normas do Mercosul, na avaliação de diplomatas e especialistas. A visão mais protecionista de Fernández contrasta com as políticas liberalizantes do governo brasileiro. Diante do alto grau de interdependência econômica, ajustes serão necessários.
Segundo fontes ouvidas pelo Estado, o Brasil descarta a redução imediata da Tarifa Externa Comum (TEC) na próxima reunião do bloco, em dezembro, pouco antes da posse de Fernández. A intenção é que a tarifa cobrada sobre produtos de fora do Mercosul, hoje em 14% em média, fosse reduzida pela metade ao fim de períodos de quatro, seis ou oito anos, dependendo do setor econômico. Agora, o compasso é de espera para ver a direção que toma a Argentina.
Já em relação aos acordos comerciais, a previsão é que as negociações já em curso continuem - estão em andamento tratados com Canadá, Cingapura e Coreia do Sul. A saída do Brasil do Mercosul, segundo fontes do governo, está descartada. Se a Argentina for intransigente, a hipótese mais provável é negociar a flexibilização do bloco, para transformá-lo no que vem sendo chamado de "Mercosul Flex" - e abandonar a ideia de união aduaneira, como é hoje.
Welber Barral, ex-secretário de Comércio Exterior, prevê uma relação fria entre os dois, mas não acredita que Fernández coloque entraves no acordo de livre-comércio com a União Europeia, que criticou em junho. "Era um discurso eleitoral. A Argentina quer o acordo tanto quanto o Brasil. Eles têm interesse em vender produtos agrícolas para a Europa", disse.
Um eventual afastamento, segundo Barral, afetaria produtos brasileiros industrializados, especialmente nos setores automotivos, calçadista e têxtil. "A Argentina é um dos poucos países para o qual temos exportação de industrializados, justamente por conta do Mercosul. Não há outro mercado para o qual o Brasil pode exportar rapidamente produtos industriais."
O presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), José Augusto de Castro, lembra que o comércio entre os dois países caiu muito neste ano com a crise argentina. Segundo ele, Brasil e Argentina já têm "problemas suficientes" e cita as negociações entre EUA e China, que podem obrigar os chineses a comprar mais produtos americanos, afetando exportações argentinas e brasileiras.
"Não adianta os presidentes trocarem farpas. Ideologia é uma atividade abstrata que não aumenta exportações. O que exportamos são bens e serviços."
A tensão também preocupa diplomatas. Juan Pablo Lohle, ex-embaixador argentino no Brasil, diz que nunca viu tanta animosidade entre líderes dos dois países na história recente. "Se Bolsonaro quer abrir o Mercosul, é uma posição respeitável, mas que não deveria ser discutida pela imprensa", afirma.
Recentemente, Bolsonaro sugeriu "afastar" a Argentina do bloco, caso Fernández travasse a abertura comercial. Para Lohle, o desfecho da briga depende do resultado de outras eleições na região. "Precisamos ver o que ocorre no Uruguai, pois pesquisas apontam que a Frente Ampla (esquerda, no poder há 15 anos) pode perder. A tendência seria os uruguaios costurarem essa relação."
Para Jorge Hugo Herrera Vegas, também ex-embaixador no Brasil, declarações atravessadas podem causar transtornos reais. "A relação entre os dois países é de Estado, não de governos. Desde 1983", lembrou.
Ontem, Bolsonaro voltou a criticar Fernández, que pediu a libertação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante discurso em Buenos Aires. "Lamento. Não tenho bola de cristal, mas acho que a Argentina escolheu mal", disse o brasileiro durante visita aos Emirados Árabes. "O primeiro ato do Fernández foi 'Lula livre', dizendo que está preso injustamente. Já disse a que veio."
O que pode conter o duelo é a interdependência econômica. A Argentina é o quarto maior parceiro comercial do Brasil, atrás de China, EUA e UE. "Não há dúvida de que eles não se entendem, mas a realidade dos países se sobrepõe às vontades individuais", disse o ex-embaixador brasileiro na Argentina José Botafogo Gonçalves. "A interdependência é grande."
De acordo com ele, o Mercosul precisa se atualizar por outra razões. "A TEC tem de mudar - e nisso o Paulo Guedes tem razão. Precisamos de novas regras aduaneiras, para passarmos de uma zona de proteção para uma zona de competição."
Para Oliver Stunkel, da Fundação Getúlio Vargas, outro problema é a narrativa liberal do Brasil, que se enfraqueceu com a derrota de Mauricio Macri e a crise no Chile. "Os kirchneristas, a princípio, não querem sair do Mercosul, mas também não pretendem acompanhar a liberalização rápida que o Brasil propõe." / LORENNA RODRIGUES (BRASÍLIA), RODRIGO CAVALHEIRO (BUENOS AIRES), JULIA LINDER (ABU DHABI), LUCIANA DYNIEWICZ, LUIZ RAATZ e CARLA BRIDI