A pandemia de covid-19 estava no auge quando a família Cerchiari decidiu deixar a casa recém-construída e a rotina típica da cidade para viver em um veleiro. O pai, Daniel; a mãe, Ana Carolina; e os filhos Heitor, de 10 anos, e Catarina, de 4, têm percebido desde 2020 como a vida pode ser azul da cor do mar.
Ao Terra, Ana Carolina conta que a jornada começou anos antes, em 2003, quando conheceu Daniel. Ele havia acabado de voltar de um intercâmbio nos Estados Unidos e veio de lá com, segundo ela, "outra cabeça".
"Ele sempre falava nessa ideia. Só que naquela época, há 20 anos atrás, não era tão difundido, não tinha tanta gente com essa ideia de morar num veleiro. Então eu falava: 'Não, esse menino é doido! Onde é que eu tô me enfiando?' E ele sempre com essa ideia", relembra.
Ao longo do namoro, Daniel mostrou vários barcos brasileiros e estrangeiros quando visitavam o Centro Norte, em Salvador, de onde os dois são naturais, e tentava convencer Ana Carolina de que era possível ter essa vida. Em 2010, um ano antes de se casarem, compraram o primeiro veleiro.
"O barco era todo destruído. Precisava de muito melhoria", Ana conta, aos risos.
Juntos, reformaram o barco e partiram para pequenos passeios.
"A gente ia com um grupo de amigos velejar e foi aí o meu primeiro contato com a vela. Dessa forma, eu comecei a me encantar por essa vida. Mesmo sem conforto, sem estrutura, ainda assim, me encantei", diz. "Eu comecei a amadurecer a ideia de um dia morar num veleiro. Antes, a gente falava pelo mundo, mas vamos ser otimistas. Hoje eu penso: primeiro pelo Brasil, aí no futuro pelo mundo".
Encantada com a ideia, Ana agora precisava garantir que o barco estivesse pronto para quando pudesse realizar seu sonho de ser mãe. No entanto, durante o processo de gravidez de Heitor, e os primeiros meses do bebê, o barco foi ficando de lado até, por fim, ser vendido. O dinheiro foi investido em um terreno em Lauro de Freitas.
"Tudo da nossa vida foi pensando nesse sonho, tudo. A casa foi construída pensando nesse sonho. Compramos o terreno pensando nesse sonho, que a gente ia construir a casa para vender um dia, pra gente poder ir pra essa vida. Então, cada prego que a gente colocou naquela casa foi pensando em vender, que um dia a gente ia vender", afirma.
Ela relembra que, durante este período, pensaram em dar um irmãozinho para Heitor, para quando viajassem, ele não se sentisse sozinho. Na primeira tentativa, quando o menino tinha três anos, Ana teve perda gestacional. Catarina veio depois, e foi aí que a aventura começou.
Mudança para o barco e início de pandemia
"Catarina nasceu em 2020, início de pandemia. Tinha 15 dias que a pandemia tinha começado, a casa tava ficando pronta, terminando de colocar os armários. Eu tava no hospital com ela. Ela tinha acabado de nascer, não tinha nem descido do berçário ainda. Eu tava com ele no quarto, ele olhou pra mim e falou: 'Chegou a hora'", relembra Ana.
Naquele momento, Ana e Daniel decidiram vender a casa para morar no barco. Entre risos, ela brincou: "Imagine, imagine! Eu falei: 'Meu Deus, calma! A Catarina nem desceu, deixa ela descer [para o berçário]'".
Quando voltaram para casa, com a cabeça mais fria, os dois decidiram prosseguir com a ideia de vender o imóvel. A transação aconteceu quando a bebê tinha seis meses. De acordo com ela, o imóvel tinha 240 m² e quatro suítes.
Além da casa, eles também venderam a maioria dos móveis, levando apenas o básico.
"Catamos poucas malas, porque o barco não tinha condições. É muito pequeno, muito pequeno. Menor que um apartamento. Simplesmente não cabe muita coisa", destaca.
Há dois anos, a família mantém a rotina na embarcação. Ana esclarece que a primeira ideia não era saírem viajando e que, antes, eles estão se preparando financeiramente para a jornada.
A "divertida" rotina da família no barco
Ana Carolina conta que, desde do início, as crianças se adaptaram super bem. Atualmente, a família está ancorada em Simões Filho, no Porto de Aratu, e tem uma rotina tão normal quanto qualquer outra.
"As crianças estudam em uma escola em Lauro de Freitas. Então, a gente vai junto de manhã cedo levar as crianças pra escola. O Daniel vai trabalhar e eu fico acompanhando as crianças. No final do dia, ou eu vou com as crianças ou Daniel vai e a gente se encontra no barco. [...] A gente vem e volta todos dias pra levar as crianças pra escola. É um pouco longe, mas a gente colocou no papel e viu que tudo valeria a pena", explica a velejadora.
Segundo ela, as crianças adoram ter contato com a natureza.
"As crianças vivem. Elas vivem em contato com a natureza, elas brincam livres. Não tem questão daquelas crianças que ficam muito na televisão, em apartamento fechado. Eles brincam", destaca.
"O meu filho mais velho tem uma turminha de amigo lá no clube, né? Lá tem muita criança, a gente tem muitos amigos, muitos. Então, ele ama. Aí vai pescar, vai jogar bola, vai tomar boi de mar. [...] Quando o Heitor nasceu, ele também já nasceu envolvido nessa ideia. Então, ele já sabia que iríamos um dia fazer essa aventura. E aí, quando fomos para o barco, ele se adaptou super bem", conta a velejadora Ana Carolina Cerchiari.
Além da escola, Heitor também aprende como cuidar do veleiro na prática, contando sempre com a orientação dos pais. Já Catarina é a mascotinha do clube onde a família está ancorada.
"Quando eu cheguei lá com ela, com um ano e meio, eu não podia deixar essa menina solta, andar um passo, porque tudo era rodeado de mar. Então, todo mundo perguntava: 'Essa menina não cai no mar? Cuidado!' Era o que mais o pessoal ficava preocupado. Eu falei: 'Gente, calma! Eu sou uma mãe 100% ao lado dela. Eu não largo ela um minuto. Então, não se preocupe, porque ela não vai cair no mar'", diz.
"Hoje, ela já tem quatro anos, já é diferente de um ano e meio, né? Hoje ela já tem noção do perigo. Já tem noção que não pode se jogar ali, mas eu não largo ela um segundo", explica a mãe.
Ana destaca que ama a vida que a família vive, mas que há desafios. O pouco espaço, por exemplo, é um desafio.
"O banho, questão de banheiro é um pouco diferente, o tipo de dar descarga, o banho é um duchinha. Aí, toma banho, tem que ligar a bomba pra água escoar pro mar. A geladeira é muito pequena, às vezes fico pensando: 'Meu Deus do céu, não cabe nada'", conta. "Mas, assim, a gente vai se acostumando. A gente se acostuma com pouco e aí a vida fica mais simples, né? A gente não precisa de muito pra viver".
Hoje, Ana Carolina não trabalha, mas deixa claro que é por opção própria.
"Quando moramos no barco com a nossa família. É para estarmos mais perto um do outro. Abri mão [da vida profissional] para estar do lado dos meus filhos, estar com eles, educando de perto, acompanhando de perto. Ainda mais que a gente foi morar no barco. Tenho filhos pequenos e eu preciso estar com eles", explica.
A família mantém uma página no Instagram (@familiacerchiari), onde postam um pouquinho de como é tudo. Seguindo o plano, daqui a dois ou três anos, os quatro devem zarpar para conhecer novos mares.