“Eu tenho uma foto do pau do Nelson.” Nos meus quase quarenta anos seguindo Fórmula 1, conheci muita gente alucinada por automobilismo, e vários fãs ardorosos de diversos pilotos. A frase que abre este texto surgiu em uma conversa com um fã ardoroso de Nelson Piquet, que explicou o contexto.
Nos anos 1980, era comum a Fórmula 1 realizar testes coletivos no início do ano, especialmente no extinto autódromo de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro. O acesso aos boxes era muito mais relaxado que o atual. Repórteres e fotógrafos circulavam praticamente sem restrição. Certa vez, uma fotógrafa teria deixado seu material de trabalho inadvertidamente no box da equipe de Piquet, e saído de perto de sua câmera por alguns momentos. O piloto aproveitou a deixa, baixou o macacão, fotografou o próprio pênis e recolocou a câmera onde ela estava. Quando revelou o filme, a fotógrafa teria encontrado o produto da “brincadeira”. Pelo que eu me lembro da história, a foto (que eu não vi) nunca foi publicada, e não ficou muito claro para mim como o tal fã teve acesso a ela.
Corta a cena. De novo, anos 1980. Piquet tem como companheiro de equipe, na Williams, o inglês Nigel Mansell, com quem vivenciou uma das mais ferozes rivalidades da categoria. A equipe está no México e Mansell, apelidado de Lion (Leão) é acometido de uma diarreia destruidora, um efeito do chamado “mal de Montezuma”, que costuma atacar estrangeiros naquele país. Percebendo a condição do colega de equipe, que entrava no carro, dava duas ou três voltas e tinha que retornar ao box para ir ao banheiro, Piquet, em dado momento, resolve retirar todos os rolos de papel higiênico do local. “Aí sim que ele rugia feito um leão!”, relatou Piquet, aos risos, em uma entrevista.
Talvez o tricampeão nunca tenha fotografado o próprio membro, em uma “brincadeira” mais que ofensiva com uma profissional. Talvez nunca tenha sumido com o papel higiênico para aumentar o desconforto de seu desafeto. Mas histórias como essas, a maioria relatada pelo próprio ex-piloto, sempre fizeram parte da construção desse personagem. Ele, no entanto, realmente disse que a diferença entre ele e Mansell era o fato de que o inglês tinha se casado com uma mulher feia. Também disse que Ayrton Senna teria sumido da mídia, em determinada época, para não precisar se explicar “por que não gosta de mulher”. Piquet nunca foi diferente disso e, mais importante, nunca quis transmitir uma imagem diferente dessa. Espontâneo? Vulgar? Quem conhece Piquet desde que ele estava na Fórmula 1 sabe que ele é e gosta de ser assim.
O declínio de Piquet na carreira, que coincide com a fase mais vencedora de Senna, não marca apenas uma passagem de bastão, em termos esportivos. Marca também o estabelecimento de um novo padrão de exposição diante da mídia. Senna construiu uma imagem que era, em praticamente tudo, o oposto do que Piquet cultivava. No lugar do entrevistado mal-humorado, que distribuía patadas para repórteres, um piloto de fala mansa, que escolhia palavras, gestos e olhares, quase sempre com intenções edificantes. Nessa construção de imagem, Senna se tornou o mais frequente e dedicado condutor da bandeira do Brasil, e se consolidou como a imagem de um país vitorioso em um período no qual nosso futebol patinava havia anos, nossa economia se debatia em meio a uma inflação corrosiva. Senna estava além de ser um piloto competente e vitorioso, era um herói nacional, supraesportivo. Piquet nunca deixou de ser admirado e respeitado no nicho automobilístico. Senna extrapolou: virou objeto de adoração de uma nação inteira, e a morte dramática e espetaculosa potencializou essa idolatria.
Nas últimas três décadas, aposentado como piloto, carreira na qual foi bem-sucedido financeiramente, Piquet se tornou empresário da área de transporte rodoviário no Brasil. Gravitou em torno do automobilismo principalmente em função das carreiras dos filhos, e se manteve como referência para uma fatia estreita de torcedores que não apenas acompanha Fórmula 1, mas cultua seu passado. Fatia estreita da população, diga-se.
No ambiente político conflagrado em que o Brasil vive, Piquet abraçou o bolsonarismo e ninguém pode se sentir surpreso por isso. Homem, branco, idoso, integrante de uma elite econômica francamente incomodada com pautas identitárias e com as tímidas medidas afirmativas implantadas pelos governos de esquerda nas duas últimas décadas, Piquet atrelou-se ao discurso de extrema-direita que enxerga fantasmas comunistas e doutrinação marxista até em rótulos de produtos cosméticos.
Não foge muito ao perfil de vários homens brancos, ricos e idosos que defendem fervorosamente o presidente. É só olhar as fotos das manifestações de apoio ao atual chefe do Estado brasileiro para identificar tipos muitos semelhantes. Muitos deles se ressentem de não viver mais nos anos 1980 pré-democratização, aliás o tempo de glória de Piquet nas pistas, o tempo da juventude dessa turma.
Ao se declarar simpatizante dessa ideologia, Piquet se associou imediatamente aos apoiadores do atual presidente, uma parcela da população que oscila em torno de 30%, gente que apoia incondicionalmente tudo o que o chefe do Estado brasileiro faz, pensa e propaga. O fato é que essa fatia da população que agora está aliada a Piquet é muito mais representativa, do ponto de vista numérico, do que eram seus fãs renitentes dos anos mais recentes. Abraçando o bolsonarismo, Piquet passou a ser relevante para muito mais gente do que tinha sido nos trinta anos anteriores.
Quando se expõe junto a essa turma, seja pilotando o Rolls-Royce da presidência no 7 de setembro ou utilizando um termo racista para se dirigir ao heptacampeão Lewis Hamilton, o ex-piloto promove engajamento, esse conceito tão valioso nas redes sociais. Piquet recuperou parte da sua fama, mas ele não é famoso no Brasil, hoje em dia, por ser um reputado tricampeão de Fórmula 1. Sua fama está atrelada ao fato de ser um tricampeão que apoia o atual presidente. Certa vez, em uma entrevista, o deputado federal Carlos Jordy, um daqueles mais alinhados à atual gestão, foi perguntado: Piquet ou Senna? Hesitou momentaneamente, mas cravou: “Senna!” Ainda se justificou que, apesar de Piquet ser bolsonarista, Senna representava os valores em que ele acredita, e desfilou uma porção de chavões que muitos brasileiros utilizam para descrever sua admiração pelo tricampeão morto em 1994.
Nada, nem ninguém, apagará a beleza da ultrapassagem de Piquet sobre Senna, no GP da Hungria de 1986, considerada por muitos especialistas em automobilismo a mais bela ultrapassagem da história da Fórmula 1. Mas não é por isso que Piquet está na boca do povo nos últimos tempos. Ele alargou seu público literalmente pela força do ódio. Muitos dos seus atuais companheiros de trincheira provavelmente torciam pelo rival, um bom moço que rivalizava contra um pseudo-rebelde, mas isso tudo é coisa do passado. Ele sabe disso, e talvez não consiga se curar do ressentimento de continuar perdendo para um adversário que morreu há 28 anos.