Arara vermelha, galinhas de terreiro e a ameaça iminente de uma onça. Mal sabia que meu encontro com Raimundo Mendes de Barros, 78 anos, primo de Chico Mendes e seu ex-companheiro de luta, seria um divisor de águas no conhecimento sobre o território que ele habita: a Reserva Extrativista Chico Mendes (Resex).
Ansiosa com o que me esperava, embarquei às 6h20 de uma sexta-feira, de Rio Branco rumo à Resex, como é chamada, a 20 quilômetros da cidade de Xapuri, no interior do Acre. Por volta de 10h40, cheguei ao município para encontrar a guia e o motorista que me levariam até a casa do seringueiro.
O caminho era realmente uma aventura: primeiro, atravessamos o rio em cima de uma balsa; depois, percorremos uma estrada de barro nada gentil, com uma série de pontes duvidosas, por cerca de 50 minutos.
Ao chegar na casa de Raimundão, como é conhecido, fomos prontamente recebidos por ele, sua esposa, Maria, e seu filho, Rogério. A família já é acostumada a receber amigos - e curiosos - em seu lar. Maria me contou que no dia anterior havia feito almoço para 16 pessoas. "Aqui é sempre cheio", diz.
Na parede vermelha da família, retratos contam a história de luta e preservação da Floresta Amazônica entre os anos 1970 e 1980. Maria me conta que os visitantes adoram essa parte da casa, que já se tornou o espaço favorito para fotos.
Chico Mendes e Raimundão foram criados lado a lado. Os dois eram inseparáveis. Nos anos 1970, quando começaram a chegar os primeiros fazendeiros na região, a Resex era apenas uma área para seringueiros. As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) foram fundamentais para construir o pensamento de preservação da floresta nos dois.
"Um tempo depois, começaram a agredir os seringueiros e a derrubarem as florestas. Houve a criação de um sindicato entre os seringueiros e foi quando começaram os empates", lembra o primo de Chico Mendes.
O "empate" era técnica utilizada pelos seringueiros, na qual reuniam toda a família para adentrar a floresta e impedir que ela fosse derrubada.
O encontro com Raimundão
Observo seu Raimundão descalço e tranquilo embaixo das árvores que rodeiam sua casa. A arara vermelha Aurora, sua companheira, também aproveita a sombra enquanto bebe a água que Maria sempre deixa à vontade.
Aurora divide a atenção da família Mendes com galinhas de terreiro, peru e porcos. A prática de subsistência é comum na população que mora na Resex. Além de utilizarem para consumo próprio, o que sobra é vendido para cooperativas ou para os vizinhos.
Já são 43 anos naquele território, onde Raimundão e a esposa estão desde quando tudo aquilo ainda era um seringal. O tempo deixa o seringueiro confortável para constatar que o desmatamento aumentou dentro da reserva nos últimos quatro anos, por incentivo do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que comandou o país entre 2018 e 2022.
"Os fazendeiros se sentiram bastante protegidos e passaram a incentivar os seringueiros a derrubarem árvores", avalia Raimundão.
O parceiro de Chico Mendes não está equivocado. A ex-deputada federal Mara Rocha (PSDB-AC) propôs um projeto de lei para alterar os limites da Reserva Extrativista Chico mendes (PL 6024/2019). O texto não avançou, e, em dezembro de 2022, o PL foi rejeitado pela Câmara.
Quem diz que seringueiro vive na miséria está mentindo. Só se for na época em que tínhamos patrão. A floresta oferece muita fartura. Não deixaria por nada, é um amor que tenho pela floresta.
Além disso, um estudo realizado pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) mostrou que a Amazônia sofreu com desmatamento pela quinta vez consecutiva em 2022. Entre janeiro e dezembro daquele ano, o desmatamento na Floresta Amazônica correspondeu a 10.572 km², o maior em 15 anos. A área corresponde a quase 3 mil campos de futebol em árvores derrubadas por dia.
Raimundão ainda conta que há cerca de três anos fazendeiros de outros estados, como Rondônia e Mato Grosso, também passaram a explorar a região. Segundo ele, a floresta de quase 1 milhão de hectares é um potencial gigantesco, mas requer planejamento para ser 'explorada'.
"A Reserva Extrativista Chico Mendes foi e continua sendo um desafio para o latifúndio", diz. "Quando ela é trabalhada pelo nativo, é de forma organizada. Ela tem uma influência muito importante para a questão climática. É um potencial muito grande de floresta e ajuda no crédito de carbono", acrescenta.
Reserva Extrativista vive momento inédito: crise hídrica
Um fato inédito tem preocupado os moradores da Resex: a crise hídrica. Seu Raimundão comenta que nunca havia faltado água para a população do território, mas o desmatamento mudou essa realidade.
"Está começando a faltar água em muitos cantos da reserva. À medida que a concentração de sol é maior dentro da reserva, o solo tem uma maior ressecagem", explica.
De acordo com a geógrafa e coordenadora do Observatório Socioambiental do Acre, Daniela Dias, o desmatamento é responsável por ocasionar crise hídrica não apenas na Resex, mas também na capital Rio Branco.
"O desmatamento na reserva coloca em risco direitos territoriais, coloca em risco o objetivo de criação das reservas extrativistas, sem contar o contexto das mudanças climáticas. A Resex é um espaço de biodiversidade e diversidade de natureza que pode ser um exemplo para mitigar a emissão de carbono na atmosfera", destaca.
Sobre evitar o desmatamento desenfreado na Resex, Daniela explica que a gestão de políticas públicas deve ser fortalecida.
"As reservas possuem um potencial enorme de geração de renda e valorização da produção das famílias que vivem dentro dela, e isso precisa ser priorizado no campo econômico nas diferentes esferas políticas. E, mais do que nunca, a questão das reservas não pode estar centralizada no nicho ambiental, mas ampliada e integrada com os diferentes setores", reforça.
A falta de água na Resex prejudica também a atividade econômica principal dos moradores: a extração do látex das seringueiras. Isso porque o solo ressecado prejudica a produção do líquido branco destas árvores.
Apesar dos problemas, Raimundão garante que jamais deixaria a Resex."Quem diz que seringueiro vive na miséria está mentindo. Só se for na época em que tínhamos patrão. A floresta oferece muita fartura. Não deixaria por nada, é um amor que tenho pela floresta", afirma.