Como família Grael se tornou esperança para jovens de baixa renda e para preservação da Baía de Guanabara

Em 26 anos, projeto social de velejadores olímpicos já estendeu a mão para mais de 20 mil jovens no Rio de Janeiro

27 nov 2024 - 05h00

Aos 25 anos, Tayanna Gomes viu sua vida virar de cabeça para baixo. Recém-separada e com a missão de criar os filhos sozinha, a jovem de Niterói esteve a um passo de desistir dos estudos. Mas encontrou a esperança às margens da Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro. A mão que precisava para se reerguer estava em uma modalidade esportiva que parecia muito distante de seu status social. E, além de uma formação profissional, a fluminense ganhou a oportunidade de olhar para o mar e o meio ambiente de outra forma. 

  • Esta é a primeira reportagem da série  Mais que Atletas da Água sobre como praias no Brasil têm sido transformadas com o apoio de medalhistas olímpicos.

Tayanna, que hoje tem 33 anos, é uma dos mais de 20 mil filhos do Projeto Grael. Na contraditória relação entre a falta de acesso a veleiros, canoas e esquifes --considerados de elite-- e as águas onde alguns dos maiores medalhistas olímpicos do Brasil velejaram pela primeira vez, a iniciativa busca democratizar o esporte e também ajudar a formar cidadãos mais conscientes sobre a importância da conservação do oceano.

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"O projeto me deu a mão e não desistiu de mim" -- Tayanna Gomes 

São 26 anos com a missão estender às mãos para jovens de baixa renda, entre 9 e 29 anos. E o projeto não só mudou a vida dos alunos, como também a de seus fundadores --Torben Grael, Lars Grael e Marcelo Ferreira. No caso de Lars, significou até a oportunidade de retomar a carreira como velejador, interrompida após um grave acidente em Vitória (ES). 

Lars Grael e Samuel Gonçalves celebram título do campeonato mundial da classe Star, em 2015
Lars Grael e Samuel Gonçalves celebram título do campeonato mundial da classe Star, em 2015
Foto: Divulgação

Em 1998, o barco do duas vezes medalhista de bronze foi atingido pela lancha de um homem embriagado durante uma prova. Lars sofreu a amputação da perna direita antes de poder conquistar o sonhado ouro olímpico. E foi ao lado de Samuel Gonçalves, ex-aluno do projeto, que o velejador chegou ao ápice da modalidade. Em 2015, a dupla conquistou o campeonato mundial da classe Star.

Incentivado pelo tutor, que veio a se tornar amigo e parceiro de equipe, o ex-aluno do projeto alcançou o alto rendimento e celebrou o mundial para o Brasil. Dois anos depois, também foi vice na categoria. Hoje, Gonçalves atua como coordenador da Academia Brasileira de Vela. 

Mais que Atletas da Água: como praias no Brasil têm sido transformadas com o apoio de medalhistas olímpicos
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Missão entre o mar e o rochedo

Vista do Projeto Grael para a Enseada de São Francisco, na Baía de Guanabara
Foto: Gabriel Gatto/Terra

O Projeto Grael vive entre o mar e o rochedo. Localizada em Jurujuba, bairro histórico de Niterói, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, a sede --um hotel e restaurante que foi adquirido pelos fundadores em 2004-- é emoldurada pela Enseada de São Francisco e dá as costas para o Morro da Viração.

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O bairro também tem uma relação antiga com o mar. Lá, fica uma das mais tradicionais vilas de pescadores do Estado. O acesso à região margeia a Baía de Guanabara, onde centenas de embarcações e cultivos de ostras e mexilhões dão vida às águas fluminenses. E é por esse caminho que percorrem, todas as semanas, os cerca de 500 alunos do Projeto Grael.

A partir dos 18 anos, os alunos também passam a receber formações profissionalizantes, com oficinas de manutenção de embarcações. Para os jovens, as oportunidades são sinônimo de esperança, como cita a ex-aluna Tayanna Gomes. 

Parte do acervo do Projeto Grael mostra conquistas dos fundadores, Torben Grael e Marcelo Ferreira
Foto: Gabriel Gatto/Terra

A escolha do local não é por acaso. Ali, nas águas da baía, Torben e Lars deram início às carreiras vencedoras na vela. O oceano, porém, já não é mais o mesmo do começo da trajetória esportiva dos irmãos Grael. A poluição tomou conta das praias e afastou a vida marinha da região. A limpeza de 80% da baía, prometida como o grande legado olímpico dos Jogos do Rio, não aconteceu.

E é nesse contexto em que se insere o pilar das atividades ambientais do Projeto Grael. Ao mesmo tempo em que os alunos aprendem a velejar, eles também são incentivados a lidarem com os problemas provocados pela poluição e contribuírem com a extinção da presença do lixo flutuante na baía. 

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"A gente costuma brincar que a Baía de Guanabara é o quintal desses alunos e, infelizmente, muitas vezes eles enfrentam o impacto da presença do lixo flutuante, que é um grande desafio que temos aqui. E pensando na importância de discutir esse tema, começamos a realizar ações de sensibilização para falar um pouco sobre o lixo flutuante, sobre o impacto dele na biodiversidade marinha", explica Monalisa Oliveira, coordenadora de projetos ambientais da instituição. 

Toneladas de lixo no oceano

Coordenadora de projetos ambientais, Monalisa Oliveira ajuda a promover atividades que sensibilizam alunos sobre a conservação do oceano
Foto: Gabriel Gatto/Terra

Os dados não são nada animadores. Todos os dias, cerca de 30 mil toneladas de plástico entram no oceano, segundo estimativa da ONG WWF. 

No caso do Rio de Janeiro, o Plano Estadual de Resíduos Sólidos (PERS/RJ) aponta que cerca de 17 mil toneladas de lixo são produzidas todos os dias no Estado -- destes, apenas 3% são destinados à reciclagem.

Entre as 10 zonas costeiras com maior risco de vazamento de lixo plástico para o oceano, estão três bacias hidrográficas fluminenses --Baía de Sepetiba, Foz do Rio Paraíba do Sul e a Baía de Guanabara. 

De acordo com o Comitê de Bacia da Região Hidrográfica da Baía de Guanabara (CBH), cerca de oito milhões de pessoas moram nas cidades banhadas pela baía – 52,23% da população de todo o Estado do Rio de Janeiro. Das águas fluminenses, 3,7 mil pescadores tiram seu sustento todos os dias. 

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Sob a perspectiva do relevante contingente populacional que vive próximo à baía, Monalisa ressalta a importância do desenvolvimento do senso crítico entre os alunos do projeto, para que a população, como um todo, seja sensibilizada sobre os problemas provocados pela poluição. 

"Um exemplo são os mutirões de limpeza de praia, que são realizados junto à comunidade. A gente faz um convite para que a comunidade participe desses eventos que acontecem de dois em dois meses, mais ou menos", explica. 

Atividades como mutirões de limpeza são comuns e de extrema importância no dia a dia do projeto. Além do impacto ambiental e da qualidade da água, a presença do lixo também afeta a prática esportiva. "Pode ser que um pedaço de plástico fique preso a uma embarcação, aos botes que a gente utiliza. Então, por muitas vezes, a gente realmente precisa dessas ações de limpeza das águas para poder realizar as nossas atividades". 

"É importante dizer que essas ações de sensibilização não buscam resolver o problema, são voltadas a promover o senso crítico desses alunos" - Monalisa Oliveira

Além dos mutirões, os alunos também participam de 'regatas ecológicas', em que velejam pela Baía de Guanabara para recolher, com a ajuda de equipamentos e dos aprendizados náuticos, resíduos encontrados flutuando na água. 

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Segundo Monalisa, o Projeto Grael é responsável por 67 ações ambientais, com a participação de 1,3 mil pessoas, dentre alunos e moradores da região, nos últimos dois anos. Estima-se que duas toneladas de resíduos já foram retiradas do oceano e das praias. 

Aprendizado por meio da brincadeira

Alunos do Projeto Grael participam de atividade lúdica sobre a conservação do oceano
Foto: Gabriel Gatto/Terra

Na rotina pedagógica do Projeto Grael, a educação ambiental é trabalhada de maneira transversal com os alunos, principalmente em dias de chuva ou com pouco vento, que não favorecem as atividades náuticas: "São momentos em que a gente consegue trabalhar a temática ambiental", afirma Monalisa. 

Com brilho nos olhos, os alunos interagem e aprendem por meio de atividades lúdicas, enquanto 'disputam' entre si. Mas é no mar que eles conseguem perceber a gravidade da situação.    

O estudante Kayque Gomes Pacheco, de 11 anos, é aluno do Projeto Grael há dois anos. Praticante da canoagem, ele afirma que é comum ter de lidar com a presença do lixo na superfície do oceano durante a atividade esportiva, especialmente durante a baixa da maré. 

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Aluno do projeto, Kayque Gomes, 11, é praticante de canoagem
Foto: Gabriel Gatto/Terra

Em sua passagem pelo projeto, Kayque também conta que levou para casa a importância do manejo do lixo: "Se você joga um lixo no mar, ele fica ali circulando. Algum animal pode ver, pensar que é alimento, comer e morrer. Afeta os animais e a você, também, se for tomar banho no oceano". 

"O trabalho que a gente pode desenvolver é de conscientização, de promover esse senso crítico, para que os alunos tenham a consciência de que é um trabalho diário, que todos nós somos responsáveis e que a gente, por muitas vezes, precisa mudar a nossa forma de consumo para conseguir contribuir para a melhora da qualidade ambiental, especialmente da Baía de Guanabara", destaca Monalisa. 

* Com coordenação de Fabiana Maranhão, a série de reportagens Mais que atletas da água foi realizada com o apoio do Edital Conexão Oceano de Comunicação Ambiental, promovido pela Fundação Grupo Boticário em parceria com a UNESCO.

Fonte: Redação Terra
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