'A gente vive num estado de castigo': como estão as vítimas um ano após colapso de mina da Braskem em Maceió

Ex-moradores de bairros afetados relembram saída de suas casas às pressas e relatam sofrimento com a mudança de vida que tiveram após a mina

20 dez 2024 - 04h59
Casa da professora Josynete Luciana dos Santos após ser desocupada - Foto tirada em 23 de março de 2021
Casa da professora Josynete Luciana dos Santos após ser desocupada - Foto tirada em 23 de março de 2021
Foto: Arquivo Pessoal

Era 10 de dezembro do ano passado, um domingo. O servidor público Maurício Sarmento, 46 anos, tinha acabado de desembarcar em Brasília para uma viagem a trabalho quando recebeu uma ligação da esposa. Assustada, ela contou que a mina 18, localizada no bairro do Mutange, em Maceió, tinha rompido. O local fica há cerca de dois quilômetros de onde eles e a filha moravam, nos Flexais. "Fiquei desesperado, não sabia o que fazer", relembra.

Maurício conseguiu trocar o voo e voltou para Maceió no dia seguinte. Mesmo que o bairro Flexais não tenha recebido ordem para evacuação, com medo e por ser um bairro tão próximo, ele e a família decidiram sair às pressas de casa e se mudarem para um bairro mais afastado da mina, o Antares.

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"Saí por conta própria para dar maior conforto e segurança à minha família. Mas lá eu morava numa casa de 350 m² e tive que vir morar num apartamento de 51 m². Deixei tudo lá porque não cabe aqui", diz o servidor público.

Em outro ponto da capital alagoana, no bairro Trapiche da Barra, a professora Josynete Luciana dos Santos, 60 anos, afirma que não conseguia sequer dormir pensando que a mina poderia se romper a qualquer momento. "Eu ia trabalhar na escola com medo, me preocupava com as pessoas que ainda estavam por lá, vi muita gente sair correndo de suas casas. Eu não tenho nem palavras [para expressar o que senti naquele dia]."

Embora estivesse longe do local, a dor de Josy, como ela é mais conhecida, era maior ainda porque ela é ex-moradora do bairro Pinheiro, um dos afetados pelo colapso da mina, e precisou também sair de sua casa às pressas anos antes. Segundo a professora, ela, a mãe e a sobrinha, que moravam juntas, foram obrigadas a se mudarem em março de 2021. 

Naquele ano, ela lembra que a sua residência começou a ter rachaduras na parede e nos pisos, além do chão começar a afundar. Inicialmente, elas ficaram sabendo por uma matéria de televisão que precisariam evacuar a rua onde moravam por causa dos riscos e depois receberam a confirmação das autoridades. "Foi um choque. Minha mãe não queria sair de casa", recorda. Nesse mesmo período, a mãe dela, de 79 anos, ficou doente e faleceu 15 dias depois. 

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"No dia do velório, uma vizinha me ligou dizendo que tinham ido até lá e selado a casa. Eu não estava nem mais em mim. A ficha não tinha caído. Foi um baque muito violento para mim" -- Josy

'Minha vida mudou completamente'

A professora afirma que só conseguiu voltar para casa, pegar todas as suas coisas e se mudou para um novo local. "O meu luto virou luta. O meu luto eu não vivi [...] Eu morri por dentro. Você sabe o que é você perder toda a sua história?", questionou Josy, chorando.

Professora Josynete Luciana dos Santos
Foto: Arquivo pessoal

De acordo com a professora, a casa dela foi demolida pela Defesa Civil neste ano. "Não existe mais nenhuma casa lá no bairro. Me mandaram uma foto justamente com aquele negócio enorme em cima para demolir."

Ao falar sobre o bairro Pinheiro, onde viveu por anos, Josy lembra do local com carinho e saudades: "Tinha comércios, mercadinhos, escola perto, meu trabalho era perto. A vizinhança, a gente era como uma irmandade lá dentro. Hoje, não vejo mais ninguém."

Segundo a professora, sua vida nesse período mudou completamente. Ela chegou a adoecer, enfrentar uma depressão e ficou por dois anos fazendo terapia. Apesar de estar bem nos dias atuais, ela afirma que não é mais a mesma.

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"Eu me sinto impotente. Sabe o que é na sua própria cidade, você se sentir refém? Sou eu. Eu não sou mais aquela pessoa alegre, extrovertida. Gostava de dançar, não sou mais aquela pessoa. Aquela pessoa ficou lá [onde eu morava]"

Sarmento também relata que "mudou tudo" na sua vida desde o ano passado, quando saiu dos Flexais. "A gente não tem mais a vida que nós tínhamos antes. A gente conhecia todo mundo dentro daquela comunidade. Minha casa tinha uma varanda e a gente costumava tomar café da manhã lá. As pessoas passavam, tomavam café comigo, nos visitavam e tudo isso a gente perdeu. Hoje eu moro num apartamento fechado. Eu não sei quem é o meu vizinho da direita nem o da esquerda, e nem o de frente."

Medo e isolamento socioeconômico

Moradores dos Flexais -- bairros Flexal de Cima e Flexal de Baixo --, vizinhos aos afetados pelo rompimento da mina, reclamam que o local perdeu condições de sobrevivência com o colapso da mina. Eles pedem por remanejamento das famílias que ainda moram lá. 

"A gente vive num estado de castigo pelas autoridades, porque a gente é obrigado a ficar nessa área. E as pessoas que moram lá ainda, elas querem sair, elas querem ir para outro local. Elas estão pedindo na justiça para que isso aconteça", conta Sarmento.

Aposentado Abeliel de Oliveira e a
Foto: Arquivo pessoal

"O nosso bairro era um bairro economicamente vivo. Nós tínhamos ali uma feira livre centenária. Nós tínhamos a venda do pescado, as pessoas comercializavam o sururu, diversos comércios, supermercados, açougues, padarias, igrejas, colégios, unidades de saúde, creches. Era um bairro superativo. [...] Hoje não temos mais nada. Os comércios fecharam. Tem que sair pra outro bairro para ir nos comércios. A mobilidade urbana foi comprometida", detalha o servidor público.

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O aposentado Abeliel de Oliveira, conhecido como Abel, 61 anos, é um dos moradores que continuam no bairro Flexal de Cima. Ele, que vive na região há 20 anos, ressalta que muitos vizinhos saíram por conta própria do local -- como é o caso de Sarmento -- "porque não é um lugar para ninguém morar não". 

"A gente só está aqui porque eles inventaram de revitalizar depois que destruíram o bairro. Quando eu cheguei aqui, até 15 anos atrás, era uma maravilha. Tinha tudo, nós tínhamos vida. Todos os vizinhos se conheciam. Agora não tem mais nada", afirma.

Além disso, de acordo com o aposentado, ele e a vizinhança têm medo da mina se romper novamente. "Eu não posso ouvir um barulho que eu penso logo que é a mina estourando, pelo susto que nos deram da mina 18. Eu tinha operado no ano passado. Como eu ia embora?."

"Até hoje, os nossos documentos estão numa caixa, roupas em uma caixa, porque a qualquer momento pode vir uma notícia, ninguém sabe. Ninguém aqui consegue dormir direito. Muita preocupação e medo" --Abeliel de Oliveira

Abel diz viver 'amedrontado' e ressalta que os moradores só vão sossegar quando forem "para outra terra, para outro bairro". "Eu queria ir para uma terra fértil, onde tem vida, para que eu viva em paz com a minha família. E cadê a justiça aqui em Maceió? Ninguém toma providência, onde a gente tinha vida, eu não tenho mais nada", desabafa Abel.

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Em nota ao Terra, a Defesa Civil de Maceió informou que "nos Flexais, que sofrem com o isolamento socioeconômico já indicado [pelo órgão] em 2021, não há afundamento do solo causado pela mineração. A constatação do isolamento socioeconômico resultou no Termo de Acordo para implementação de 23 medidas socioeconômicas na região, que estão em andamento."

Mina da Braskem provocou afundamento de bairros am Maceió (Crédito: UFAL)
Foto: Reprodução/UFAL / Perfil Brasil

Também por meio de nota à reportagem, a Braskem disse que o Termo de Acordo, assinado pela empresa, Município de Maceió, Ministério Público Federal, Ministério Público do Estado de Alagoas e Defensoria Pública da União, tem como "objetivo reverter o ilhamento social da localidade".

"A Braskem segue trabalhando na implementação das medidas socioeconômicas acordadas. Das 23 iniciativas definidas em acordo com as autoridades, 14 já foram implementadas -- como os serviços de limpeza urbana e controle de pragas; rota de ônibus e transporte escolar exclusivos e gratuitos para os moradores; programa de capacitação profissional com 290 vagas já ofertadas em 14 cursos; realização de feiras para promover o comércio, a cultura e a gastronomia locais; e apoio psicológico para as famílias. Outras medidas estão avançadas, a exemplo da construção da creche-escola, unidade básica de saúde, e da requalificação viária", diz.

Conforme a empresa, o projeto contempla ainda a construção de novo centro comercial, espaço para feira livre e Centro de Apoio a Pescadores e todas as obras dependem de licenças específicas e autorizações dos órgãos competentes.

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"O pagamento de indenizações por ilhamento social já foi feito para mais de 99% das famílias, moradores e comerciantes. Além disso, em novembro de 2022, a Braskem repassou R$ 64 milhões ao município, para a adoção de medidas adicionais", informa a Braskem.

A empresa também acrescenta que a região dos Flexais é "constantemente monitorada e, segundo estudos técnicos realizados pelas autoridades, não apresenta movimentação de solo associada à subsidência."

O rompimento da mina 18

Pichação em casa em ruínas em bairro de Maceió critica empresa Braskem, acusada de ser responsável por afundamento de bairros na capital alagoana por conta da mineração.
Foto: Agência Brasil

Em dezembro do ano passado, uma das minas -- a 18 -- da empresa Braskem se rompeu por volta das 13h15 em um trecho da Lagoa Mundaú, no bairro do Mutange, em Maceió. No momento do ocorrido, a área estava isolada e desocupada.

Desde o final de novembro de 2023, após tremores de terra, a Defesa Civil tinha emitido um alerta para a possibilidade do rompimento e muitas famílias foram retiradas dos cinco bairros afetados: Mutange, Bebedouro, Pinheiro, Bom Parto e Farol. 

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O problema de afundamento foi causado pela extração de sal-gema --  material usado para produzir PVC e soda cáustica -- no local, o que gerou instabilidade no solo, segundo o Serviço Geológico do Brasil em 2019. Em Maceió, a mineração foi iniciada nos anos 1970, por meio da Salgema Indústrias Químicas S/A que, anos depois, se tornou a Braskem.

Desde 2018, as casas da região começaram a apresentar danos, como rachaduras, e a evacuação de moradores iniciou um ano depois. Desde maio de 2019, a Braskem encerrou a mineração e começou o fechamento definitivo de todas as 35 minas. No total, mais de 55 mil pessoas precisaram deixar suas casas.

Afundamento do solo por conta da mineração criou "bairros-fantasma" em Maceió
Foto: Divulgação/UFAL

Ao Terra, a Braskem disse que, desde 2019, "mantém o foco na continuidade das ações que garantam a segurança das pessoas e na implementação de medidas amplas para mitigar, compensar ou reparar impactos decorrentes da desocupação de imóveis nos bairros de Bebedouro, Bom Parto, Pinheiro, Mutange e Farol".

"Há, entre outros, cinco acordos principais celebrados com autoridades federais, estaduais e municipal, homologados pela Justiça, que abrangem diversas medidas além da realocação preventiva e compensação financeira das famílias: pagamento de apoio financeiro e auxílio para aluguel temporário; apoio psicológico; ações sociourbanísticas e ambientais; apoio a animais; zeladoria nos bairros; monitoramento do solo e fechamento definitivo dos poços de sal; integração urbana e desenvolvimento da comunidade dos Flexais; e indenização ao Município de Maceió. Todas as ações seguem em implantação conforme acordos com as autoridades e são fiscalizadas pelos órgãos competentes", informa em nota.

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"Cerca de 40 mil moradores das áreas de desocupação definida pela Defesa Civil, em 2020, foram realocados de forma preventiva. O Programa de Compensação Financeira e Apoio à Realocação (PCF) chegou ao fim de novembro com 19.178 propostas apresentadas aos moradores das áreas de desocupação. O número equivale a 99,9% de todas as propostas previstas. Também até novembro, 18.855 indenizações foram pagas, ou 98,3% do total esperado", completa.

Veja o momento em que mina da Braskem se rompe sob lagoa em Maceió
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Situação atual da mina

A Braskem informa à reportagem que os estudos técnicos apontam que a cavidade 18 está autopreenchida e análises complementares estão sendo feitas para submeter à aprovação da Agência Nacional de Mineração (ANM).

A Defesa Civil de Maceió disse que a mina 18 continua em processo de acomodação, e estudos visando confirmar o status de autopreenchimento desta cavidade estão em andamento. "As demais minas da região não apresentam alterações até o momento e continuam sendo monitoradas de forma ininterrupta. A região continua isolada, para que não haja risco à segurança de pescadores que utilizam a área do entorno", acrescenta.

Região próxima a mina de nº 18 de extração de sal gema da mineradora Braskem
Foto: Tiago Queiroz / Estadão / Estadão

Ainda conforme a Defesa Civil, além dos bairros atingidos, toda a área adjacente ao Mapa de Linhas de Ações Prioritárias (v5) é também monitorada.

"Nos bairros afetados, as demolições preventivas dos imóveis já chegaram a 67,33%, com quase 10 mil imóveis demolidos. Os imóveis foram demolidos por apresentarem rachaduras que colocavam em risco sua integridade estrutural. As solicitações de demolição são realizadas após vistorias e, sendo identificado riscos, imediatamente são executadas."

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"Enquanto houver risco, toda a região continuará isolada. Somente discussões futuras, dentro do que é previsto no Plano Diretor, poderão dar destino para toda a área desocupada", destacou no comunicado.

Em setembro, moradores de bairros atingidos realizaram um ato de protesto enquanto acontecia a reunião dos ministros da Economia dos países do G20 em Maceió. O protesto foi organizado pelo Movimento Unificado de Vítimas da Braskem (Muvb). Na ocasião, eles divulgaram uma carta aberta a respeito do sofrimento das famílias e pediu por medidas mais rigorosas para responsabilizar empresas transnacionais pelos crimes ambientais. A carta também questionou os valores apresentados para indenização das vítimas.

Em novembro, a Polícia Federal concluiu inquérito sobre crimes relacionados à atividade de mineração de sal-gema da Braskem em Maceió. A empresa e mais 19 pessoas físicas foram indiciadas. As acusações incluem crimes de poluição, dano ao patrimônio público e uso de relatórios falsos. O documento foi encaminhado ao Juízo da 2ª Vara Federal de Alagoas.

Fonte: Redação Terra
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