Sob o pretexto de proteger a integridade física e psíquica dos policiais, presidente Macron lança lei que criminaliza filmá-los em ação. Além de ser supérfluo, o dispositivo convida ao abuso, opina Luisa von Richthofen.A Praça da República de Paris apresenta, neste fim de novembro, imagens a que não se está mais acostumado em tempos de confinamento devido ao coronavírus: reuniram-se lá 500 cidadãos - ativistas e requerentes de refúgio, sobretudo homens do Afeganistão, cujo acampamento improvisado num subúrbio parisiense foi desmontado. Gente que não sabe mais o que fazer da vida: não lhes ofereceram um novo alojamento, e eles armaram suas barracas no coração da capital francesa.
Quando a polícia interveio, desenrolou-se uma cena familiar demais na França, sobretudo em Paris: houve gritos, confusão e pontapés. Os agentes derrubaram as barracas azul-claro, uma delas foi sacudida até um homem cair de dentro dela no chão, exausto. Agressões brutais se sucederam, gás lacrimogênio e cassetetes contra a miséria. Um policial foi filmado golpeando repetidamente um repórter.
São imagens que sacodem todo o país, imagens cuja divulgação em breve será ilegal.
É o que garante a nova lei de segurança do presidente Emmanuel Macron, cujo intento, na verdade é proteger os policiais de violência. No entanto, há semanas o debate se concentra quase exclusivamente no Artigo 24, que tornará punível por lei fazer imagens das forças de segurança e difundi-las, se a finalidade for "atentar contra sua integridade psíquica e física". As penas chegam a 45 mil euros de multa e um ano de prisão.
Críticas ignoradas
O presidente tem em vista a próxima eleição: apresentando-se há meses como "homem da lei e da ordem", ele quer atrair os eleitores de direita. Muitos consideram a nova lei um vergonhoso ataque à liberdade de imprensa. E ao direito.
Pois a violência policial não é um fenômeno estranho à França: nos últimos anos registraram-se numerosos excessos monstruosos. Como o caso do malinês Adama Traoré, morto aos 24 anos em custódia policial. Ou o triste balanço dos protestos dos "coletes amarelos": 344 lesões na cabeça, 29 olhos furados, cinco mãos arrancadas e quatro mortos.
Isso não significa que policiais não sejam igualmente hostilizados e feridos. Porém uma sociedade democrática deve dar respaldo a quem documenta e divulga os excessos de violência estatal. A nova lei de segurança torna isso quase impossível.
A crítica vai além das associações de jornalistas francesas. Até mesmo a Comissão Europeia se vê forçada a lembrar o governo Macron que jornalistas deveriam poder "exercer seu trabalho livremente e em inteira segurança". A Anistia Internacional classificou a lei como "perigosa para os direitos fundamentais".
Em reação a essas críticas, acrescentou-se ao Artigo 24 o adendo de que ele não deve ser interpretado em detrimento do direito de informação - o que não passa de um ridículo subterfúgio.
Convite ao abuso de poder
A única forma de proteger a liberdade de imprensa seria eliminar inteiramente o Artigo 24. Pois se ele só visa a proteção dos agentes da polícia, então é supérfluo: ameaçar e ofender policiais, também nas redes sociais, já é passível de pena. Portanto o dispositivo não traz nada de novo.
Além disso, sua formulação é vaga demais, convidando ao abuso de poder. Pois quem avalia, numa situação concreta, o que possivelmente ameaça a "integridade psíquica e física" dos agentes? Justamente o atingido pelo delito e encarregado da detenção: o policial! Para tal, basta que se sinta ameaçado.
Com a aprovação dessa lei, a polícia poderá agir contra quem, por exemplo, filme as manifestações e transmita ao vivo para as redes sociais. E mesmo que isso não resulte na condenação do cinegrafista ou jornalista, o registro foi interrompido. E tais gravações são fontes essenciais de documentação da violência policial.
Essa lei é perigosa. Até o momento, os franceses vivem num Estado liberal, democrático, e deve continuar assim. Pois também forças reacionárias almejam ao poder. Toda lei que restrinja, já agora, os direitos fundamentais oferece a futuros governos a possibilidade de cerceá-los ainda mais.
Os jornalistas não podem ter medo de ser arbitrariamente presos pela polícia, nem na França, nem em nenhum lugar da Europa. É triste que isso não seja mais óbvio para Emmanuel Macron, que ainda poucas semanas atrás se encenava como defensor da liberdade de opinião.
A franco-alemã Luisa von Richthofen é jornalista da Deutsche Welle. O texto acima reflete a opinião pessoal da autora, e não necessariamente da DW.