Há 30 anos, a Alemanha era reunificada após décadas de divisão. O então líder soviético é festejado como herói pelos alemães, mas criticado em seu próprio país.O legado político de Mikhail Gorbachev, o último chefe de Estado soviético, ainda é intensamente discutido na Rússia atual. Há um debate especialmente acirrado sobre seu papel no processo que levou à reunificação alemã.
Algumas das acusações centrais apresentadas contra Gorbachev são de que ele não exigiu dinheiro suficiente da Alemanha em troca de sua aceitação do acordo que possibilitou a reunificação da Alemanha; e de que fracassou em evitar a expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) para o leste.
O Acordo Dois Mais Quatro foi assinado em Moscou, em 12 de setembro de 1990, pelos ministros do Exterior da Alemanha Ocidental e Oriental, assim como pelos das quatro potências vitoriosas na Segunda Guerra Mundial: União Soviética, Estados Unidos, Reino Unido e França.
O documento de sete páginas, intitulado Tratado sobre a regulamentação definitiva referente à Alemanha, pôs fim à divisão dos dois Estados alemães que durou quatro décadas.
As fronteiras foram acordadas, a soberania total foi devolvida ao Estado alemão, e as questões de segurança foram esclarecidas, incluindo a adesão da Alemanha à Otan, a redução das Forças Armadas alemãs, de cerca de 500 mil só na República Federal da Alemanha (ocidental), para 370 mil no país unificado, e a retirada do Exército soviético da então República Democrática Alemã (oriental).
Sinal verde a Kohl
As negociações transcorreram entre maio e setembro de 1990, embora tenham se realizado conversas preliminares logo após a queda do Muro, em novembro de 1989. Não se sabe se alguma vez existia algo como uma "lista de tarefas" para as negociações de Gorbachev quanto ao futuro da Alemanha. Assim, não é fácil avaliar se atingiu ou não seus próprios objetivos.
No entanto, fontes mostram que inicialmente ele não acreditava que haveria um progresso rápido em direção à reunificação. Ele criticava o plano de dez pontos que o então chanceler federal da Alemanha Ocidental, Helmut Kohl, apresentara no fim de novembro de 1989, apontando o caminho a ser seguido.
No fim de janeiro, porém, houve uma mudança na abordagem de Moscou. Uma reunião do círculo interno concluiu que uma Alemanha unida era "inevitável", como Gorbachev escreveu em suas memórias. A decisão foi feita para pressionar por negociações entre as quatro potências vitoriosas e as duas Alemanhas, e para sondar sobre a possibilidade de uma retirada das tropas soviéticas.
O momento decisivo veio nas negociações com Kohl em Moscou, em 10 de fevereiro de 1990. "Tivemos o sinal verde de Gorbachev para o processo Dois Mais Quatro e, acima de tudo, seu sinal verde para resolver os aspectos domésticos alemães da reunificação", anotou Kohl em seu diário.
Os líderes alemães conseguiram convencer Gorbachev de que os dois estados alemães, e não as potências vitoriosas, deveriam decidir sobre seu próprio futuro, o que resultou na fórmula Dois Mais Quatro.
Retirada de tropas apenas para os soviéticos
Uma das questões mais polêmicas da agenda era a futura adesão à Otan proposta pela Alemanha unida. Aqui, Gorbachev devia ter "pelo menos os termos definidos" para a adesão da Alemanha à Otan, escreveu Aleksey Pushkov, principal especialista russo em política externa e senador, no serviço de mensagens Telegram, em julho de 2020.
Para muitos em Moscou, a reunificação não foi o problema, mas sim a maneira como Gorbachev procedeu nela. Em 2017, o presidente russo, Vladimir Putin, referiu-se numa entrevista ao suposto "erro" de Gorbachev: não usar as negociações com a Alemanha para alavancar garantias vinculativas da Otan. Por sua vez, Gorbachev rejeitou as críticas.
Moscou inicialmente pediu uma Alemanha unida, mas neutra, proposta que foi rejeitada pela Alemanha Ocidental, pelos Estados Unidos e por países do Leste Europeu, como Polônia e Tchecoslováquia.
Foi Gorbachev quem piscou primeiro. No Acordo Dois Mais Quatro, acordou-se que nenhuma tropa da Otan e nenhuma arma nuclear deveria ser estacionada no território da ex-Alemanha Oriental. A ampliação da Otan na Europa Oriental foi abordada nas discussões, com diplomatas ocidentais parecendo sinalizar que isso não aconteceria. Entretanto não houve qualquer acordo vinculativo.
Os críticos de Gorbachev na Rússia acreditam que ele também deveria ter exigido a retirada das tropas britânicas e americanas da Alemanha unida. "É claro que a União Soviética poderia ter levantado grandes questões sobre as forças estrangeiras estacionadas na Alemanha", diz Vladislav Belov, chefe do Centro de Estudos Alemães na Academia Russa de Ciências. "Mas a oportunidade foi perdida."
"Moscou também poderia ter pedido a retirada das armas nucleares americanas", afirma Belov, acrescentando que os social-democratas alemães de centro-esquerda também pressionaram Gorbachev a ceder dessa exigência.
O historiador Martin Aust, especialista em Europa Oriental da Universidade de Bonn, contudo, é cético: "Meu palpite é que isso não teria sido aceito. Teria sido o modelo antigo, conforme proposto por Stalin, que queria estabelecer uma Alemanha unida como um Estado neutro, o que Adenauer, o primeiro chanceler federal da Alemanha Ocidental, rejeitou. O governo Kohl provavelmente também teria rejeitado."
Um acordo barato demais?
A segunda alegação levantada contra Gorbachev diz respeito a dinheiro. Seus críticos alegam que Moscou simplesmente não recebeu tanto quanto deveria, para concordar com a reunificação.
Em 1990, a economia soviética estava em sérios apuros. A Alemanha Ocidental se ofereceu para ajudar, de início aumentando o envio de alimentos. Em meados do ano, Moscou obteve da Alemanha Ocidental um empréstimo no valor de 5 bilhões de marcos (cerca de 2,5 bilhões de euros).
Pouco antes da assinatura do Acordo Dois Mais Quatro, Kohl e Gorbachev disputavam a questão dos pagamentos. O alemão propôs 10 bilhões de marcos, Gorbachev foi mais alto, exigindo 15 bilhões ou mais. Em 12 de setembro de 1990, os dois lados concordaram em 12 bilhões para custear a retirada das tropas soviéticas, mais um empréstimo adicional de 3 bilhões de marcos.
Testemunhas das negociações confirmaram que o governo alemão estaria disposto, nessa fase, a colocar uma quantia maior na mesa.
"Se Gorbachev tivesse dito então: 'Eu concordarei, mas custará à Alemanha 50 ou 80 bilhões', teríamos sido capazes de dizer não?", questionou Horst Teltschik, ex-assessor de política externa do premiê Kohl, numa entrevista à DW, em julho de 2010. O especialista alemão e assessor de Gorbachev Valentin Falin acredita que Moscou poderia ter exigido até 100 bilhões de marcos.
Aos olhos de críticos como Belov, Gorbachev foi um negociador fraco. Pior ainda: ele afirma que em 1990, o ex-líder russo deu menos atenção ao futuro de seu país do que a seu próprio lugar nos livros de história.
"A Alemanha deve um grande 'obrigado' a Gorbachev", comenta Aust. "Ele foi impulsionado pela crença de que poderia criar uma nova União Soviética, vinculada a uma nova ordem mundial livre do antagonismo EUA-URSS do período da Guerra Fria."
Alemanha como defensora dos interesses russos
Enquanto na Rússia os críticos reclamam que Gorbachev deveria ter insistido em um período de transição mais longo antes da reunificação alemã, o historiador Aust rebate que Kohl tinha todos os motivos para estar com pressa.
Na verdade, a reunificação alemã foi rapidamente seguida pela tentativa de golpe contra Gorbachev, as guerras nas repúblicas soviéticas e o colapso final da União Soviética em 1991. Certamente, da perspectiva alemã de hoje, não é difícil ser grato a Mikhail Gorbachev pela unidade ter sido alcançada tão rapidamente.
Essa gratidão se reflete numa vertente da política alemã que ainda é notavelmente forte: o posicionamento de Berlim como defensor de Moscou no Ocidente. Foi nesse sentido que a Alemanha pressionou por uma reaproximação entre a União Soviética - e mais tarde a Rússia - e o G7. Também ajudou a Rússia a se tornar membro do Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento (Berd) e aderir ao Fundo Monetário Internacional (FMI). Esses aspectos positivos das relações entre a Alemanha e a Rússia costumam ser esquecidos nos debates emotivos sobre o legado de Gorbachev.