As onças-pintadas, quase extintas e vistas como vilãs devido a uma antiga reputação, hoje são reconhecidas como símbolo de preservação e beleza do Pantanal. Iniciativas como a da ONG Onçafari, que monitoram e estudam o comportamento desses felinos em seu habitat natural, têm sido fundamentais para transformar a percepção dos moradores e visitantes, e ainda construir uma nova relação de respeito e admiração por esses animais.
Receba as principais notícias direto no WhatsApp! Inscreva-se no canal do Terra
A Onçafari foi fundada em 2011 pelo ex-piloto Mario Haberfeld, que trocou o carro de Fórmula 1 pela conservação dos felinos. A ideia da iniciativa era, também, estimular o ecoturismo no Brasil.
Localizada inicialmente no Refúgio Ecológico Caiman, no Pantanal, o projeto começou com a missão de habituar onças-pintadas, para que turistas do mundo todo pudessem observar esses felinos em seu habitat natural.
"Eu queria muito trabalhar com conservação, mas não sabia como, pois não sou biólogo nem cientista. Sempre gostei do assunto e, depois que me aposentei, resolvi viajar para ver todos os animais que sempre quis ver na natureza. Dessas viagens surgiu a ideia da Onçafari, de desenvolver o ecoturismo no Brasil", conta ele, em entrevista ao Terra.
Consideradas uma espécie "quase ameaçada" no hemisfério sul, as onças-pintadas já desapareceram de várias áreas nos Estados Unidos e no México. No Pantanal brasileiro, como a pecuária é uma das principais atividades da região, a presença das onças-pintadas em áreas próximas sempre gerou conflitos devido à predação de gado.
Por muito tempo, isso alimentou uma cultura de extermínio desses felinos, que passaram a ser vistos como inimigos em seu próprio território. No entanto, iniciativas como a Onçafari, voltadas para a educação e o combate à caça, têm transformado essa percepção nos últimos anos, promovendo a coexistência pacífica entre a fauna e as atividades humanas.
"Para mim, o que sempre encanta são as onças. A primeira vez que você vê uma onça, o encantamento que isso gera, e o engajamento que isso causa na preservação é muito grande, e muda a forma da pessoa se preocupar mais com o meio ambiente", comenta o fundador do projeto.
Haberfeld também ressalta como essa fascinação tem transformado a visão dos moradores locais, que antes viam as onças como ameaças.
"A gente faz trabalhos de levar os peões, as pessoas que moram nas fazendas, para ver as onças. E é incrível ver que muitos viam a onça como uma coisa que causa prejuízo, um bicho-papão, e agora olham ela com amor, querem saber como ela está, se tem filhote, o que a onça está fazendo", destaca.
Como funciona o projeto
O projeto se destaca por seu pioneirismo no processo de habituação das onças-pintadas, técnica que Haberfeld adaptou da experiência africana com leopardos.
"Seguimos a mesma onça por muito tempo, até que ela percebe que aquele carro e aquelas pessoas não representam perigo e começa a ficar mais tranquila na nossa presença", explica Haberfeld.
Esse processo começou com a onça Esperança, em 2011, que, desde então, já gerou sete filhotes e onze netos, contribuindo para a estabilização da população de onças na região.
Antes da criação da iniciativa, as onças-pintadas eram vistas apenas em raras ocasiões na Caiman, algo em torno de cinco vezes ao ano. Hoje, com o trabalho desenvolvido pelo projeto, esses avistamentos passaram a ocorrer cerca de 1,5 mil vezes por ano.
Nos últimos três anos, todos os visitantes da região tiveram a oportunidade de ver pelo menos uma onça em seu habitat natural, o que demonstra o impacto positivo do ecoturismo. Além disso, a Onçafari expandiu suas atividades para outras espécies, como a anta, o lobo-guará e a onça-parda, com 16 bases espalhadas pelos biomas brasileiros, como Pantanal, Amazônia, Cerrado e Mata Atlântica.
Além do ecoturismo
A Onçafari começou com foco no ecoturismo, mas rapidamente percebeu a importância de incorporar uma frente científica para entender melhor o comportamento das onças-pintadas. Esse estudo é inédito, especialmente por permitir o acompanhamento de gerações de onças em seu ambiente natural.
Além disso, o projeto desenvolveu um trabalho social significativo, apoiando comunidades indígenas e populações em áreas remotas, gerando empregos e empoderando mulheres. No Pantanal, onde a pecuária era a única opção de trabalho, o ecoturismo trouxe novas oportunidades para os moradores da reigão.
O projeto também tem um papel importante na educação, com a publicação de livros, produção de documentários com a BBC e National Geographic, e a reintrodução de onças-pintadas na natureza.
Em uma das primeiras iniciativas bem-sucedidas do mundo, a Onçafari conseguiu reintroduzir filhotes de onça que estavam em cativeiro, treinando-os para caçar e sobreviver na natureza. Hoje, o projeto conta com três centros de reintrodução, dois no Pantanal e um na Amazônia.
A atuação do grupo passa também pelas frentes anti-incêndios, advocacy ambiental, compra e preservação de grandes áreas de florestas que são essenciais para a sobrevivência desses felinos. Hoje, o projeto possui quatro áreas próprias -- três no Pantanal e um na Amazônia --, o que totaliza cerca de 70 mil hectares.
O desafio do fogo
Nos últimos anos, o Pantanal tem enfrentado um desafio cada vez mais ameaçador: as queimadas. Haberfeld demonstra preocupação com a intensidade e frequência dos incêndios na região, que têm devastado grandes áreas de vegetação e causado a morte de inúmeros animais.
Apesar dos esforços em prevenir e combater os incêndios, como a construção de aceiros e a utilização de tecnologia de monitoramento via satélite, o fogo deste ano foi particularmente devastador.
"Este ano foi impossível conter o fogo. O incêndio pulou rios, algo que nunca tínhamos visto antes", relata.
Em uma das áreas da Onçafari, cerca de 90% da propriedade foi queimada, causando a perda de muitas espécies, como a onça Gaia, filha de Esperança, primeira onça habituada pelo projeto.
"Encontramos a Gaia em um fragmento de mata queimada, junto com outros animais feridos, como tamanduás e cervos do Pantanal. A situação foi devastadora", explica o fundador da ONG.
Além da perda de Gaia, a equipe teve que lidar com o resgate e tratamento da onça Itapira, encontrada com as quatro patas queimadas.
"Tratamos dela por um tempo e a enviamos para um mantenedor em Brasília, que tem mais recursos para esse tipo de situação. A boa notícia é que ela está se recuperando bem e, esperamos, conseguiremos devolvê-la à natureza em cerca de um mês", relata ele, que pondera sobre a dificuldade de lidar com a magnitude da destruiçã.
Ele também destaca a gravidade da situação atual.
"Este ano está sendo o pior em termos de incêndios no Pantanal. Já queimamos mais de 2 milhões de hectares, muito mais do que no mesmo período de 2020, que já havia sido um ano crítico. O Pantanal é pequeno comparado a outros biomas, mas este ano já queimamos uma área maior do que a Suíça. É um momento extremamente triste e desafiador para a nossa equipe e para o Pantanal como um todo", lamenta.
A situação se agrava devido à falta de cheias no Pantanal, que, segundo o ex-piloto, faz parte de um ciclo natural essencial para o equilíbrio do bioma. "O Pantanal depende desses ciclos de cheia e seca para funcionar direito. Toda a matéria orgânica que deveria ter sido levada pelas cheias virou combustível para o fogo", acrescenta.
O impacto sobre a fauna local tem sido desolador. Segundo ele, todas as espécies de animais do Pantanall foram queimadas, principalmente tamanduás, cervos, macacos e a ágil onça-pintada.
Apesar das dificuldades, a Onçafari continua sua missão de preservação com iniciativas que vão além do Pantanal. A compra de áreas estratégicas e a criação de corredores ecológicos têm sido fundamentais para garantir a sobrevivência das espécies em grandes territórios.
"Ao comprar essas áreas, conseguimos encaixar todas as nossas frentes de trabalho, desde o ecoturismo até a reintrodução de espécies", afirmou Haberfeld.
Devido aos recentes incêndios que devastaram o Pantanal, a ONG Onçafari lançou a campanha "Recupera Pantanal" para arrecadar recursos destinados a ações emergenciais. As doações serão utilizadas na reconstrução dos recintos de reintrodução de animais, no resgate e cuidado dos bichos afetados pelo fogo, além de apoiar o trabalho incansável dos brigadistas na linha de frente do combate aos incêndios.
"A gente estima que teremos mais de 2 milhões de reais de perdas com esses incêndios, então toda a ajuda é importante", destaca Haberfeld.