No Acre, população tem que lidar com seca histórica enquanto respira fumaça

Enquanto mundo celebra mais um Dia da Amazônia, repórter do Terra relata situação de municípios isolados por causa da seca dos rios

5 set 2024 - 05h00
(atualizado às 09h20)

Quando o escritor Euclides da Cunha embarcou rumo ao Acre em 1904, ele não imaginava que aquelas águas turvas e cheias pelas quais navegava estariam tão vazias um século depois. Nem mesmo a dona Raimunda Souza, de 62 anos, que mora na região do Rio Macauã, no interior do Estado, pensou que um dia pudesse sofrer tanto com a seca dos rios como nos dias de hoje. 

"É muito verão, maior do que o poderia [ser]", diz em entrevista ao Terra, em referência ao verão amazônico, que se estende de julho a novembro, ao contrário do verão no restante do País, que começa em novembro. 

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Em visita à casa de dona Raimunda, que mora com seus filhos e o marido, Antônio Souza, de 70 anos, me aventurei e fui até a beira do rio Macauã. Chamo de aventura, porque o rio está tão seco que é necessário descer um extenso barranco até chegar ao local. 

Amazônia pode ter seca histórica em 2024
Amazônia pode ter seca histórica em 2024
Foto: Adrielle Farias/Terra

"De uns anos pra cá, 'tá' secando mais, é mais forte. Esse ano foi mais forte. Em agosto, [a gente] era acostumado com friagem. De uns tempos pra cá, eu não vejo mais. O verão tá muito forte, a poeira também", lamenta.

Para ela, outro problema que tem se agravado é a fumaça proveniente das queimadas, já que convive com problemas respiratórios e, no momento, enfrenta dificuldades para dormir: "Muito cheiro de fogo, de fumaça, fica abafado".

Não é novidade, no entanto, que o verão na Amazônia tem se intensificado com o passar dos anos. Em setembro do ano passado estive ao lado de Raimundão, primo de Chico Mendes, na Reserva Extrativista na qual ele vive no interior do Acre. A situação era a mesma: uma crise hídrica sem precedentes em uma região que em outro momento havia sido abundante

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Amazônia pode ter seca histórica em 2024
Foto: Adrielle Farias/Terra

Daniela Dias, coordenadora de projetos da SOS Amazônia, explica que, neste ano, os rios começaram a secar antes do previsto.

"A gente pode considerar isso em uma perspectiva bem lógica: a seca veio antes do que o esperado e de maneira mais intensa pela falta de chuva, e o calor extremo acaba fazendo com que haja essa mudança na dinâmica dos rios, os levando a estarem mais secos. Isso demonstra a tendência de piora que há, caso a gente não consiga priorizar a recuperação das bacias hidrográficas", descreve.

Mas existe relação entre os rios secos, queimadas e os altos níveis de poluição? Segundo a especialista, a bacia amazônica não age apenas no abastecimento das cidades, mas é também "um berço" de espécies e fundamental para a manutenção da floresta.

[A bacia amazônica] é um regulador das chuvas e necessário para sobrevivência das comunidades ribeirinhas, que tendem a ser os principais atores a manter a floresta em pé e a saúde das águas.

Em suma, quanto mais se desmata, mais o calor se agrava e mais a bacia hidrográfica fica desregulada. Apesar de o verão ser um fenônmeno natural, esses fatores externos afetam a regulação do clima e alteram a sua normalidade. Daniela diz que, caso não sejam elaborados planos de mitigação e adaptação climática, a tendência é de piora. 

"Nós não podemos confundir o natural com o extremo. A forma com que o modelo de produção e exploração de bens naturais se intensificou nas últimas décadas colocou os bens da natureza apenas enquanto elemento de mercado, sem considerar os serviços ecossistêmicos", critica. 

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Amazônia pode ter seca histórica em 2024
Foto: Adrielle Farias/Terra

Amazônia pode viver seca histórica

O Centro Nacional de Monitoramento de Desastres Naturais (Cemaden) aponta que o Brasil está atingindo uma seca história este ano, já que até o momento esta é a pior desde 1950. O Rio Madeira, por exemplo, que é um dos maiores do mundo, atingiu seu menor nível em 60 anos nesta semana, chegando a 1,02 metro. 

"Nós não tínhamos, décadas atrás, extensões de pasto tão grandes, índices de desmatamento tão altos. As cidades cresceram de maneira desordenada", afirma a coordenadora do SOS Amazônia.

Com o nível das águas baixo, municípios do interior do Acre, por exemplo, sofrem com a dificuldade de deslocamento pelos rios. A cidade de Marechal Thaumaturgo é um exemplo representativo, segundo o ativista Khelven Castro, que cita também que os aeroportos estão fechados por causa da fumaça.

"A gente percebe que o Estado não está preparado para mitigação das mudanças climáticas. As comunidades ribeirinhas extrativistas utilizam os rios para trafegar. Eles precisam desse acesso para conseguir ir para suas comunidades. O rio gira em torno dessa vivência", diz o membro do SOS Amazônia. 

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Barcos encalhados em Marechal Thaumaturgo
Foto: Khelven Castro

Segundo Khelven, que mora em Rio Branco, capital do Acre, ele ainda não conseguiu voltar para sua casa. Sem a possibilidade de trafegar por barcos e com os aeroportos fechados, ele aguarda enquanto outras alternativas não aparecem.

Prejuízo também para estudantes

O Acre também enfrenta outro problema: os municípios isolados precisam de soluções para os alunos da rede pública. Aberson Carvalho, secretário de Educação do Estado do Acre, diz que é preciso agir com previsibilidade. Houve mudança até no cardápio da merenda escolar: a prioridade são alimentos enlatados. 

"São municípios de difícil acesso, que não têm acesso por terra, só vai por água ou via aérea. Normalmente, tem uma logística diferenciada, mas quando a gente perde o transporte fluvial, é preciso encontrar outra solução. Estamos encaminhando alimentação para três meses", conta.

Centro de Rio Branco, capital do Acre, está tomado por fumaça
Foto: Adrielle Farias/Terra

Em agosto, o Brasil teve o maior número de focos de queimadas desde 2010. O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) registrou 68.635 casos, sendo que, destes, mais de 80% ocorreram na Amazônia e no Cerrado. Em Rio Branco, o nível da fumaça ficou tão elevado que a prefeitura decidiu suspender as atividades escolares até que tudo volte à normalidade.

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Rio Branco tem o pior índice de qualidade do ar, de acordo com o IQAir. No momento, a capital acreana se encontra na classificação "perigoso", ou seja, a pior em toda escala. No monitoramento realizado na quarta-feira, 4, a qualidade do ar marcava 450 µg/m3 (microgramas por metro cúbico), sendo que o recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) é 15 µg/m3. Na terça-feira, 2, o índice chegou a marcar preocupantes 700 µg/m3. 

Fonte: Redação Terra
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