"É uma prisão. Eu estou sendo feita de refém dentro da minha própria casa". É com essa frase que Bianca, uma das moradoras da região de Santo Amaro, bairro da Zona Sul de São Paulo, classifica o sentimento de conviver com a fábrica da Isover Saint-Gobain, empresa francesa que se define como "líder global em tratamento e isolamento térmico e acústico".
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Bianca se mudou para a região em meados de 2022. Ainda na fase de reforma de seu imóvel, ela já sentia um forte odor, mas não sabia de onde partia. De primeira, atribuiu a obras em outras casas, mas logo o serviço na vizinhança acabou e o incômodo no ar continuou.
Mãe de uma menina, ela tentou curtir atividades ao ar livre, mas por causa do cheiro nunca conseguiu por longos períodos. Com o passar dos meses, a sensação de ardência nos olhos e na garganta se mostrou presente. Ao citar o problema em conversas com vizinhos, ela notou que não se tratava de um caso isolado. Muitos apresentavam sintomas iguais.
"Eu me mudei quase no fim do ano, a fábrica estava em recesso, então vivi alguns dias sem sentir nada. Em janeiro, quando retornaram, voltou o inferno. Conversando com vizinhos, percebemos que não se tratava de uma reforma, mas sim da fumaça emitida pela Isover", contou ao Terra.
Incômoda, a fumaça impede que Bianca curta as áreas de lazer de seu condomínio e do bairro. Conforme relata, o bem-estar da comunidade depende da direção do vento: se as rajadas empurram a fumaça da chaminé da fábrica ao bairro, a única possibilidade de respirar minimamente bem é fechar as janelas e basculantes, e ficar trancado dentro de casa.
"Restringe muito a minha vida essa fumaça. Porque num dia que eu quero estar com a minha filha do lado de fora, a gente precisa ficar trancado dentro de casa, respirando o mesmo ar. É uma prisão, eu estou sendo feita de refém dentro da minha própria casa. Vim para cá para ter qualidade de vida, mas minha vida só piorou. Eu era uma pessoa ativa, corria, fazia exercício. Eu parei porque não dá para inalar essa fumaça. Não dá para deixar uma fresta aberta, o ar é irrespirável. Essa fábrica está custando minha saúde, meu dinheiro, minha paz e minha liberdade", disse a moradora, em entrevista ao Terra.
Para além de si mesma, o problema de Bianca envolve sua filha. A menina apresentou piora na saúde respiratória desde que se mudou para a região. Ela já possuía um histórico de rinite, mas, segundo a mãe, a situação piorou bastante desde que chegou ao bairro.
"Ela é altamente alérgica a ácaros. A ideia de vir para cá era que ela respirasse melhor, só que a alergia dela piorou muito desde que chegou. Ela vive com coceira no nariz, incomodada, tem que faltar na escola em dias de crise e antialérgico não resolve. A médica conversou comigo e disse que a única solução é tirar ela daqui. A questão é: entendo que estamos em São Paulo, o ar é poluído, mas antes era gerenciável. Agora, está impossível", desabafa.
Secura na garganta, ardência e enxaqueca
Carol e Lilian, também moradoras de Santo Amaro, têm relatos semelhantes. Ambas revelaram ao Terra que convivem com secura na garganta, ardência nos olhos e até enxaqueca oftálmica. A mãe de Lilian, ao passar alguns dias em sua casa, apresentou problemas respiratórios e foi hospitalizada. Foi preciso tomar corticóides para ficar estável.
Na época, médicos a diagnosticaram com asma e até receitaram bombinha. Lilian contou que, no entanto, dias após a mãe retornar para sua casa, no bairro do Guarapiranga, Zona Sul de São Paulo, os problemas passaram e ela sequer precisou utilizar a bombinha de ar.
"Logo quando cheguei na região senti o cheiro. Eu trabalho em casa, muitas vezes sentia ardência nos olhos, precisava trocar de cômodo. A sensação é como se alguém estivesse fazendo um procedimento estético com formol e você aspirasse aquela fumaça. É horrível", afirmou Lilian. "Me atrapalha muito, tira meu conforto e me impede de trabalhar".
Determinada a resolver o problema, em 2023, Bianca registrou reclamações na Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (CETESB). Os chamados, segundo diz, eram finalizados sem resposta ou protocolo. Se recebia retorno, eram mensagens automatizadas. Com isso, resolveu abrir um inquérito civil no Ministério Público, no qual alegou, inclusive, uma suposta negligência da CETESB. Foi a partir disso, ela contou, que as coisas "começaram a andar".
Carol e Lilian seguiram o mesmo caminho e reclamaram de uma suposta negligência do órgão ambiental. Vendo seus chamados à CETESB receberem respostas desconexas, certa vez, Carol enviou um texto lorem ipsum, em latim, sobre um assunto aleatório, do qual recebeu uma resposta sobre o ruído da fábrica. Para ela, o experimento com as solicitações mostraram que o órgão sequer lê as queixas.
Visando tornar pública a questão do odor, Carol e Lilian fundaram a página 'Respira Santo Amaro', no Instagram. Lá, recebem centenas de relatos sobre a qualidade do ar. A situação é tão crítica que, segundo elas, alguns moradores relatam que até os animais são afetados.
"As pessoas falam que os bichinhos vivem espirrando, coçando o nariz… Tem gente que mora aqui desde os anos 2000 e não sabia que era da fábrica, mas que sentia o cheiro e os sintomas. Tem relato de 1997, de um funcionário [da Isover] que estava doente e melhorou quando saiu de férias, mas que piorou novamente quando voltou a trabalhar", contou Carol.
Carol decidiu abrir sua própria queixa no Ministério Público de São Paulo, em janeiro de 2024, após Lilian identificar, por meio de um software da própria CETESB que mensura a qualidade do ar, substâncias químicas nocivas na região de seu bairro. O Terra consultou a ferramenta na segunda-feira, 22, e identificou quantidades de CO2 (Dióxido de Carbono) e O3 (Ozônio). Este último é considerado agressivo para o trato respiratório, causando inflamação das vias aéreas, tosse, dor no peito, dificuldade em respirar, dores de cabeça e até náuseas.
O que diz a CETESB
Acionada pelos moradores devido à fumaça e ao barulho da fábrica, a CETESB realizou algumas visitas ao bairro, a última delas em 11 de julho de 2024. Em um laudo acessado pelo Terra, é possível identificar que, em uma das vistorias, que acabou não tendo coleta por questões de "vazamentos significativos", o órgão tentou encontrar sinais de amônia, formol e fenol na chaminé, o que assustou os moradores.
Sem citar as denúncias de suposta negligência e ausência de resposta, o órgão informou que a fábrica já foi advertida e multada. Ao Terra, a CETESB informou que, após vistoria dentro da sede da Isover, foi aplicada uma advertência, em junho de 2023, e duas multas, em outubro de 2023 e fevereiro de 2024, por emissão irregular de odores advindos da chaminé.
Segundo consta, foram aplicadas também uma advertência em dezembro de 2023, e uma multa, em abril de 2024, por emissão de ruídos além do permitido pela legislação ambiental. Ao todo, o órgão diz ter realizado, só em 2024, cerca de 16 vistorias técnicas no bairro e na fábrica, além de uma série de reuniões técnicas com representantes da empresa francesa.
"A CETESB segue atendendo as demandas feitas pela população por meio de seus canais de atendimento, bem como acompanhando e fazendo verificações periódicas na região para assegurar que as ações mitigatórias propostas estão sendo implementadas de modo adequado e nos prazos estipulados", diz um trecho do comunicado enviado à reportagem.
O que diz a Isover Saint-Gobain
Procurada pelo Terra, a Isover Saint-Gobain optou por não responder alguns questionamentos e decidiu se expressar por meio de nota. No texto, a empresa não cita as multas relacionadas ao barulho e às emissões da chaminé. Ela ainda enfatiza que a fumaça emitida não pode ser considerada tóxica.
Segundo a empresa francesa, das emissões da fábrica, 99,997% são compostas por ar e vapor d’água, e os 0,003% restantes são elementos químicos. Conforme alegam, devido à baixíssima concentração de químicos, a fumaça não é prejudicial ao ambiente ou à saúde das pessoas no entorno da fábrica.
Já em relação ao barulho, a empresa disse que realiza medições frequentes dos ruídos para atender aos limites da lei. Além disso, afirmou que implantou um plano de melhoria, buscando beneficiar colaboradores e a comunidade.
"Exemplo é a obra de isolamento sonoro e a obra de redução de odor, realizada em 2023", citou a fábrica.
Apesar do posicionamento da empresa e seu plano de ação, moradores de Santo Amaro afirmam que não sentiram qualquer diferença no odor. Em relação ao barulho, as pessoas reconhecem a diminuição dos decibéis, mas, segundo mensuração própria, a empresa ainda não atingiu o ideal e opera acima do permitido.
A Isover reiterou que suas emissões [ruídos e fumaça] estão dentro dos padrões e que está em condição regular com a CETESB, até então, sem infrações à legislação brasileira.
Médico contradiz fábrica
Ao contrário do que diz a Isover, o médico pneumologista Eduardo Algranti confirmou ao Terra que inalar as substâncias químicas citadas no laudo da CETESB – mesmo que em baixa quantidade – pode, sim, causar sintomas como os que foram relatados, como tosse, ardência nos olhos e inflamação das vias respiratórias, por exemplo. O especialista ainda citou os prejuízos da exposição a longo prazo.
"Essas substâncias são elementos irritantes respiratórios conhecidos. Então, sim, podem gerar em qualquer quantidade crises em pessoas que são alérgicas ou que já têm algum tipo de sensibilidade no sistema respiratório. Inalando esse ar, as pessoas podem dar entrada nos hospitais com febre, crises de asma, crises de rinite e podem também desenvolver algum tipo de infeção respiratória por causa da irritação da via aérea", listou o pneumologista.
De acordo com o médico, quanto mais pessoas puderem evitar a fumaça, melhor. Fechar as janelas, como a comunidade já tem feito, é uma ótima maneira de se blindar. Ele também recomenda, enquanto a fábrica permanecer no bairro, a hidratação constante, uso de umidificador de ar e o uso de máscara de proteção para pessoas com sistema respiratório sensível.
As medidas, segundo o pneumologista, são paliativas. O ideal mesmo é não conviver com fumaça nenhuma, pois alguns químicos, como amônia e fenol, são comprovadamente cancerígenos, segundo atestado pelo Instituto de Saúde e Pesquisa em Câncer (IARC).
E agora, como fica Santo Amaro?
No Brasil desde 1951, no momento, A Isover está em processo de renovação da sua licença de operação. No site da CETESB, o chamado consta em aberto. Para os moradores, o ideal é que fábrica se mude. Segundo eles, no passado não existia tantas reclamações porque o bairro era majoritariamente comercial, o que mudou. Questionada sobre a possibilidade de realocação, a empresa optou por não responder.
Conforme consta no Plano Diretor Estratégico de São Paulo, indústrias do tipo 2, de alto impacto urbanístico e ambiental, como a Isover Saint-Gobain, podem atuar em zona mista, como o bairro de Santo Amaro, desde que se adequem aos padrões da região. Isso inclui respeito aos níveis de ruído, de vibrações e da poluição. Para as pessoas que moram no entorno, a fábrica não tem conseguido se adequar.
Em meio ao impasse com os vizinhos, a fábrica francesa reforçou que pretende manter diálogo aberto com a vizinhança e permanece à disposição para elucidar dúvidas.
- Confira o posicionamento da CETESB na íntegra:
A CETESB realizou, no dia 11 de julho, reunião pública com moradores da região e representantes da Isover Saint-Gobain, para sanar dúvidas da população e apresentar o andamento da análise do Plano de Melhoria Ambiental apresentado pela empresa.
Autuações - Após vistorias nas instalações da empresa, aplicou uma advertência, em junho/23, e duas multas, em outubro/23 e fevereiro/24, por emissão irregular de odores. Foram aplicadas, também, uma advertência, em dezembro/23, e uma multa, em abril/24, por emissão de ruídos, além do permitido pela legislação ambiental. Em 2024 já foram realizadas 16 vistorias técnicas ao local, além de uma série de reuniões técnicas com representantes da empresa.
A Cetesb segue atendendo as demandas feitas pela população por meio de seus canais de atendimento, bem como, acompanhando e fazendo verificações periódicas na região para assegurar que as ações mitigatórias propostas estão sendo implementadas de modo adequado e nos prazos estipulados.
- Confira nota na íntegra da Isover Saint-Gobain:
A Saint-Gobain reitera que opera dentro de todas as regras ambientais vigentes no Brasil, estando em condição regular junto à Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (CETESB). A empresa ressalta ainda que as emissões estão dentro dos parâmetros legais, as quais são monitoradas constantemente, não havendo indícios ou comprovações de processos industriais que estejam em desacordo com a legislação brasileira.
Das emissões da fábrica, 99,997% são compostas por ar e vapor d’água, e os 0,003% restante são elementos químicos que, devido a sua baixíssima concentração, não são prejudiciais ao ambiente e à saúde das pessoas. Dessa forma, a empresa não possui autuações ou multas relacionadas às emissões da chaminé, visto que a pluma não é tóxica.
A companhia reforça que realiza medições frequentes dos ruídos em horários variados, de modo a garantir o atendimento aos limites permitidos pela legislação. Além disso, implantou um plano de melhoria ambiental com mais de 40 ações, com resultados práticos efetivos, sempre buscando soluções inovadoras que beneficiem colaboradores e comunidade – tais como as obras de isolamento acústico e redução do odor realizadas durante 2023 e outras melhorias que, atualmente, se encontram em andamento. Todas as ações que compõem o plano estão sendo trabalhadas de maneira conjunta entre a empresa e a Cetesb.
A Isover mantém um diálogo aberto e transparente com as pessoas que vivem no entorno da fábrica e permanece à disposição para esclarecer possíveis dúvidas ou questionamentos por meio do seu canal de atendimento: faleconosco-santoamaro@saint-gobain.com.