Uma coisa é identificar que, na história da humanidade, "o racismo se impôs como crença e ideologia para garantir a manutenção de privilégios sociais, econômicos e políticos aos que se supõem racialmente superiores", como argumenta Lucilene Reginaldo, doutora em História Social professora de História da África no Departamento de História e pesquisadora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.
Outra, bem diferente, é efetivamente responsabilizar cada setor da sociedade contemporânea pela desconstrução dessa estrutura, convidando indivíduos a reconhecerem a atual miscognição (ou ignorância) branca, em seus trabalhos de letramento racial.
Ainda não é costume questionar por que indivíduos com fenótipos específicos ocupam determinadas posições na sociedade. Ao considerar tanto o presente, quanto o passado (por meio da trajetória familiar), é possível perceber que não é apenas a questão socioeconômica que determina o lugar das pessoas na estrutura social brasileira, mas também a questão etnico-racial e de gênero.
Embora a história das teorias raciais tenha sido desmontada por autores de várias gerações, a população brasileira descende de uma memória colonial escravista, de quase quatro séculos, na qual meninas brancas (com maior poder aquisitivo) eram presenteadas com bonecas negras com rostos de porcelana e roupinhas de finos tecidos para iniciar, em suas brincadeiras de “faz de conta”, o exercício de tornarem-se sinhás, na vida adulta.
Acontece que esse futuro foi interrompido. Tanto por mérito de movimentos abolicionistas locais (também chamados de "revoltas"), quanto por razões de pressão econômica internacional, o cenário do território mudou. Marcado pela projeção de uma nação — recém-inventada por invasores, que colonizaram espaços e corpos e, depois, tornaram este território "independente" —, herdou-se uma complexa estrutura escravagista.
Os dados que compõem a formação deste Estado-nação evidenciam a falta de qualquer reparação histórica (às pessoas sistematicamente violadas em seus direitos mais básicos) como a principal razão pela desigualdade instaurada. Apesar dela, em alguns lugares mais; outros, menos, vem sendo ampliada a consciência coletiva de que pessoas de pele escura têm poucas chances de mobilidade social ascendente, estando mais vulneráveis a violências de todos os tipos.
Não, não somos todos iguais
Entre os frutos do Movimento Negro está a luta pela conscientização da existência dos lugares de fala, que antecedem qualquer discurso. Afinal, se há discrepância entre a propaganda do "Brasil, um país de todos" e as evidências das disparidades que ele mantém, só por meio de mobilizações entre indivíduos e comunidades é que se enfrenta o racismo, contribuição direta para a conquista de direitos civis e políticos.
Hoje, iniciativas como a Boneca Pretta, Cadê Nossa Boneca e Mãe de Cria (que agem para transformar esse caminho excludente trilhado) merecem todo o reconhecimento e importância como ações pela representatividade negra, "para tornar esse microcosmo do mundo adulto, ao qual são expostas as crianças, em um campo mais diverso de possibilidades e existências", conforme apuração da matéria da Rio On Watch.
Afinal, a representatividade importa não apenas à organização de grupos que lutam por direitos, mas, também, faz parte da formação social e intelectual de qualquer indivíduo que, desde cedo, é apresentado às normas, papéis e espaços sociais reproduzidos em brinquedos e brincadeiras.
Acessando representações diversas, "[...] uma criança branca percebe, desde sempre, que o mundo é um lugar diverso, o que apresenta a ela a ideia de pertencimento ao todo e que outros fenótipos são tão valorosos quanto o dela", ainda conforme a matéria da Rio On Watch.
A reconstrução a ser feita é de caráter educacional, por um imaginário que supere heranças de mentalidade colonial
Cada atravessamento torna-se referência na construção de visões de mundo, sonhos, desejos e modelos de relacionamento (consigo e com os outros).
Por mais que a infância signifique uma fase em que se vive o auge do aprendizado, porque "tudo é uma descoberta e é nesse período onde o reconhecimento começa a surgir", o processo de construção de identidade e subjetividades é contínuo, na vida. Portanto, o letramento etnico-racial é um trabalho individual e coletivo, e deve extrapolar a falácia de que "lugar de aprender é somente na escola".
A infância é, sim, momento de discutir racismo. A escola deve ser capaz de estimular algum senso crítico, nas crianças, pela conscientização sobre as questões relacionadas à raça e etnia. Mas, no Brasil, as escolas ainda são espaços de manutenção de exclusividades; a educação brasileira, de forma geral e crônica, sofre com a desigualdade racial, como evidenciam os dados mais recentes sobre o tema.
Então, o que fazer com as nossas crianças crescidas: nós, os adultos sem qualquer educação etnico racial?
Desde a base ao topo da pirâmide, para além das salas de aula, cada indivíduo deve se reconhecer participante ativo de um projeto educacional como maneira de enxergar e existir no mundo. Considerando o processo natural e constante de aprendizado e readaptação do ser humano, a educação é tema de cada dia e independe da fase da vida.
Mudanças no inconsciente coletivo a partir de medidas conscientes é o que todos precisam. A consciência étnico-racial se refere à compreensão e reconhecimento das características étnicas e raciais próprias e dos outros, assim como a conscientização sobre as questões relacionadas à raça e etnia. Esse conceito envolve dimensões culturais, históricas e sociais associadas a esses elementos.
“Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar” (Nelson Mandela, no livro "Long Walk to Freedom", de 1995).
As instituições e organizações devem partilhar dessa perspectiva de aprendizado coletivo pela responsabilidade social. Apenas por meio de ações promovidas continuamente, de letramento e educação pela diversidade, é que se entende o esforço de gerações pela luta antirracista.
Não se trata de um tema para campanhas (partidárias) efêmeras ou para suas metas locais, mas para a melhoria de todas as relações entre povos e territórios.