O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), realizou alterações em pelo menos 500 normas do Código Ambiental do Estado durante seu primeiro ano de mandato, em 2019. As mudanças, sancionadas em 2020, resultaram na flexibilização de políticas ambientais, o que, segundo especialistas, teve impacto na extensão dos danos ambientais provocados pelas chuvas que assolam a região.
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Agora, diante do pior desastre da história do Rio Grande do Sul, ambientalistas têm se manifestado contra a administração de Leite, acusando-o, junto com a Assembleia Legislativa, de serem responsáveis pelo que consideram um desmantelamento das leis estaduais de proteção ambiental.
"Nesses 53 anos nunca houve um retrocesso tão grande", resume Francisco Milanez, diretor científico da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan).
Biólogo e pós-graduado em análise de impacto ambiental, Milanez ressalta que as alterações aprovadas em 2020 pela Assembleia Legislativa do RS flexibilizaram as exigências e beneficiaram os empresários, concedendo-lhes, em alguns casos, o próprio licenciamento ambiental. A prática permite que empresas assumam a responsabilidade pelo licenciamento de suas atividades, dispensando a avaliação ou aprovação de órgãos ambientais.
Para Milanez, a iniciativa compromete a integridade ambiental, já que a falta de avaliações independentes pode resultar em práticas inadequadas ou até mesmo em danos ambientais graves, sem a devida responsabilização.
Milanez também contesta a posição do governo gaúcho, que alegou que as alterações no Código foram embasadas em discussões com a sociedade e instituições. "Não existe isso na história do Brasil. O governador Leite fez 480 modificações neste código, destruindo a estrutura das coisas mais importantes dele, sem consultar a sociedade", esclarece.
Milanez conta que a primeira tentativa de mudança promovida por Leite ocorreu em regime de urgência, mas foi impedida pela Justiça após a Agapan entrar com uma ação.
"Demoramos 10 anos para elaborar o antigo código ambiental. Já o governador destruiu uma obra-prima que é o código de meio ambiente gaúcho em apenas 75 dias", diz, referindo-se ao intervalo entre a apresentação do projeto de Leite, em setembro de 2019, e sua aprovação pela base de sustentação na Assembleia Legislativa do RS, em 11 de dezembro do mesmo ano.
Milanez destaca que essas mudanças na legislação ambiental estadual estão diretamente relacionadas à magnitude dos impactos das chuvas no Rio Grande do Sul. Como exemplo, ele menciona o aumento do desmatamento desde 2019 em áreas montanhosas, o que contribui para chamadas enchentes de erosão, que ocorre quando a água em excesso, proveniente de chuvas intensas causa o deslocamento e a remoção do solo em uma determinada área.
O ambientalista argumenta que a redução da cobertura vegetal, resultado do desmatamento e da flexibilização ambiental, contribui para o aumento dessas enchentes. Isso porque as árvores e outras plantas desempenham um papel crucial na estabilização e compactação do solo, com suas raízes ajudando a segurar o solo e, consequentemente, reduzindo a erosão causada pela água das chuvas.
"Isso tudo é consequência de solo nu, de desmatamento de áreas verdes", diz.
Ele também critica a recente sanção pelo governador de uma lei que flexibiliza a construção de barragens e outros reservatórios de água em áreas de proteção permanente. Segundo o ambientalista, essa medida é preocupante, pois pode interferir no fluxo natural da água, resultando em enchentes nos rios e chuvas mais intensas e concentradas.
Justo ou injusto culpar a legislação ambiental?
Quanto à declaração de Leite de que é "injusto culpar a legislação ambiental" pelas consequências das chuvas, o ambientalista argumenta que o governador está "correndo da responsabilidade" ao adotar essa posição.
"Ele está evitando assumir responsabilidades porque as pessoas estão sofrendo, ficando desabrigadas e continuarão assim mesmo após o temporal passar. Em setembro, a natureza nos deu um grande alerta. Foi um sinal claro, e o que foi feito desde então? Nada", lamenta, referindo-se ao ciclone extratropical de setembro de 2023, que assolou o Estado e resultou em 4 mortes e quatro desaparecidos.
O fenômeno trouxe chuvas intensas e concentradas, acompanhadas por rajadas de vento e rápido aumento do nível dos rios. Aproximadamente 340 mil pessoas foram afetadas, e 8.000 casas foram danificadas ou destruídas.
"Por exemplo, se replantassem as áreas de preservação permanente, como as encostas dos morros e a mata ciliar das beiras do rio, evitaríamos essas enchentes. Por quê? Porque, suponhamos que tenhamos 800 milímetros de chuva; uma floresta consegue absorver 150 milímetros. Além disso, a vegetação da floresta age como um freio para a água, permitindo que ela penetre no solo. E o solo florestal é permeável. Quando desmatamos para a agricultura, compactamos o solo, impedindo que a água penetre, fazendo-a correr em alta velocidade. Enchente é simplesmente muita água correndo muito rápido. Se conseguíssemos desacelerar essa água, não teríamos enchentes", completa.
O Terra tentou contato com o Governo do Rio Grande do Sul, mas até o fechamento dessa matéria não se posicionou. O espaço continua aberto para futuras manifestações.
Flexibilização ambiental em nível nacional
O desmantelamento das políticas ambientais não se limita ao governo estadual e à Assembleia Legislativa, conforme pontua Márcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima. Ele destaca a participação do Congresso Nacional no afrouxamento dessas políticas, com o envolvimento, inclusive, de deputados federais e senadores eleitos pelo Rio Grande do Sul.
"Se a gente for pegar tudo que foi proposto no Congresso Nacional para enfraquecer a legislação ambiental, aí estamos falando na casa das centenas só no último ano e meio. Uma das proposições legislativas, que tem como objetivo acabar com toda proteção do bioma pampa, está sendo relatada por um parlamentar gaúcho, por exemplo", explica.
Astrini aponta que a medida aprovada em 2020 no Rio Grande do Sul seguiu a tendência de flexibilização da política ambiental brasileira, que foi promovida pelo então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro.
Assim como Francisco Milanez, ele menciona que a autorização para construções em áreas suscetíveis a alagamentos e a supressão da vegetação devido à flexibilização do Código Ambiental do RS comprometeu a capacidade do solo de drenar a água e mantê-lo mais compacto.
"Se tira qualquer punição que existe hoje, fica muito mais suscetível, muito mais fácil de desmatar", diz.
Já o advogado do Instituto Socioambiental (ISA), Maurício Guetta, ressalta que as alterações realizadas no Rio Grande do Sul são consideradas atípicas. Ele também destaca que, caso haja investigações posteriores, agentes políticos podem ser responsabilizados por suposta omissão.
Na mesma linha Milanez, Guetta ressalta que há um movimento tanto a nível estadual quanto federal de demantelamento das legislacoes ambientais.
O Terra também entrou em contato com o Ministério do Meio Ambiente, mas não recebeu retorno.