Quando o escritor Euclides da Cunha embarcou rumo ao Acre em 1904, ele não imaginava que aquelas águas turvas e cheias pelas quais navegava estariam tão vazias um século depois. Nem mesmo a dona Raimunda Souza, de 62 anos, que mora na região do Rio Macauã, no interior do Estado, pensou que um dia pudesse sofrer tanto com a seca dos rios como nos dias de hoje.
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"É muito verão, maior do que o poderia [ser]", diz em entrevista ao Terra, em referência ao verão amazônico, que se estende de julho a novembro, ao contrário do verão no restante do País, que começa em novembro.
Em visita à casa de dona Raimunda, que mora com seus filhos e o marido, Antônio Souza, de 70 anos, me aventurei e fui até a beira do rio Macauã. Chamo de aventura, porque o rio está tão seco que é necessário descer um extenso barranco até chegar ao local.
"De uns anos pra cá, 'tá' secando mais, é mais forte. Esse ano foi mais forte. Em agosto, [a gente] era acostumado com friagem. De uns tempos pra cá, eu não vejo mais. O verão tá muito forte, a poeira também", lamenta.
Para ela, outro problema que tem se agravado é a fumaça proveniente das queimadas, já que convive com problemas respiratórios e, no momento, enfrenta dificuldades para dormir: "Muito cheiro de fogo, de fumaça, fica abafado".
Não é novidade, no entanto, que o verão na Amazônia tem se intensificado com o passar dos anos. Em setembro do ano passado estive ao lado de Raimundão, primo de Chico Mendes, na Reserva Extrativista na qual ele vive no interior do Acre. A situação era a mesma: uma crise hídrica sem precedentes em uma região que em outro momento havia sido abundante.
Daniela Dias, coordenadora de projetos da SOS Amazônia, explica que, neste ano, os rios começaram a secar antes do previsto.
"A gente pode considerar isso em uma perspectiva bem lógica: a seca veio antes do que o esperado e de maneira mais intensa pela falta de chuva, e o calor extremo acaba fazendo com que haja essa mudança na dinâmica dos rios, os levando a estarem mais secos. Isso demonstra a tendência de piora que há, caso a gente não consiga priorizar a recuperação das bacias hidrográficas", descreve.
Mas existe relação entre os rios secos, queimadas e os altos níveis de poluição? Segundo a especialista, a bacia amazônica não age apenas no abastecimento das cidades, mas é também "um berço" de espécies e fundamental para a manutenção da floresta.
[A bacia amazônica] é um regulador das chuvas e necessário para sobrevivência das comunidades ribeirinhas, que tendem a ser os principais atores a manter a floresta em pé e a saúde das águas.
Em suma, quanto mais se desmata, mais o calor se agrava e mais a bacia hidrográfica fica desregulada. Apesar de o verão ser um fenônmeno natural, esses fatores externos afetam a regulação do clima e alteram a sua normalidade. Daniela diz que, caso não sejam elaborados planos de mitigação e adaptação climática, a tendência é de piora.
"Nós não podemos confundir o natural com o extremo. A forma com que o modelo de produção e exploração de bens naturais se intensificou nas últimas décadas colocou os bens da natureza apenas enquanto elemento de mercado, sem considerar os serviços ecossistêmicos", critica.
Amazônia pode viver seca histórica
O Centro Nacional de Monitoramento de Desastres Naturais (Cemaden) aponta que o Brasil está atingindo uma seca história este ano, já que até o momento esta é a pior desde 1950. O Rio Madeira, por exemplo, que é um dos maiores do mundo, atingiu seu menor nível em 60 anos nesta semana, chegando a 1,02 metro.
"Nós não tínhamos, décadas atrás, extensões de pasto tão grandes, índices de desmatamento tão altos. As cidades cresceram de maneira desordenada", afirma a coordenadora do SOS Amazônia.
Com o nível das águas baixo, municípios do interior do Acre, por exemplo, sofrem com a dificuldade de deslocamento pelos rios. A cidade de Marechal Thaumaturgo é um exemplo representativo, segundo o ativista Khelven Castro, que cita também que os aeroportos estão fechados por causa da fumaça.
"A gente percebe que o Estado não está preparado para mitigação das mudanças climáticas. As comunidades ribeirinhas extrativistas utilizam os rios para trafegar. Eles precisam desse acesso para conseguir ir para suas comunidades. O rio gira em torno dessa vivência", diz o membro do SOS Amazônia.
Segundo Khelven, que mora em Rio Branco, capital do Acre, ele ainda não conseguiu voltar para sua casa. Sem a possibilidade de trafegar por barcos e com os aeroportos fechados, ele aguarda enquanto outras alternativas não aparecem.
Prejuízo também para estudantes
O Acre também enfrenta outro problema: os municípios isolados precisam de soluções para os alunos da rede pública. Aberson Carvalho, secretário de Educação do Estado do Acre, diz que é preciso agir com previsibilidade. Houve mudança até no cardápio da merenda escolar: a prioridade são alimentos enlatados.
"São municípios de difícil acesso, que não têm acesso por terra, só vai por água ou via aérea. Normalmente, tem uma logística diferenciada, mas quando a gente perde o transporte fluvial, é preciso encontrar outra solução. Estamos encaminhando alimentação para três meses", conta.
Em agosto, o Brasil teve o maior número de focos de queimadas desde 2010. O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) registrou 68.635 casos, sendo que, destes, mais de 80% ocorreram na Amazônia e no Cerrado. Em Rio Branco, o nível da fumaça ficou tão elevado que a prefeitura decidiu suspender as atividades escolares até que tudo volte à normalidade.
Rio Branco tem o pior índice de qualidade do ar, de acordo com o IQAir. No momento, a capital acreana se encontra na classificação "perigoso", ou seja, a pior em toda escala. No monitoramento realizado na quarta-feira, 4, a qualidade do ar marcava 450 µg/m3 (microgramas por metro cúbico), sendo que o recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) é 15 µg/m3. Na terça-feira, 2, o índice chegou a marcar preocupantes 700 µg/m3.