Para além dos dispositivos móveis, cada vez mais requisitados nos dias atuais, existe um vilão ainda mais perigoso à saúde mental das pessoas do que as telas: o racismo.
Embora o estudo realizado pela Canadian Journal of Psychiatry já tenha comprovado que quanto mais se usa telas, maior é o nível de ansiedade dos usuários, ainda não foram nomeados todos os tipos de transtornos ansiosos que acometem determinadas populações, como a brasileira. Mesmo sendo a que passa mais tempo conectada (como relatado pela empresa App Annie), existe um prisma ainda não diagnosticado, de prejuízo à saúde mental da negritude brasileira. Considerando que a maioria dos habitantes do Brasil é preta ou parda, é indispensável mapear, como causadores da ansiedade do país, as problemáticas pertinentes à racialização desses indivíduos.
Afinal, como se sentem e o que pensam sobre si mesmos, essas pessoas que são maioria dentre os que vivem em situação de rua; privados de liberdade; sobreviventes à extrema pobreza; em domicílios que não respondem aos padrões mínimos de habitabilidade? A população negra também é majoritária entre os que têm menores rendimentos; trabalhos informais; entre os dependentes do lixo (de natureza reciclável ou não); em situação de insegurança alimentar; em índices de suicídio.
As disparidades afetam a população negra desde muito cedo. Na jornada de escolaridade (como apontam os dados do movimento “Todos Pela Educação”, de 2018), crianças negras de 0 a 3 anos têm o menor percentual de matrículas em creches. Apenas 53,9% dos jovens declarados negros concluíram o ensino médio até os 19 anos, 20 pontos percentuais a menos que a taxa de jovens brancos.
Entre os estudantes negros que acessam o ambiente escolar, nota-se, ainda, a alta incidência de ansiedade e baixa auto estima, em decorrência da invisibilidade e racismo presentes. Eles não conseguem se ver em muitos locais, já que a cultura e os espaços são predominantemente brancos, propiciando um sentimento de solidão pouco explorado pela Psicologia Clínica.
Afinal, como mensurar o impacto do racismo na saúde mental dos brasileiros?
Esses indicadores sociais (nos quais os negros estão sempre identificados com os piores índices) não configuram um diagnóstico de sofrimento psíquico específico. Contudo, eles precisam ser urgentemente pautados nas discussões e medidas de saúde mental a partir de examinações dos efeitos do racismo, no Brasil.
A população negra convive com um tipo de estresse pós-traumático que, embora afete a autopercepção e auto-estima das vítimas, não pode ser individualizado pois tem caráter coletivo e não decorre só de um fenômeno pertinente à (falta de) saúde pública. Mas de processos históricos estruturais pautados em desigualdades socioeconômicas.
É fato que a violência sistemática do Estado; o número assustador de mortes na juventude; o encarceramento em massa; a exposição contínua a situações discriminatórias desde a infância são fatores associados ao adoecimento psíquico de pessoas negras. Mas já houve um tempo em que esse grupo foi vítima, também, da ciência eurocentrada.
Embora não tenha sido imortalizado pelo cinema ou pelas produções documentais em massa, o Brasil teve um herói que enfrentou o racismo científico: Juliano Moreira, um dos primeiros médicos negros do país, formado pela Faculdade de Medicina da Bahia, e membro fundador da Academia Brasileira de Ciências.
Seu prestígio e sua formação — inclusive, chancelados por um dos maiores cientistas do século XX, Albert Einstein —, se devem às suas contribuições inesquecíveis no combate às teorias raciais.
Juliano Moreira, consciente de que a medicina e a psicologia não foram pensadas por ou para pessoas descendentes de africanos, foi o médico responsável por democratizar a estrutura que humanizou o manicômio no Brasil. Dentre outros feitos, Juliano publicou seu marcante estudo sobre a paranóia; foi pioneiro na introdução de laboratórios dentro de hospitais; implementou mudanças determinantes, também aos asilos: removeu as grades, retirou as algemas que prendiam internos, instalou janelas que arejavam o ambiente e separou adultos de crianças.
Naquele período (posterior à abolição da escravatura e da instauração da República no país), os sofrimentos e traumas ainda estavam sendo nomeados, mas Juliano Moreira protagonizou um avanço científico que foi divisor de águas. Em contrapartida aos que tentavam atribuir, à miscigenação, a responsabilidade pelas desigualdades, pela loucura e pela criminalidade, o médico conseguiu comprovar cientificamente que a teoria era infundada, invalidando os programas de melhoramento de raça.
É preciso dar continuidade a esse legado de desnaturalização de privilégios e de teorias raciais infundadas que sustentam estruturas inteiras.
Assim como publicado na matéria 'Impacto do racismo na saúde mental', pelo Estadão e Geledés, "enquanto as teorias europeias de psicologia não concebem a opressão racial como causadora do sofrimento psíquico, o racismo segue provando sua letalidade com os inúmeros casos de depressão e suicídio".
Se a desigualdade é permanentemente mantida, no Brasil, a população que sofre direta e incessantemente essas consequências adoece, principalmente, por não contar com medidas reparatórias ou com políticas públicas específicas às causas de suas dores.