Respostas de governantes à crise no Bailique são apenas emergenciais, criticam cientistas

Governo Lula recebeu projeto em julho para diagnóstico e prognóstico científico do avanço do mar no Bailique; estudos custarão R$ 10 milhões

19 dez 2023 - 05h00

A principal dificuldade dos cientistas hoje para avaliar as mudanças observadas na costa oceânica do Amapá é a ausência de investimento em pesquisa científica. Considerada uma das maiores especialistas na costa oceânica do Amapá, a geóloga Valdenira Santos estuda as mudanças no entorno do Bailique há duas décadas. Para ela, o que está ocorrendo na região exige mais do que os dados disponíveis atualmente para ser compreendido.

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"Não temos sequer equipamento para medir ao longo da coluna da água, que é um CTD (instrumento oceanográfico utilizado para medir condutividade, temperatura e pressão da água do mar) que custa 85 mil reais, porque não adianta medir na superfície", explica a pesquisadora. O processo correto passa pela exclusão dos sedimentos, que são abundantes no Amazonas. "Eu tenho que saber quanto de sedimento tem porque eu só tiro sal depois que eu limpar a água", diz.

Em março deste ano, a pedido do Ministério da Integração e  Desenvolvimento Regional (MDR), a pesquisadora do Instituto de Pesquisas Científicas do Amapá (IEPA) elaborou um Diagnóstico e Prognóstico de Intrusão Salina e Erosão no Distrito do Bailique. 

Trata-se de um plano detalhado que requer investimento público de cerca de R$ 10 milhões em pesquisa científica na região para medir a taxa de erosão e a intrusão salina, identificar pontos de entrada, até onde se estende e os períodos de maior intrusão do mar. O investimento prevê ainda mapear a população em risco e elaborar um modelo científico do que está acontecendo nessa região para responder para onde mover as comunidades.

Especialistas afirmam que novas construções e políticas públicas no Bailique exigem estudos prévios da dinâmica dos fluxos do oceano e do rio Amazonas
Especialistas afirmam que novas construções e políticas públicas no Bailique exigem estudos prévios da dinâmica dos fluxos do oceano e do rio Amazonas
Foto: Rudja Santos

Desde julho, quando entregou o plano ao ministério, comandado pelo ex-governador do Amapá Waldez Góes, Valdenira não teve mais notícias sobre o que será feito pelo governo federal. "A resposta que eu tenho tido é que é importante, que alguém tem que financiar, mas não vem financiamento de lugar nenhum", conta a geóloga. Procurada, a assessoria do ministro disse que entraria em contato para falar sobre os planos do governo federal, mas não deu mais retorno.

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Governador do Amapá por quatro mandatos (2002-2006, 2006-2010, 2014-2018 e 2018-2022), Góes conhece bem a realidade dos moradores do Bailique. Ao longo de suas gestões, os problemas de erosão e avanço do mar na costa oceânica do estado foram se agravando. A reação do governo estadual, no entanto, foi sempre a mesma, alternando decretos de estado de emergência ou de calamidade pública sucessivamente, além do envio de água potável, distribuição de alimentos, reparos e construção de passarelas, reconstrução de blocos escolares e substituição de postes de energia derrubados pela erosão. Foi assim em 2017, 2018, 2021, 2022.

O problema é que as medidas adotadas concentram-se sempre "na demanda política do momento e não existe nada feito para o longo prazo", afirma o engenheiro Alan Cunha, da Universidade Federal do Amapá (UNIFAP). Como Valdenira, ele se queixa que os pesquisadores não são ouvidos e os debates são feitos sem verificação ou estudos que indiquem se o investimento a ser feito vai valer a pena.

"O governo entra sempre no contexto político. A gente faz previsões, mas as pessoas não consultam a gente para nada." - Alan Cunha 

Neste ano, novamente o governador Clécio Luis  (Solidariedade) recorreu a um decreto de estado de emergência no Bailique para enviar kits de alimentos, água mineral, caixas d'água e água potável para os moradores do arquipélago. Procurada pela reportagem, a assessoria do governador respondeu que ele não poderia dar entrevista devido à viagem para participar da COP28, em Dubai. 

Construída em terreno erosivo no início dos anos 2000, a Escola Bosque do Bailique foi desativada à medida que os fluxos do rio Amazonas e do oceano avançaram sobre as ilhas
Foto: Rudja Santos

Sem equipamentos qualificados para realizar medições confiáveis da intrusão salina no rio Amazonas e da taxa de erosão nas ilhas, Valdenira avisa que qualquer medida ou política será apenas emergencial. "Se você pegar a Escola Bosque nos dias de hoje, foram jogados no mato R$ 3 milhões, entendeu? Então é tudo nesse imediatismo. E agora tem uma ideia de uma super balsa flutuante para tratamento de água, né? De novo, quase R$ 10 milhões com medições que eles fizeram de água superficial", alerta Valdenira. 

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A Escola Bosque, mencionada pela geóloga, foi criada na gestão de João Capiberibe e foi a primeira a adotar uma metodologia socioambiental. As instalações de madeira, cercadas pelo rio Amazonas e pela floresta, foram erguidas sobre palafitas para enfrentar o período das chuvas. "A erosão destruiu toda a escola,  praticamente não existe mais", lamenta Capi, como o ex-governador é chamado. 

Em 18 de novembro, em visita ao Bailique, o governador Clécio Luís anunciou que a Escola Bosque será reconstruída para atender cerca de 450 alunos na Vila Progresso. As obras começarão em janeiro de 2024, prometeu o governador. De acordo com a Secretaria de Estado da Infraestrutura (Seinf) e a Secretaria de Estado da Educação (Seed), as obras e serão executadas 250 metros da margem da ilha, em estrutura removível.

A merendeira Francinete Ferreira, 41, sempre viveu na ilha Santo Antonio: "O rio era mais fundo e a água não era salgada"
Foto: Rudja Santos

Na comunidade Livramento, atualmente são as marés que determinam a duração das aulas na Escola Nair Cordeiro Marques, localizada na ilha de Santo Antonio. "As crianças vêm dependendo da maré, então isso afeta a educação, né? Porque fica uma situação bem particular, as crianças só vêm quando a maré enche", conta a professora Érica dos Santos Lopes, 32. A seca que atinge a região permite que Érica dê, no máximo, três horas de aula por dia. 

A merendeira Francinete Ferreira, 41, nasceu e cresceu na mesma comunidade e não hesita em dizer: o rio mudou muito. "Aqui na frente, o rio era bem fundo e a água não era salgada. Agora, tem dia que não dá nem uma hora e meia de aula por causa da maré", conta. 

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* Esta reportagem foi apoiada pelo Edital Conexão Oceano de Comunicação Ambiental, promovido pela Fundação Grupo Boticário.

Fonte: Redação Terra
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