Um ex-apresentador do Flow Podcast e um ex-comentarista da Jovem Pan provocaram enorme reação nas redes sociais e acabaram demitidos esta semana ao se envolver em polêmicas relacionadas ao nazismo. Em atos condenados publicamente por entidades judaicas, Bruno Auib, o Monark, defendeu a legalização de um partido nazista no País durante um debate com deputados no podcast; Adrilles Jorge, comentarista da emissora de rádio e TV, fez um gesto associado a uma saudação a Hitler. Diretor do Museu Judaico de São Paulo, Felipe Arruda vê o crescimento do antissemitismo, do preconceito, da violência e da opressão contra grupos identitários e minoritários no mundo. "Não só no Brasil, não só contra judeus", diz.
Arruda argumenta que, em democracias mais fortalecidas, o Estado e as instituições coíbem tais práticas por meio da educação e da defesa dos direitos. "Nós não estamos vivendo nesse lugar. Estamos vivendo em um lugar onde tudo isso está fragilizado", afirma. Ele acredita que o "negacionismo" e o esquecimento dos fatos históricos facilitam a criação de estereótipos e a reprodução da violência. O diretor aponta, ainda, que não existe uma única identidade judaica, e que as formas de manifestação da " judeidade", como chama, não se restringem a apenas uma ideia ou uma religião, mas a um conjunto de expressões, memórias e valores que formam uma cultura complexa.
"Eu quero acreditar que pessoas como esse cidadão (Monark), se tivessem vindo aqui e visto a peça que fala do holocausto e tivessem se sensibilizado e aprendido sobre essa história, teriam menos chance de emitir uma opinião como aquela", diz, ao cobrar a responsabilidade da comunicação pública em coibir mensagens preconceituosas.
Nesta quinta-feira, 10, o Senado Federal fez uma sessão especial para homenagear as vítimas do holocausto. O evento celebrou o Dia Internacional da Lembrança do Holocausto, lembrado em 27 de janeiro.
Confira a entrevista completa de Felipe Arruda:
Entidades judaicas condenaram as atitudes do apresentador Monark, no Flow Podcast, e do comentarista Adrilles Jorge, na Jovem Pan, após o primeiro defender a criação de um partido nazista e o outro realizar gesto associado ao nazismo. Essas demonstrações estão ficando mais recorrentes?
Nós estamos vendo o crescimento do antissemitismo, do preconceito, de violências e opressões no mundo. Não só no Brasil, não só contra judeus. Esse tipo de manifestação, em alguns lugares, tem encontrado espaço. O nazismo não é uma questão dos judeus, é da sociedade, que justamente permitiu que esse movimento florescesse e dominasse o campo social. Esse pensamento de alguma forma pode sempre existir nas sociedades. Mas, justamente por isso, ele precisa ser constantemente, de forma permanente, diária e para sempre combatido. É parte da nossa missão deixar um legado para que as próximas gerações encontrem um campo social onde não haja espaço para isso. Se queremos uma sociedade democrática, menos desigual e mais justa, temos de coibir os espaços onde esses discursos podem nascer e florescer. Em sociedades que passam a permitir esse florescimento, essas coisas acontecem. Nós estamos vivendo um momento político assim, porque esses discursos têm tido mais espaço para acontecer. Porque eles têm sido legitimados por algumas pessoas. Em democracias mais fortalecidas, onde a educação é uma prioridade, onde os direitos são salvaguardados, a justiça funciona melhor, a liderança de Estado daquela sociedade também coíbe essa prática, tudo isso ajuda a não ter espaço para esse tipo de coisa. Nós não estamos vivendo nesse lugar. Estamos vivendo em um lugar onde tudo isso está fragilizado.
Essas manifestações podem ser tomadas como preconceituosas e antissemitas, ou passam também por um desconhecimento ou uma negação da realidade?
Difícil existir uma resposta que vá apontar apenas uma dessas causas. Vivemos em um momento em que ideias que não cabem dentro de um campo democrático estão sendo expressadas por pessoas que realmente acreditam nesses princípios e, por outro lado, tem uma parcela da população que pode reproduzir essas ideias sem ter de fato uma convicção sobre elas, mas porque não passou por um processo de formação, aproximação a determinados fatos históricos e de conscientização sobre essas causas. É difícil dizer em um caso individual, mas, do ponto de vista do fenômeno, as duas coisas existem e as duas coisas devem ser combatidas. Por isso, de um lado, para aqueles que de fato sustentam essas ideias com conhecimento, não podemos permitir como sociedade que isso seja normalizado e que essas ideias sejam expressas e, ao mesmo tempo, temos um compromisso enquanto sociedade (de estimular) que existam espaços de educação, de formação, reflexão, de apresentação dos fatos históricos, de combate aos negacionismos.
Existe a tentativa de se forçar uma suposta homogeneidade da identidade judaica para, então, usá-la com fins políticos nas discussões públicas?
Não só a identidade judaica, mas qualquer identidade não pode ser reduzida e estereotipada. Essa é uma das grandes causas da violência, inclusive. Você entender o outro a partir de uma faceta, quando associo determinados estereótipos e preconceitos a essa identidade. Se o judeu antes tinha aquele estereótipo mais vinculado à religião, ortodoxo, hoje, talvez, o estereótipo seja mais ligado a uma ideia de branquitude, de classe social, mais heterossexual. Uma série de estereótipos colados que não correspondem, necessariamente, à realidade. O museu tenta defender a ideia de que a pluralidade das identidades e das expressões torna a nossa experiência mais rica enquanto sociedade e enquanto indivíduo. Nós deveríamos promover uma ideia de pluralidade não só porque é direito do outro existir, mas porque isso enriquece nossa experiência como seres humanos, como humanidade. Nenhuma cultura é feita só dela mesma, toda cultura é influenciada por outras, é fruto de outras experiências pregressas e influencia outras culturas. Ainda mais em um mundo globalizado onde os hibridismos são constantes. Então, essa negação do outro por existir é uma violência inadmissível que deve ser combatida em todos os campos. Nós queremos extinguir esse tipo de pensamento. E não tem nada a ver com liberdade de expressão. Não deve ser confundida com isso. Esse debate temos de ultrapassar. Dizer quantas vezes for necessário que liberdade de expressão acaba quando fere a existência do outro.
Como coibir esse preconceito e estereótipo?
A educação tem de estar focada em uma ideia de alteridade, reconhecimento e valorização do outro. Isso também passa pelo fortalecimento das instituições, por leis, ações de punição dos órgãos competentes, por uma educação da mídia e controle maior dos veículos sobre os espaços dados a esse discurso. Nesse caso que aconteceu, há uma falta de consciência absoluta da responsabilidade que a comunicação pública tem, porque você influencia o pensamento de muitas pessoas. Isso evidentemente tem uma responsabilidade e deveria ser papel de qualquer veículo de comunicação de massa, como esse podcast, ter um compromisso ético com a construção de uma sociedade mais justa e plural e onde todos tenham espaço. Não existe um lugar único para que isso não exista mais, mas educação, espaços de cultura que apresentem a memória desses acontecimentos e façam refletir sobre o perigo disso acontecer de novo. Então, além de fazer a crítica, a nota de repúdio, qual a nossa contribuição para que isso não aconteça? Eu quero acreditar que pessoas como esse cidadão (Monark), se tivessem vindo aqui e visto a peça que fala do holocausto e tivessem se sensibilizado e aprendido sobre essa história, teriam menos chance de emitir uma opinião como aquela, teriam uma consciência mais formada e teriam tocado a sua humanidade. Muita gente associa por conta do holocausto que (o nazismo) está muito pautado pela questão judaica, mas não é uma questão só dos judeus, é de toda a sociedade.
No museu judaico, a ala sobre o holocausto tem, na entrada, um espaço dedicado às chacinas e episódios de violência que aconteceram também com indígenas e negros no Brasil. Qual a diferença da forma com que o nazismo é encarado no Brasil e em países como a Alemanha? Aqui essa pauta caminha paralela com preconceitos como o racismo?
Nosso compromisso é combater qualquer tipo de intolerância e de preconceito. O preconceito e a intolerância estão muito presentes no nosso país - fomos o último do hemisfério sul a abolir a escravidão, com uma abolição muito mal feita, que não se completou. Passamos por um sistema de opressão na ditadura terrível. Somos um país de democracia ainda muito frágil, em constituição. No museu judaico, existe um foco nas experiências judaicas e a experiência do holocausto é um capítulo superimportante disso, mas, antes de entrar no holocausto, fazemos questão de reforçar que a intolerância é algo que afeta muitos outros grupos identitários e minoritários. Mais do que comparar o holocausto com a escravidão e entrar em um sistema de pesos para essas dores, acreditamos que temos que nos unir com as outras lutas identitárias para poder coibir esse tipo de atitude.
Você sustentou que o museu é um espaço de discussão pública e que ultrapassa a redução da identidade judaica a uma religião. O que isso significa?
O museu tem como missão cultivar as expressões, as histórias, as memórias, os valores da cultura judaica. Isso é feito de várias formas, tanto por meio da apresentação dos ritos, valores, festas, tradições que compõem essa cultura como pela história da presença dessa cultura no Brasil. Também por outras formas de manifestação dessa judeidade, que não é o judaísmo no sentido mais aproximado de religião. Por ser uma cultura milenar, complexa, sempre em transformação, com várias camadas, o museu busca abarcar tudo isso aqui, começando pela pergunta que não tem resposta única: "o que é ser judeu". São infinitas respostas porque essa identidade é múltipla e cambiante. O holocausto é uma parte dessa história, importante, que tem de ser mostrado, e o que o museu tem enquanto papel é criar processos de mediação entre aquilo que está exposto e os repertórios que os próprios públicos trazem. Essas histórias que estão aqui podem nos ajudar a pensar também sobre histórias não judaicas.