Medidas perfeitas, viço, cores preferíveis. Podíamos estar falando de padrões de beleza instituídos – em especial – para mulheres (e eles são muitos, em diversos casos preconceituosos e imperativos), mas os atributos elencados, desta vez, são considerados ‘desejáveis’ para os vegetais in natura.
Cascas sem marcas, brilho convidativo, dimensões ideais para caber na bandejinha (ou em equipamentos industriais), maturação controlada são alguns dos pontos observados por quem compra – seja na escala doméstica ou logística – frutas, legumes e verduras. Mas o que, de fato, é ‘comida feia’? O alimento ‘feio’ ou melhor dizendo ‘imperfeito’ não é tão bom quanto o padronizado? E pra onde vão os rejeitados por imperfeições estéticas, mas ainda aptos ao consumo?
Um padrão, muitas causas
O padrão ‘ideal’ para frutas, legumes e hortaliças e o descarte andam juntos. Como explica o site do projeto português Fruta Feia, originado em Lisboa, Portugal, há pouco mais de uma década, “os motivos para o desperdício são vários e ocorrem ao longo de toda a cadeia agroalimentar”. Modelos de produção intensivos, transporte e armazenagem inadequados e promoções que encorajam compras em excesso são algumas causas.
Alia-se a isso, o que os pesquisadores Edna Lisboa Aparecida Soares e Glauco da Costa Knopp explanam no artigo ‘Estética e Desperdício de Alimentos’: as normas de consumo não são regidas e respondem apenas aos aspectos legais e regulatórios, mas “também a padrões perceptivos, sentimentais e cognitivos partilhados intersubjetivamente (coletivamente) pelos indivíduos”.
Assim, nossas preferências por maçãs vermelhinhas e lustrosas e cenouras alaranjadas e longilíneas seriam influenciadas por modelos estéticos culturalmente instituídos aliados ao “desconhecimento sobre as reais propriedades nutricionais, sabor e frescor, bem como sobre as condições de segurança para consumo do alimento, ambas intrínsecas (não observáveis) ao produto”.
Outros dois pontos que determinaram a forma como vemos o que vem da horta e do pomar na contemporaneidade são mais abrangentes e estão ligados às mudanças que alteraram a forma de cultivar e globalizaram a produção agrícola a partir da Revolução Verde, no pós-Segunda Guerra. Impactam nos padrões ‘ideais’ as chamadas Variedades Altamente Produtivas (High Yielding Varieties) – em detrimento aos cultivares locais, a mecanização da lavoura e a automação dos processos, além de normas comerciais, entre outros. Se à época o intuito dos ‘pacotes tecnológicos’ era alimentar a população mundial que crescia, hoje a realidade ainda é desigual.
“A padronização da produção de alimentos vem sendo trabalhada por modificações genéticas intensivas há muitas décadas. Pós-Segunda Guerra Mundial, a Revolução Verde quer enfrentar uma crise de fome e são criadas indústrias. Essas mudanças trouxeram respostas a adequações de clima, solo e plantio, mas há o outro lado, o que gera monoculturas de commodities'’, afirma Alcione Pereira, fundadora e CEO da Connecting Food Brasil, foodtech brasileira especializada em conectar os alimentos bons para o consumo que seriam descartados por empresas às organizações que atendem pessoas em situação de vulnerabilidade social.
O consumidor é um importante demandante, por isso entender quais informações nos chegam e o que estamos escolhendo consumir – sua origem entre outros aspectos - é determinante
Desperdício em números
Segundo dados do Relatório do Índice de Desperdício de Alimentos 2024, do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente – PNUMA, em 2022 foram gerados cerca de 1,05 bilhão de toneladas de resíduos alimentares (incluindo partes não comestíveis) no mundo, o que abrange quase um quinto de todos os alimentos disponíveis para os consumidores.
Ficou difícil mensurar? Imagine que, em média, 132 quilos de comida foram desperdiçados por você e todas as outras pessoas na Terra. E que, desse total, 60% da perda se deu em âmbito doméstico, enquanto o varejo respondeu por 12% do não-aproveitamento. Em um mundo onde, no mesmo período, a estimativa da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura – FAO era de que entre 691 e 783 milhões de pessoas enfrentaram a fome e mais de 2 bilhões estavam em situação de insegurança alimentar. Essa conta não fecha.
Se esse cenário já não fosse alarmante, o impacto do desperdício é, também, ambiental e econômico. Só em relação ao aquecimento global, o desperdício de comida contribuiria, de acordo com a ONU, com 8% a 10% das emissões globais de gases de efeito estufa. Felizmente, há possibilidade de melhorar esse contexto e pequenas ações individuais e coletivas vêm fazendo a diferença.
Movimento Ugly Food (Comida Feia)
“No mundo inteiro há expressões de como a gente pode, de certa forma, provocar os padrões de consumo e, com os alimentos, o questionamento é sobre o que nos leva a fazermos nossas escolhas. No Brasil, o movimento Ugly Food (Comida Feia, em português) é expresso por diversas empresas [e entidades] que trabalham na venda direta de frutas e hortaliças e tendem a provocar uma nova educação do consumidor sobre um determinado padrão de consumo da perfeição, seja ele colocado por quem for. como explica a fundadora da Connecting Food Brasil.
O ‘ugly’ nada mais é do que a natureza oferece: sem padrões, com diferentes formas, tamanhos e ‘imperfeições’
Se há diversas manifestações do Ugly Food espalhadas pelo mundo, também é difícil precisar onde o movimento começou. Uma das iniciativas mais antigas que encontramos remete à década de 1980 e tem cunho mercantil: a experiência é de uma empresa australiana, que emergiu com foco no varejo de produtos com estoque excessivo e próximos da validade. A NQR abriu as portas em 1987 como alternativa aos consumidores para a economia de até 80% ao fazer supermercado e minimizando o desperdício de alimentos.
Já na Europa, um dos mais longevos movimentos não-governamentais contra o desperdício alimentar nasceu em 2008, na Dinamarca. O Stop Wasting Food já organizou e participou de mais de 200 projetos assistenciais, educacionais, de comunicação e intervenções ativas contra o mau aproveitamento de alimentos em âmbito local, nacional e internacional. Hoje, o SWF auxilia a Plataforma de Prevenção de Perdas e Desperdício Alimentares da União Europeia.
Dois anos antes, o artista e fotógrafo alemão Uli Westpahl iniciava a série fotográfica Mutatoes (2006), que vem registrando vegetais alimentícios ‘imperfeitos’ e chama a atenção para o tema de forma singular. A coleção apresenta “uma variedade deslumbrante de formas, cores e texturas, que só se tornam visíveis quando os padrões comerciais deixam de existir”, como informa Uli, e questiona a maneira como os humanos se relacionam com a natureza, em especial, por meio das indústrias alimentícias.
Há anos o chef britânico Jamie Oliver também encampa o movimento Ugly Food e contra o não-aproveitamento alimentar em outras esferas. Em seu site, traz informações sobre desperdício no Reino Unido, dá um ‘mapa’ para pessoas comuns se organizarem e reduzirem perdas e oferece uma série de receitas, parte delas, de ‘baixo orçamento’.
No Brasil
No Brasil, o cenário sobre a insegurança alimentar melhorou nos últimos anos, como apontam dados do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, ao comparar dados de 2023 da Pnad Contínua - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua e do POF (2017-18) - Pesquisa de Orçamentos Familiares, última a fornecer tais dados.
O país tinha 27,6% dos seus domicílios em situação de insegurança alimentar em 2023, sendo 18,2% com insegurança alimentar leve, 5,3% moderada e 4,1% grave
Por outro lado, aqui, como no mundo, também há desperdício de alimentos. O Jornal da USP – Universidade de São Paulo, traz dados do IBGE que indicam que o montante de perdas na pós-produção e pré-consumo chegam a 30%. Para mitigar tal contexto, o movimento Ugly Food também está presente no país via iniciativas da sociedade civil, propostas mercantis de novas formas de consumir e ações governamentais.
Iniciativas contra o desperdício
- O Sesc Mesa Brasil oferece receitas e informações em seu site. O projeto tem um trabalho de campo longevo e eficaz; criado em 1994, na cidade de São Paulo, em 2003 abrangeu todo o país e funciona como uma rede de combate à fome, ao desperdício e à má distribuição de alimentos, por meio de parcerias entre a sociedade civil, o empresariado e as instituições sociais. Só em 2024, registrou mais de 2,25 milhões de quilos de alimentos captados e distribuídos.
- A já citada Connecting Food faz a gestão inteligente de redistribuição de alimentos a serviço do combate ao desperdício e à insegurança alimentar. Desde 2018 está presente nos 26 estados e no Distrito Federal. Através da Connecting, 15 mil toneladas de alimentos ‘imperfeitos’ que seriam descartados e ainda estavam bons para o consumo trocaram o lixo pela mesa. São 25 milhões de refeições complementadas pela tecnologia de conexão. Mas há outras frentes na foodtech encabeçada pela engenheira de alimentos, Alcione Pereira.
- “Uma vertente forte dentro da Connecting é trazer as políticas públicas necessárias para o desenvolvimento do ambiente regulatório quanto ao desperdício e a doação de alimentos no país para Agenda Governamental. Somos co-fundadores do movimento Todos a Mesa junto com o iFood. Ele é a primeira coalizão de empresas da cadeia de alimentos privada voltada a melhoria desse ambiente regulatório e de comunicação e educação, além de operacionalização”, explica Alcione.
- As preocupações são, por exemplo, como estimular o ambiente de doação dentro das empresas e a disseminação informativa sobre os requisitos regulatórios - fiscais, legais, sanitários - para a doação segura tanto para a empresa, quanto para o recebedor. Alcione lembra que em 2020, a lei 14.016/2020 foi aprovada e passou a regular as normas sanitárias de doação e isentar o doador de alimentos de responsabilidade civil/ legal. Em paralelo, a Connecting atua com articulações para fomento de políticas públicas para a redução de desperdício e a doação.
- A ONG Banco de Alimentos é uma associação civil que recolhe alimentos que já perderam valor de prateleira no comércio e indústria, mas ainda estão aptos para consumo, e os distribui onde são mais necessários. Fundada em 1998, pela economista Luciana Chinaglia Quintão, em 25 anos – de 1998 a 2022 – entregou 16 mil toneladas de alimentos. Dados de abril deste ano, indicam que 127 toneladas de comida boa foram para o prato de quem precisa.
- A nutricionista Natália Rodrigues, explica que a ONG funciona sob três pilares: o primeiro é a Coleta Urbana. Aqui, as doações são resgatadas, selecionadas e entregues para entidades sociais em São Paulo que servem refeições diariamente. O segundo pilar é a Educação Nutricional, em parceria com universidades e entidades, criando estágios, cursos, palestras e oficinas para ensinar e estimular o máximo aproveitamento dos alimentos. O terceiro ponto de apoio é a Conscientização sobre o desperdício e quais atitudes podem ser tomadas para diminuir seu impacto.
Compre o imperfeito
Cada um, como indivíduo, pode fazer a diferença. Natália aponta que uma melhor organização sobre a alimentação semanal – com lista de compras assertiva e feita pela necessidade – já é um bom primeiro passo para reduzir o desperdício. Ir à feira – ou fazer a ‘xepa' – também. Nas feiras livres, ao contrário dos grandes varejistas, a possibilidade de compra de vegetais ‘menos’ padronizados é maior e eles tendem a durar mais, pelo menor tempo ‘de prateleira’.
Outras possibilidades são as empresas que investem no mercado dos ‘imperfeitos’, oferecendo cestas de legumes e verduras fora do padrão estético que você encontra nas gôndolas dos supermercados. Há cerca de quatro anos, a Fruta Imperfeita monta cestas de acordo com os imperfeitos disponíveis – oito tipos de legumes e oito de frutas semanalmente – e segundo a preferência e necessidade de cada consumidor. Alimentos ‘da época’ e comprados da agricultura familiar vão direto para sua casa, se você estiver na capital paulista.
Há pouco mais de dois anos, o Mercado Diferente oferece cestas de produtos orgânicos, direto do produtor, que englobam vegetais ‘imperfeitos’. Em 2024, a oferta chega a 50 cidades do estado de São Paulo e em Curitiba.
Buscamos dar condição de acesso à comida saudável às pessoas e minimizar o desperdício. Queremos ainda aumentar a produtividade de quem está no campo e, ainda assim, oferecer alimentos até 40% mais baratos do que o mercado tradicional
Aproveitamento integral
Se você cozinha em casa, pode também ajudar a minimizar o desperdício através dos preparos. A Fruta Imperfeita tem um canal no Youtube com receitas, bem como o Mercado Diferente. No site da Banco de Alimentos há uma cessão de receitas com alternativas para o aproveitamento integral dos vegetais, o chamado Upcycling Food.
“Existe um certo preconceito da população, com o preparo de partes não-convencionais que não oferecem riscos à saúde e são saborosas e nutritivas. Falta a conscientização sobre as possibilidades, porque há todo um custo de energia, trabalho e dinheiro para os alimentos serem produzidos e é preciso respeito para um consumo integral”, afirma Natália Rodrigues, nutricionista da Banco de Alimentos.
Nessa lógica, não apenas as partes convencionalmente integrantes da culinária são levadas em conta: cascas, talos e folhas podem ser consumidos em grande parte das vezes. O Banco de Alimentos do Ceagesp – Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo - auxilia na disseminação desse conhecimento com uma cartilha. Nela há receitas, além de boas práticas na manipulação, conservação e preparação dos alimentos.