'Tomei seis tiros no rosto e sobrevivi'

Waleed Khan tinha apenas 12 anos quando terroristas atacaram sua escola. Os ferimentos quase lhe custaram a vida, mas cinco anos depois, ele está determinado a honrar os colegas que ele perdeu.

30 jul 2019 - 15h20
(atualizado às 16h21)
Retrato de Waleed Khan
Retrato de Waleed Khan
Foto: Dave Imms / BBC News Brasil

*Aviso: este texto contém descrições que podem ser perturbadoras para alguns leitores

Waleed Khan tinha apenas 12 anos quando terroristas atacaram sua escola. Os ferimentos quase lhe custaram a vida, mas cinco anos depois, ele está determinado a honrar os colegas que ele perdeu. Leia o depoimento dele, hoje com 16 anos:

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Quando eu entrei na nova escola em Birmingham, na Inglaterra, os outros alunos tinham muitas perguntas para mim.

"De onde você é? O que aconteceu com você? Como o seu rosto acabou assim?"

Por causa das minhas cicatrizes, o que aconteceu no Paquistão era algo que eu não podia esconder. E também não era algo que eu quisesse esconder.

As cicatrizes se estendem por todo o lado direito do meu rosto e no topo da minha boca. A princípio, elas realmente me afetaram - quando olhava no espelho, havia uma lembrança diária. Na escola, eu achava difícil ter que contar às pessoas de novo e de novo o que eram, então decidi contar a todos minha história de uma vez. A escola convocou uma assembleia especial para mim.

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Antes de começar a falar, minhas mãos estavam úmidas e minhas pernas tremiam atrás do púlpito. Felizmente ele escondia o meu corpo, então a escola não me viu tremer. Foi a minha primeira vez em um palco novamente em mais de três anos, desde o episódio.

Mãos de Waleed Khan
Foto: Dave Imms / BBC News Brasil

Eu não escrevi o meu discurso com antecedência porque já sabia o que ia dizer. Quando comecei a falar, todos no salão ficaram em silêncio, ouvindo atentamente. No começo eu não conseguia olhar para ninguém, mas depois vi que muitos alunos tinham lágrimas nos olhos. Professores disseram que nunca tinham visto seus alunos tão quietos.

Mesmo que eu estivesse apavorado e doesse reviver tudo, eu me forcei a subir no palco e compartilhar minha história - motivado pelo meu passado e pelos amigos que perdi.

Invasão do auditório

Quando acordei na manhã de 16 de dezembro de 2014, foi como em qualquer dia da semana: coloquei o uniforme da escola e encontrei meus amigos no estacionamento. Todas as manhãs antes da escola, sentávamos no refeitório para tomar o café da manhã juntos, geralmente discutindo sobre a partida de críquete da noite anterior.

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Depois íamos para a aula.

Nossa escola em Peshawar, no Paquistão, é o que chamamos de colégio militar. Isso significava que o Exército administrava a escola e estávamos acostumados a ver soldados por lá. Então, não foi grande coisa quando um major veio nos dar uma palestra sobre primeiros socorros no auditório.

A escola de Waleed no Paquistão
Foto: Khan Raziq/Anadolu Agency/Getty Images / BBC News Brasil

Toda a nossa escola era formada por alas: a ala da escola regular, uma ala universitária e uma ala infantil. Para esta palestra, a escola regular e a ala universitária puderam comparecer, o que significava que a sala estava cheia de alunos de 11 a 18 anos.

Eu tinha 12 anos e era um dos representantes mais jovens que a ala da escola já teve - algo que deixava meus pais orgulhosos. Um dos meus privilégios era sentar-me no palco com o diretor e, neste dia, o major também. Dali eu conseguia ver os rostos dos outros alunos.

Estávamos na metade da palestra quando ouvi um estrondo ensurdecedor. Foi alto, mas nada fora do comum. Poderia facilmente ter sido uma broca do Exército. O riso e a tagarelice percorriam a sala com a perturbação da palestra. Foi só quando o barulho chegou mais perto que as coisas começaram a mudar.

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Perguntei ao meu professor, que estava no palco comigo, se estava tudo bem. "Não se preocupe, não se preocupe, está tudo bem", ele me disse. Alguns alunos estavam preocupados, outros estavam brincando. Quando o barulho chegou ao máximo, o silêncio total caiu sobre o auditório.

retrato das mãos e torso de Waleed
Foto: Dave Imms / BBC News Brasil

Foi quando soube que algo estava errado. Os professores rapidamente trancaram todas as portas dentro e fora do auditório.

Um deles disse a todos para se abaixarem e se esconderem sob as cadeiras. Alguns mais jovens começaram a chorar. Eu fiquei sentado onde eu estava no palco, confuso demais para me mexer. Nunca tínhamos ouvido tiros tão de perto.

Em seguida, a porta foi aberta a chutes, e nosso auditório se tornou uma zona de guerra.

"Acerte os mais velhos na cabeça"

Não houve nenhuma pausa antes do início do tiroteio. Eles já entraram atirando. Um dos homens gritou: "Acerte os mais velhos na cabeça", tão alto que todos puderam ouvir. Foi quando percebi que ainda estava na minha cadeira - fiquei tão chocado que não consegui mover meu corpo para me esconder.

Eu estava apenas parado olhando para eles, mesmo quando um deles apontou sua arma diretamente para mim.

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Ele estava a dez metros quando o primeiro tiro atingiu meu rosto. Quando tudo o que sentia era a dor lancinante, meu rosto aberto e sangrando, mas ainda sem certeza de que o que estava acontecendo era real. Tiros foram disparados em todas as direções.

Acertaram meus amigos na cabeça, nas mãos, nas pernas e no peito, bem na frente dos meus olhos. Do palco pude ver meus colegas morrendo, alguns instantaneamente, outros devagar.

Eu não conseguia aceitar que meus amigos estavam mortos, se minutos antes estávamos rindo e fofocando. É da dor mental extrema que mais me lembro. Eu estava completamente indefeso, e acho que isso me quebrou por dentro.

Deitado no palco, tentei desesperadamente rolar no chão sob as cadeiras. Foi quando me viram se mexer e atiraram no meu rosto de novo e de novo. Eu perdi a conta de quantas vezes.

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Retrato de Waleed Khan
Foto: Dave Imms / BBC News Brasil

A morte não parecia muito distante.

Eu não conseguia parar de pensar nos meus pais e nas promessas que fiz de me tornar médico e dar uma vida melhor à nossa família. Eu sabia que nunca mais os veria novamente.

A sala então ficou em silêncio, e os terroristas se concentraram em encontrar sobreviventes - cutucando pessoas com armas para ver se precisavam atirar nelas novamente. Quando eles se aproximaram de mim, me chutaram no peito e eu gritei. Olhando para o meu rosto desfigurado, só posso supor que eles decidiram me deixar morrer dolorosamente.

"Fiquei com os cadáveres e não com os pacientes"

Depois do que pareceram horas, eu os ouvi sair do auditório - na direção da ala das crianças.

Eu coloquei minha mão na frente da minha boca, para sentir o calor para verificar se eu ainda estava respirando. Estava. Eu sabia que estava perdendo muito sangue e o exterior do meu rosto agora parecia o interior dele. Mas de alguma forma eu ainda podia ver. Eu podia ouvir. Minha mente ainda estava funcionando. Eu não estava mais com medo. Afinal, o que mais poderia acontecer comigo?

Quando tentei me levantar, não consegui. Minhas pernas não estavam fazendo o que eu disse a elas. Então comecei a engatinhar, a me arrastar para um lugar seguro. A cada avanço eu pensava que ia desmaiar de dor, depois levava minha mão à boca novamente, para checar mais uma vez que ainda estava vivo. Eu disse para mim mesmo: "Ainda estou respirando. Até que pare de respirar, farei o meu melhor para continuar respirando".

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Quando finalmente alguém das forças de emergência do Exército me encontrou, eu estava quase inconsciente depois de engatinhar por 30 metros. Metade do meu rosto simplesmente tinha ido embora, e eu nem percebi que tinha sido baleado na perna.

A única coisa que não me lembro daquele dia é de como cheguei ao hospital. Os terroristas destruíram tanto o meu rosto que, quando cheguei ao pronto-socorro, fiquei com os cadáveres e não com os pacientes.

Eu havia perdido tanto sangue que meu corpo ficou paralisado. Tentei falar, fazer qualquer tipo de ruído que lhes dissesse que eu estava vivo, mas nada sairia. Eu fiz tudo que podia para respirar profundamente, esperando que alguém me visse e me ajudasse. O sangue na minha boca começou a fazer bolhas.

Mais tarde, me disseram que uma enfermeira me encontrou entre os corpos. Eu tinha sido baleado no rosto seis vezes, uma vez na perna e uma vez na mão.

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Eu sobrevivi ao segundo pior ataque terrorista no Paquistão até hoje, com quase 150 mortos - os atiradores que atacaram a minha escola eram do braço paquistanês do Taleban.

A maioria das vítimas eram crianças. Meus colegas que se tornariam políticos, engenheiros e médicos foram exterminados em questão de minutos.

1% de chance de sobrevivência

Passei os dois primeiros anos após o tiroteio amarrado a uma cama de hospital, e mal estava presente. Eu saí de um coma apenas para entrar numa maratona de cirurgias. Meus pais disseram que eu tinha 1% de chance de sobrevivência.

Num dos momentos fugazes em que emergi do coma, perguntei pelo meu melhor amigo. Ele estava vivo? Ele estava bem? Quando eu poderia vê-lo?

Primeiro os médicos tiveram que tirar todas as balas e cartuchos do meu corpo. Então eles tiveram que começar a costurar meu rosto de volta, em muitas operações diferentes. Meus dentes da frente foram arrancados e minha mandíbula estava completamente quebrada, então eles pegaram um osso da minha perna e me fizeram uma nova mandíbula com ele. Eles colocaram placas de metal dentro da minha boca e criaram uma articulação - essa foi uma das maiores operações pelas quais eu passei.

'Disseram aos meus pais que eu tinha 1% de chance de sobreviver
Foto: Dave Imms / BBC News Brasil

Se eu estivesse sozinho com um telefone ou tablet, tentava desesperadamente procurar os nomes dos mortos, mas era sempre interrompido pelas enfermeiras ou pelos meus pais antes de encontrar a informação. Eles só queriam me proteger de mais dor - e eu não os culpo por isso.

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Nos meses seguintes ao ataque, eu estava quebrado pela depressão e pelo trauma do que aconteceu, bem como pelos enormes danos físicos em meu corpo.

Eu me senti quase à beira do suicídio. Eu rezei para que não fosse real, e que meus amigos ainda estivessem vivos, e eu chorava todos os dias lembrando do ataque.

Depois de muitas semanas, minha mãe se virou para mim e disse: "O que acontecerá se você chorar agora? Seus amigos voltarão? É melhor ficar saudável e voltar à vida novamente e fazer algo por eles para que todos possam se lembrar deles para sempre." Isso ficou comigo - eu tinha que ter um propósito para a minha vida.

Quando os médicos do Paquistão não puderam fazer mais por mim, a natureza complicada dos meus ferimentos levou-me ao Reino Unido para atendimento médico especializado. O Exército do Paquistão facilitou meu tratamento. Infelizmente, isso significava deixar minha mãe e minha irmã no Paquistão. Quando cheguei para minha primeira operação, dois anos após o ataque, meu pai e eu não conhecíamos ninguém no Reino Unido.

No começo, Inglaterra e Birmingham eram completamente estranhas para mim. Fiquei maravilhado com as pequenas coisas. A comunidade nos acolheu rapidamente, e agora Birmingham parece uma casa longe de casa.

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Medalhas e diplomas de Waleed
Foto: Dave Imms / BBC News Brasil

Educação é onde vejo meu futuro

Tudo que eu realmente queria era voltar para a escola. Algumas pessoas acham isso difícil de entender. Eu sei que, logicamente, eu deveria me sentir mais inseguro ou triste em uma escola. Mas para mim é o oposto: a educação é onde vejo meu futuro.

A escola em Birmingham não me deixava tenso.

Eu às vezes ainda não consigo acreditar que todos os estudantes aqui no Reino Unido têm acesso a uma boa educação, paz e direitos humanos - coisas que nenhum de nós no Paquistão teria sonhado.

Os terroristas que entraram na minha escola naquele dia escolheram pegar em armas e bombas, mas para combater o terrorismo em meu país, eu escolhi pegar em livros e canetas. Acredito que não são armas que os terroristas temem, é educação.

Waleed mostra seu distintivo de representante de turma de sua nova escola
Foto: Dave Imms / BBC News Brasil

Enquanto espero pela minha próxima cirurgia, vou para a escola. Estou estudando para os exames CGSE (sigla em inglês para General Certificate of Secondary Education, uma espécie de exame aplicado no ensino médio, no Reino Unido). Também sou membro do Parlamento da Juventude do Reino Unido, para o qual fui eleito por alunos de todas as escolas de Birmingham. Nós ouvimos as reivindicações levantadas pelos jovens da cidade, e uma vez por ano nós levamos essas questões para a Câmara dos Comuns.

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Eu nunca tinha imaginado que falar sobre o que tinha acontecido comigo me permitiria sentir que estava fazendo a diferença. Eu estava preocupado que as pessoas pudessem dar risada e dizer "Por que alguém me ouviria?"

Após o incidente, eu perdi a fé na humanidade. Mas quando terminei a palestra, meus colegas de classe estavam me abraçando e me mostrando muito respeito - um pouquinho da fé na humanidade voltou para mim naquele dia.

Desde aquele dia, fiz inúmeras palestras motivacionais em escolas, universidades e empresas em todo o Reino Unido. Minha última palestra foi para estudantes da Universidade de Londres.

Retrato de Waleed Khan
Foto: Dave Imms / BBC News Brasil

Eu quero viver a vida, não só para mim, mas para todas as crianças que foram mortas naquele dia e em outros ataques. Eu quero que as pessoas nunca esqueçam meus amigos e colegas de classe; eles foram lá para estudar para o futuro, não para serem mortos. É bom ter amigos de novo, mas os que perdi nunca saem do meu pensamento.

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Depoimento a Hannah Price. Este artigo foi originalmente publicado pela BBC Three. Leia aqui a versão original, em inglês.

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