Quando a empresária Zamaswazi Dlamini-Mandela nasceu, em 1979, fazia 17 anos que seu avô estava preso, cumprindo pena perpétua na prisão de Robben Island, na África do Sul.
Desde criança ela notava, em especial, o sofrimento que a ausência de Nelson Mandela, um dos mais famosos líderes políticos do mundo, provocava na vida doméstica de sua família.
Sua mãe, Zenani Mandela, tinha apenas 2 anos de idade quando o pai saiu de casa pela primeira vez e nunca mais voltou a morar com a filha.
Foi ainda pior nos períodos em que, por diversas vezes, a avó de Zamaswazi, Winnie Mandela, também esteve na prisão durante o regime do apartheid, que segregava os negros na sociedade e vigorou plenamente até 1994, quando Mandela foi eleito presidente da África do Sul.
"Eu sempre digo que as pessoas que sofreram mais foram minha vó, minha mãe e minha tia, que estavam sem pais, sem dinheiro, sem apoio da comunidade. Quando minha vó estava presa, minha mãe e minha tia ficavam órfãs, sem ninguém para cuidar delas. E elas eram apenas crianças", diz a neta de Mandela em entrevista à BBC News Brasil.
Em maio de 1969, Winnie foi presa em sua casa em Soweto na frente das duas filhas e passou 14 meses em prisão solitária, o que ela definiu como uma "tortuosa agonia mental".
Nessa época, nem Mandela nem Winnie sabiam quem estava cuidando das crianças, ou em que situação elas estavam vivendo.
"Mais uma vez nossa amada mamãe foi presa e agora ela e o papai estão na cadeia. [...]", contava Mandela, em carta às filhas escrita em 3 de junho de 1969, quando cumpria sua pena perpétua em uma pequena cela na prisão de Robben Island, então aos 51 anos de idade.
"Por muito tempo talvez vocês vivam como órfãs, sem seu lar e sem seus pais, sem o amor natural, o afeto e a proteção que a mamãe costumava lhes dar. Agora, vocês não vão ter festas de aniversário, nem de Natal, nem presentes, nem vestidos novos, nem sapatos, nem brinquedos."
Winnie e Nelson Mandela se conheceram em 1957, se casaram em 1958 e se separaram em 1992, dois anos após a saída de Madiba (apelido de Mandela) da prisão, após 27 anos de cárcere.
Mandela se casou com Graça Machel em 1998, em seu aniversário de 80 anos, e morreu em 2013, aos 95 anos. Winnie faleceu em abril deste ano, aos 81.
"Foi particularmente difícil para minha mãe e para minha tia, porque, em muitos momentos, elas não tinham nenhum dos pais por perto, e eram criadas por quem tivesse tempo para ajudar", diz Zamaswazi.
"Na época, ninguém queria ser associado aos Mandela, porque também seriam vítimas constantes de assédio e brutalidade."
As cartas escritas por Mandela na prisão
A visão do próprio Mandela sobre sua dura rotina ao longo de 27 anos na prisão estão no livro Cartas da prisão de Nelson Mandela, da jornalista sul-africana Sahm Venter, lançado este mês no Brasil pela editora Todavia.
O livro que reúne mais de duzentas cartas do líder político e ex-presidente da África do Sul, cujo centenário foi celebrado esta semana, em 18 de julho. A neta de Mandela assina o prefácio do livro.
"Foi uma experiência muito emocional, porque são cartas dos meus avós, dos meus pais, dos meus tios", diz Zamaswazi, que também se dedica a promover o legado dos avós.
Pai de cinco crianças quando foi condenado à prisão perpétua, as cartas eram para Mandela a única maneira de influenciar de alguma maneira a criação de seus filhos, cujas visitas a ele eram proibidas até que eles completassem 16 anos.
O livro traz também cartas a políticos e autoridades prisionais, mas são nas mensagens familiares, na opinião da neta, que se revelam aspectos menos conhecidos da dura experiência do líder na prisão.
Tudo o que Mandela escrevia passava pelo crivo dos censores da prisão, e ele costumava copiar suas cartas em cadernos de capa dura para ajudá-lo a reescrevê-las quando os censores exigiam isso.
Havia outras regras: era proibido aos prisioneiros mencionar outros presos em suas cartas ou escrever sobre condições da prisão. Também era banida qualquer coisa que as autoridades pudessem interpretar como "política".
Em muitos trechos do livro, Mandela se queixa de mensagens que nunca chegaram aos destinatários. Nem mesmo Sahm, jornalista que cobriu o apartheid por mais de 20 anos e levou quase uma década para reunir as cartas de arquivos públicos e pessoais para a coleção, sabe dizer quais cartas chegaram aos seus destinos.
Tristeza pela convivência perdida com o avô
Embora tenha sentido desde sempre a influência e o peso do sobrenome Mandela em sua vida, Zamaswazi diz que uma de suas maiores tristezas é nunca ter conseguido construir uma relação próxima com o avô.
"Meu avô saiu da prisão e virou presidente muito pouco tempo depois. Nos primeiros dez anos em que ele foi solto minha interação com ele era muito pequena", lembra.
Por mais que todos se esforçassem para reunirem-se em encontros com a família, era difícil recuperar as quase três décadas de afastamento forçado.
"Ele não tinha tempo ou sequer a habilidade de se doar a nós como família", lamenta. Só tornou-se mais próxima do avô depois que ele se aposentou da vida pública, em 2004.
"Eu literalmente não tive meu avô, eu nunca tive uma relação profunda e significativa com ele, porque eu nunca o tive, ele não estava lá", afirma, citando que alguns de seus primos chegaram a morar com o avô e se tornaram mais próximos do Madiba.
"Eu não morei com ele para ter isso. Eu tinha que marcar audiências como meu avô, porque ele era tão ocupado!"
Ela diz que a compilação dos relatos respondeu muitas perguntas que costumavam a incomodar na infância. "Como meu avô sobreviveu a 27 anos na cadeia? O que o fez seguir em frente?".
Para Zamaswazi, as cartas lhe deram a oportunidade de entender melhor o avô. "Eu via a situação pelos olhos da minha mãe e da minha vó. Agora, o livro foi a chance de entender a perspectiva do meu avô, de como era para ele. O mais incrível é que quando você lê as cartas tem um insight maior sobre tudo o que ele teve que perdoar quando saiu da prisão. Eu não tinha entendido a profundidade do que ele passou", diz.
O papel de Winnie Mandela na história
Para a neta do casal de líderes políticos, um dos maiores méritos do livro é fazer justiça ao papel de Winnie Mandela na história da África do Sul.
"Esse livro coloca minha avó no lugar correto da história. Muitos tentaram remover minha avó da história desse país. Mas o fato é que ela manteve o nome do meu avô vivo, e que ela foi torturada, brutalizada", diz.
Embora a ex-esposa de Mandela tenha mantido até o fim de sua vida uma larga base de apoio popular, ela foi criticada por apoiar táticas violentas para acabar com o apartheid, mesmo em momentos em que seu marido defendia a reconciliação.
Muitas das cartas de Mandela estão repletas de declarações de amor à então esposa, a quem se dirige por diversos apelidos carinhosos diferentes.
Suas cartas a respeito da prisão dela, em 1969, demonstram sua frustração e angústia por não ter condições de ajudá-la, nem a seus filhos.
Em uma delas, ele recomenda que ela fortaleça o espírito lendo o best-seller de 1952 do psicólogo Norman Vincent Peale, O poder do pensamento positivo, que, nas palavras do ex-presidente, "defende a ideia básica de que o que importa não é tanto a atribulação que a pessoa sofre, mas sua atitude diante dela.
"O homem que diz vou vencer esta enfermidade e viver uma vida feliz já percorreu metade do caminho até a vitória".
Há também muitos trechos elogiosos à esposa, como em uma carta escrita para as filhas, quando Winnie estava presa.
"Logo que fui preso, nossos amigos aqui e no exterior ofereceram a ela (Winnie) bolsas de estudos e sugeriram que ela deixasse o país para estudar no exterior. Acolhi de bom grado essas sugestões, pois sentia que os estudos poderiam afastar a mente dela dos problemas. Discuti o assunto com ela quando veio me visitar na Prisão de Pretória em outubro de 1962. Ela me disse que, embora muito provavelmente viesse a ser detida e encarcerada, como todo político em luta pela liberdade devia esperar, ela mesmo assim ficaria no país e sofreria junto com seu povo. Estão vendo agora como é corajosa a mamãe que nós temos?"
Em outro trecho, Mandela explica às filhas que a esposa abriu mão de muitas coisas para lutar contra a segregação racial.
"A mamãe (Winnie) vem de uma família rica e respeitada. É uma assistente social qualificada e, na época do nosso casamento, em junho de 1958, tinha um emprego bom e confortável no Baragwanath Hospital. Ela estava trabalhando ali quando foi detida pela primeira vez, e no fim de 1958 perdeu o emprego. [...] Desde então a mamãe tem vivido uma vida árdua e precisou tentar manter uma casa sem um salário garantido. No entanto, ela de algum modo conseguiu comprar comida e roupas para vocês, pagar suas mensalidades escolares e o aluguel da casa, e ainda me mandar dinheiro regularmente", afirma Mandela, em relato registrado no livro.
Memórias da infância e descobertas
Zamaswazi descreve a experiência de ler as cartas do avô como um "turbilhão emocional", já que muitos dos episódios relatados se misturam com memórias de sua própria infância e descobertas a respeito de sua mãe.
"O que me tocou em particular, especialmente por eu ser mãe, foi atestar pelas cartas de meu avô o que minha mãe e minha tia Zindzi sofreram quando crianças", diz.
Um exemplo é o depoimento do avô em carta que ele escreveu mãe de Zamaswazi, Zenani Mandela, em 1º de março de 1971, data em que ela completava 12 anos.
"Seu nascimento foi um grande alívio para nós. Apenas três meses antes a mamãe tinha passado quinze dias na cadeia sob circunstâncias que eram perigosas para uma pessoa na condição dela. Não sabíamos quais danos isso poderia ter causado a você e à saúde dela, e ficamos felizes de verdade ao sermos abençoados com uma filha saudável e encantadora", escreve Mandela.
"Você se dá conta de que quase nasceu na prisão? Não são muitas as pessoas que tiveram essa experiência de ter estado na cadeia antes mesmo de nascer. Você tinha só 25 meses de vida quando saí de casa e, embora eu a tenha visto frequentemente desde então até janeiro de 1962, quando deixei o país por um curto período, nunca mais voltamos a morar juntos".
Estudos à noite após horas arrebentando pedras
Outro aspecto interessante revelado no livro é a preocupação de Mandela em persistir em seus estudos no Direito, mesmo encarcerado. Ele já tinha uma autorização para praticar a advocacia, mas desejava muito tornar-se bacharel desde a época em que, livre, frequentava a Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo.
Enquanto estava na Prisão Local de Pretória, em 1962, ele se inscreveu na Universidade de Londres em um curso por correspondência e mantinha o hábito de estudar à noite mesmo após as quase oito horas de trabalho diário em que passava arrebentando pedras com marretas.
"Era um trabalho extenuante, e o fulgor do sol refletido na rocha calcária queimava seus olhos", relata o livro.
Durante três anos, repetidos pedidos de óculos escuros às autoridades prisionais foram recusados; quando a permissão finalmente foi dada, "a visão de muitos dos prisioneiros, incluindo Mandela, tinha sido irreparavelmente danificada".
Em Robben Island, os detentos só tiveram permissão para deixar de fazer trabalho árduo 14 anos depois, em 1978.
"Até então, sua existência na ilha era rigorosa e cruel, aliviada apenas por sua própria atitude, bem como pelas visitas e cartas de familiares", diz o livro sobre as cartas de Mandela.
Muitas de suas cartas às autoridades prisionais revelam a preocupação do Madiba em receber o material correto de estudos nos prazos necessários para se preparar para testes e provas.
Mandela se tornou bacharel em 1989, meses antes de ser libertado da prisão.
O 'golpe cruel' pela morte da mãe e do filho
Os relatos de Mandela apontam dois momentos particularmente difíceis vividos na prisão. Em 1968, morreu a mãe de Mandela, Nosekeni, mas o prisioneiro não pôde participar do funeral.
No ano seguinte, outra tragédia familiar: morreu aos 24 anos em um acidente de carro Madiba Thembekile, o Thembi, seu filho com a primeira esposa, Evelyn Mandela.
"Se não bastasse o fato de que eu não pude vê-lo por pelo menos sessenta meses, não tive a oportunidade nem de lhe propiciar uma cerimônia de casamento nem de enterrá-lo quando chegou a hora fatal", lamenta, em carta a Evelyn.
"Sei mais do que nenhuma outra pessoa viva como esse golpe cruel deve estar sendo devastador para você, pois Thembi era seu primogênito e o segundo filho que você perdeu".
Em texto endereçado à madrasta de Winnie Mandela, ele lamenta a perda da mãe. "Nunca na vida pensei que não teria a possibilidade de enterrar minha mãe. Ao contrário, eu alimentara a esperança de que teria o privilégio de cuidar dela em sua velhice", diz.
A neta de Mandela diz que, hoje, o maior legado que seus avós lhe deixaram foi a liberdade.
"Sou muito grata a eles, pelo que eles sacrificaram. Valorizo muito a minha liberdade e porque posso ser uma mulher nos negócios, ou qualquer coisa que eu escolher. Há tantas pessoas que perderam famílias, e outras que se entregaram. Meus avós foram o rosto da batalha, mas há outros tantos", diz.