Venezuela: as riquezas da região da Guiana que Maduro quer anexar

Desde 1841, Venezuela e Guiana disputam o Essequibo, área rica em recursos minerais e naturais. Em 3 de dezembro, está previsto um novo capítulo da disputa: um referendo na Venezuela.

26 nov 2023 - 06h17
(atualizado às 07h41)
Colagem com imagens do rio Esequibo e bandeiras de Venezuela e Guiana
Colagem com imagens do rio Esequibo e bandeiras de Venezuela e Guiana
Foto: Getty/Daniel Arce / BBC News Brasil

Com uma área superior à de nações como Inglaterra, Cuba ou Grécia, Essequibo é um território repleto de minerais e outros recursos naturais cuja diversidade é uma das maiores do mundo.

Além de sua riqueza e das grandes jazidas de petróleo ali encontradas, o território é conhecido por ter sua soberania disputada pela Venezuela e Guiana desde 1841.

Publicidade

Embora a reivindicação venezuelana tenha persistido ao longo deste tempo, o governo do presidente Nicolás Maduro tem levantado progressivamente a sua voz desde 2015, quando foram descobertos vastos depósitos de petróleo na área.

A Venezuela considera Essequibo, também conhecido como Guayana Esequiba em espanhol, uma "área reivindicada" e geralmente a exibe riscada em seus mapas. Enquanto isso a Guiana, que controla e administra a área, tem seis de suas dez regiões administrativas lá.

Mapa mostra região do Essequibo destacada, entre Guiana, Equador e Brasil
Foto: BBC News Brasil

Mas a Venezuela parece agora determinada a romper a situação.

O governo venezuelano anunciou a realização de um polêmico referendo em 3 de dezembro sobre a região disputada.

Publicidade

Nele, será perguntado aos venezuelanos, entre outras coisas, se apoiam a criação do estado Guayana Esequiba, além de um plano para conceder a cidadania venezuelana aos seus habitantes.

Segundo o governo da Guiana, o referendo representa uma ameaça existencial à integridade territorial do país e pediu ao Tribunal de Haia que o impedisse.

A Venezuela criticou o pedido, argumentando que ele interfere nos seus assuntos internos.

"Nada impedirá a realização do referendo marcado para 3 de dezembro", afirmou ao tribunal a vice-presidente da Venezuela, Delcy Rodríguez, em 15 de novembro.

Linha divisória
Foto: BBC News Brasil

Os marcos de quase dois séculos de disputa

1777 - O Império Espanhol funda a Capitania Geral da Venezuela, subentidade territorial que inclui Essequibo.

Publicidade

1811 - A Venezuela torna-se independente da Espanha e Essequibo passa a fazer parte da nascente república.

1814 - O Reino Unido adquire a Guiana Inglesa, com cerca de 51.700 km², através de um tratado com os Países Baixos que não define a sua fronteira ocidental.

1840 - Londres nomeia o explorador Robert Schomburgk para definir a fronteira. Pouco depois, é inaugurada a Linha Schomburgk, uma rota que ocupava quase 80.000 km² adicionais.

1841 - A disputa começa oficialmente quando a Venezuela denuncia uma incursão do Império Britânico em seu território.

1886 - Uma nova versão da Linha Schomburgk é publicada, reivindicando mais território.

1895 - Os Estados Unidos intervêm sob a Doutrina Monroe após denunciar que a fronteira foi ampliada de "maneira misteriosa" e recomenda que a disputa seja resolvida em arbitragem internacional.

Publicidade

1899 - É emitida a Sentença Arbitral de Paris, uma decisão favorável ao Reino Unido, com a qual o território cai oficialmente sob domínio britânico.

1949 - É tornado público um memorando do advogado norte-americano Severo Mallet-Prevost, parte da defesa da Venezuela na disputa em Paris, no qual ele denuncia que os juízes não foram imparciais. Os posicionamentos de Severo Mallet-Prevost e outros documentos servem para que a Venezuela declare a sentença "nula e sem efeito".

1966 - Três meses antes de conceder a independência à Guiana, o Reino Unido firma com a Venezuela o Acordo de Genebra, o qual reconhece a reivindicação venezuelana e busca encontrar soluções para resolver a disputa.

Linha divisória
Foto: BBC News Brasil

Críticos afirmam que o referendo tem um tom nacionalista em um momento-chave: os preparativos para as eleições presidenciais de 2024 na Venezuela.

Analistas prevêem um apoio massivo às propostas do governo venezuelano, que mobilizará o seu eleitorado num país onde a reivindicação por Essequibo une chavistas e opositores como nenhuma outra questão.

O resultado do referendo, no entanto, não será vinculativo à luz do direito internacional.

Publicidade

Em visita à região no final de outubro, o presidente da Guiana, Irfaan Ali, garantiu que seu país não abrirá mão de um "centímetro" de território.

"Que ninguém cometa um único erro. Essequibo é nosso, cada centímetro quadrado", disse.

A Venezuela programou um referendo em 3 de dezembro para definir os mecanismos que aplicará para defender sua reivindicação ao Essequibo
Foto: Reuters / BBC News Brasil

O geógrafo guianês Temitope Oyedotun, professor da Universidade da Guiana, afirma que o Essequibo é vital para o seu país.

"É um território três vezes maior que a Costa Rica, onde vivem quase 300 mil pessoas", diz à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC).

O Essequibo representa dois terços da superfície da Guiana e abriga quase um terço de sua população.

Para ele, não há disputa.

"Essequibo faz parte da Guiana e não tenho dúvidas disso", acrescenta.

Os governos da Guiana e da Venezuela não responderam a pedidos de posicionamento da BBC.

Publicidade

Tamanha disputa se explica pelo tamanho do território, mas sobretudo pela sua riqueza.

O Escudo das Guianas

O Essequibo cobre cerca de 160.000 km², a maioria deles de selva impenetrável.

"Do ponto de vista geográfico, o Essequibo faz parte do Maciço Guianês, também conhecido como Escudo das Guianas", explica Reybert Carrillo, geógrafo da Universidade de Los Andes, na Venezuela.

Mapa mostra Essequibo, Arco Mineiro do Orinoco e Escudo das Guianas
Foto: BBC News Brasil

"Compartilha características muito semelhantes com estados venezuelanos como Delta Amacuro, Bolívar e Amazonas".

Nestes três estados venezuelanos, que fazem fronteira com a área reivindicada, está o Arco Mineiro do Orinoco, uma área de exploração de mais de 111.800 km² que possui grandes reservas de ouro, cobre, diamante, ferro, bauxite e alumínio, entre outros minerais.

Carrillo destaca que as formações geológicas do Maciço Guianês costumam conter minerais "de alto valor".

Publicidade

No território, existem também vários tepuis — formações montanhosas com topos planos e paredes incomumente verticais. Eles são compostos majoritariamente por arenito e estão entre as estruturas geológicas mais antigas do planeta, com cerca de 2 a 4 bilhões de anos.

O Escudo das Guianas é uma estrutura geológica muito antiga que vai da Colômbia ao Brasil, passando pela Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana Francesa
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Petróleo e gás

As tensões entre a Venezuela e a Guiana aumentaram desde que dezenas de depósitos de petróleo começaram a ser descobertos em 2015 na costa da área disputada.

Até o momento, a multinacional americana ExxonMobil e os seus parceiros fizeram 46 descobertas que elevaram as reservas de petróleo da Guiana para cerca de 11 bilhões de barris, representando cerca de 0,6% do total mundial.

As descobertas inesperadas tornaram a Guiana, um país de 800.000 habitantes, uma das economias que mais crescem no mundo. Seu produto interno bruto (PIB) deverá crescer 25% este ano, depois de ter expandido 57,8% em 2022.

Publicidade

Mas a maior parte das reservas está localizada num bloco de petróleo e gás de 26.000 km² conhecido como Stabroek, ao largo da costa atlântica do país.

Uma parcela importante desse bloco está localizada nas águas da região disputada pela Venezuela.

Segundo dados da consultoria Refinitiv Eikon, a Guiana exportou 338.254 barris por dia durante o primeiro trimestre de 2023, mais que o triplo do que produziu em 2021.

Analistas do site OilPrice afirmam que toda essa produção vem do bloco Stabroek, operado por um consórcio liderado pela ExxonMobil.

A Guiana espera produzir 1,2 milhão de barris por dia até 2027, o que a tornaria um dos maiores produtores de petróleo da América Latina — superado apenas pelo Brasil e pelo México, e à frente dos 750 mil barris por dia que a Venezuela produz atualmente.

Mapa mostrando o Essequibo, países fronteiriços, o Bloco Stabroek e a área de mineração de ouro
Foto: BBC News Brasil

A exploração na área também levou à descoberta de reservas significativas de gás em Stabroek, mas a grande maioria está localizada no sudeste do bloco, perto da fronteira com o Suriname, segundo mapa do Ministério de Recursos Naturais da Guiana.

Publicidade

O Ministro das Finanças do país, Ashni Singh, afirmou em janeiro que as reservas de gás do país estão atualmente estimadas em 17 bilhões de pés cúbicos.

Ouro e outros recursos minerais

No século 19, a disputa entre o Reino Unido e a Venezuela se acirrou quando foi descoberta a existência de ouro na região — e o Reino Unido buscou ampliar ainda mais seu domínio, acrescentando mais de 80.000 km² à sua colônia.

Em 1876, pessoas que falavam inglês já haviam se estabelecido na bacia do rio Cuyuní, que no entanto estava em território venezuelano. Trabalhando para Londres, o explorador Robert Schomburgk acreditava que os ingleses poderiam reivindicar aquela área.

Ali nasceu a mina de ouro de Omai, que se tornaria uma das maiores do Escudo das Guianas e uma das grandes fontes de renda da Guiana.

Mina de ouro em Essequibo
Foto: ESRI Satellite / BBC News Brasil

Quase dois séculos depois, a mina de ouro localizada no território disputado ainda produz riquezas.

Publicidade

No início do ano passado, toneladas de ouro foram detectadas em um poço conhecido como Wenot.

"Essequibo é uma região com muitos recursos minerais. Além do petróleo, há muito ouro", observa o geógrafo Temitope Oyedotun, da Universidade da Guiana.

"Existem também outros recursos minerais como diamantes, bauxita, manganês e urânio."

Importante rede de rios

O pesquisador também destaca os recursos hídricos da região, como os dos rios Cuyuní, Mazaruní, Kuyuwini, Potaro e Rupununi.

Reybert Carrillo afirma que a extensa rede de afluentes do Essequibo é "um dos recursos naturais mais importantes" do território.

"Existem rios como o Potaro, que abriga uma grande variedade de peixes e cachoeiras de até 200 metros. Esse rio também tem grande potencial para gerar energia hidrelétrica", diz o geógrafo da Universidade dos Andes.

Publicidade
Mapa com rios do Essequibo
Foto: BBC News Brasil

No rio Potaro, que deságua no Essequibo e tem 225 km de extensão, existem nove cachoeiras, entre as quais se destacam as Kaieteur e as Tumatumari.

Com queda livre de até 227 metros, as Cataratas Kaieteur são até cinco vezes mais altas que as Cataratas do Niágara, localizadas entre os EUA e o Canadá.

Para Oyedotun, é "uma das cachoeiras mais impressionantes do mundo".

Carrillo acredita que os recursos hídricos de Essequibo podem ser vitais para o futuro.

"Pelo que se projeta com a crise climática e a escassez de água, ter uma rede de rios como a que tem este território poderia ser muito importante", explica.

"Acho que esse será o recurso mais importante por várias décadas."

Publicidade
Vista aérea das Cataratas Kaieteur
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Águas costeiras

O território reivindicado tem quase 300 km de costa.

"A costa e as suas águas permitem consolidar e ampliar uma saída em direção ao Atlântico", afirma Carrillo.

"Ela também proporciona 370 km de zona econômica exclusiva, o que confere jurisdição aduaneira. Isso significa que qualquer navio que passa por ali tem de pagar impostos".

Nas águas costeiras de Essequibo há um 'mar de petróleo'
Foto: Reuters / BBC News Brasil

E foi nessas águas que foi encontrado o "mar de petróleo" responsável por reavivar, em 2015, as tensões entre a Guiana e a Venezuela.

O professor Oyedotun critica que a Venezuela tenha se interessado mais pela reivindicação de Essequibo após a descoberta de petróleo e acredita que o governo venezuelano também está usando a disputa para obter apoio político.

Oyedotun também questiona os itens do referendo previsto para 3 de dezembro.

Publicidade

"Não se pode organizar um referendo perguntando a um povo se ele gostaria de começar a considerar uma região de outro país como sua", argumenta o geógrafo guianês.

"Por que você não pergunta aos cidadãos de Essequibo como e por quem eles gostariam de ser governados?", indaga.

Georgetown insistiu que a organização do referendo faz parte de um "plano sinistro da Venezuela para tomar o território da Guiana".

O ministro da Defesa da Venezuela, Vladimir Padrino, em evento favorável à incorporação do Essequibo
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Para a Guiana, a disputa fronteiriça já foi resolvida há mais de um século com a Sentença Arbitral de Paris de 1899, na qual a Linha Schomburgk foi estabelecida como a fronteira entre os dois territórios.

Mas em 1949, começaram a surgir evidências que denunciavam a cumplicidade entre os delegados britânicos e o jurista Friedrich Martens para decidir contra a Venezuela.

Publicidade

Por essa e outras razões, a Venezuela considera que Essequibo foi tomado de forma ilegítima e ilegal pelo Reino Unido no século 19.

Pouco antes da independência da Guiana do Reino Unido em 1966, Caracas e Londres assinaram o Acordo de Genebra, um tratado ainda em vigor que reconhece a reivindicação da Venezuela e procura encontrar soluções para a disputa.

Caracas adere a esse acordo e rejeita a competência do Tribunal de Haia para definir a questão.

A equipe jurídica da Guiana, que denunciou o referendo perante o tribunal, descreve-o como uma "ameaça existencial" que procura preparar o caminho para a anexação de Essequibo pela Venezuela.

Nenhum dos países cede. Em jogo está um grande território cheio de riquezas.

* Ilustração de Daniel Arce e mapas de Caroline Souza

Publicidade
BBC News Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização escrita da BBC News Brasil.
Curtiu? Fique por dentro das principais notícias através do nosso ZAP
Inscreva-se