Obra em resort na Bahia: 'Há flagrante crime ambiental', dizem fiscais do Ibama

Decisão de superintendente do órgão em cancelar medidas da própria equipe é questionada; Rodrigo Santos Alves é sócio de uma empresa imobiliária, que atua na oferta de imóveis de luxo no litoral

24 nov 2020 - 21h02

BRASÍLIA - A decisão do superintendente do Ibama na Bahia, Rodrigo Santos Alves, de cancelar atos de sua própria equipe técnica no Estado para liberar obras de um resort de luxo, erguidas sobre a areia da Praia do Forte, foi questionada por fiscais do órgão federal.

Em uma nota técnica emitida nesta segunda-feira, 23, os analistas ambientais rebatem os argumentos usados por Alves para derrubar as decisões anteriores, afirmam que se trata de justificativas equivocadas e apontam que o crime ambiental é flagrante, por se tratar de uma obra realizada em plena areia da praia, fora da propriedade do resort, onde cabe ao Ibama atuar como órgão de fiscalização federal. Além do cargo de superintendente do Ibama na Bahia, Alves é sócio de uma empresa imobiliária, que atua na oferta de imóveis de luxo no litoral. Procurado para comentar a nota técnica, ele não se manifestou.

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Reportagem publicada na quinta-feira, 19, pelo Estadão revelou que Alves, nomeado em junho do ano passado pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, para comandar o Ibama na Bahia, contrariou decisões já tomadas pelos fiscais e autorizou a construção e um muro de contenção sobre a areia da Praia do Forte, numa região conhecida pela procriação de tartarugas marinhas. O superintendente não só retirou uma multa de R$ 7,5 milhões que havia sido aplicada pelos técnicos do Ibama contra o hotel, como anulou a decisão que paralisava a obra.

O Hotel Tivoli EcoResort  está fazendo uma mureta de pedra em frente ao mar, na praia do Porto de Baixo, com o objetivo de conter o avanço das águas
O Hotel Tivoli EcoResort está fazendo uma mureta de pedra em frente ao mar, na praia do Porto de Baixo, com o objetivo de conter o avanço das águas
Foto: Reprodução / Estadão

A reportagem teve acesso à nota técnica elaborada pelos analistas ambientais, na qual refutam os argumentos do superintendente. A principal justificativa do chefe do Ibama é que seus fiscais cometeram um ato "nulo", porque teriam se sobreposto a licenças ambientais dadas pela prefeitura de Mata de São João, onde o hotel fica localizado. Alves chega a dizer que os agentes não podem atuar como "corregedor" dos atos do município.

Na nota, os agentes afirmam, porém, que a irregularidade da obra se dá porque a construção ocorre diretamente sobre a areia da praia, contrariando as normas legais. A decisão de embargar e multar a obra foi tomada após uma vistoria composta por integrantes do Ministério Público Federal (MPF), Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio) e Ibama.

"Toda a equipe foi unânime ao afirmar que o local em que estava sendo construído o muro era faixa de areia de praia. A materialidade e autoria da infração saltam aos olhos, visto que ao chegar no local da intervenção, a equipe do Ibama constatou que a empresa autuada estava construindo irregularmente e com gravíssimos impactos ambientais um muro de contenção sobre a areia da praia", afirmam os fiscais. "Não houve dúvidas durante a ação fiscalizatória de que aquele local é considerado praia e que se submete ao regramento da referida Resolução Conama n. 10/1996 (que regulamenta a atuação federal no licenciamento em praias onde ocorre a desova de tartarugas marinhas)."

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Área de restinga. O Tivoli Ecoresort, onde as diárias vão de R$ 1,5 mil a R$ 7 mil, iniciou a construção de um muro na areia da praia para conter o processo de erosão em frente ao hotel. A situação é causada pela deterioração das restingas, vegetação que cobre a areia. Em setembro, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, tentou levar adiante uma resolução que fragilizava a proteção de áreas de restinga e manguezais. Com o controle do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), Salles conseguiu aprovar a mudança que abria espaço para a exploração imobiliária, mas a resolução acabou sendo suspensa por decisão do Supremo Tribunal Federal.

Atualmente, a obra na Praia do Forte está paralisada. Registros fotográficos confirmam que a obra é feita com o aterro de uma muro diretamente na areia da praia, para conter processos de erosão. "A afirmação do Sr. Superintendente do Ibama de que a obra de construção de muro foi realizada dentro dos limites do imóvel não corresponde à realidade dos fatos constatados durante a vistoria conjunta", afirma o documento.

Resort na Praia do Forte fica próximo a sede do Projeto Tamar, que protege tartarugas marinhas; local é área de desova dos animais
Foto: Google Maps/Reprodução / Estadão

Em nenhum momento, portanto, os atos dos fiscais tiveram a intenção de anular licenças do município ligadas ao resort em si, justamente por entender que a faixa da praia está sob a jurisdição federal. "O gestor equivoca-se ao afirmar que a equipe do Ibama atuou baseada no fato de que o licenciamento ambiental municipal seria irregular e, portanto, estaria 'auditando' outra esfera do Poder Público", afirmam os fiscais.

Sobre a alegação de que a obra já teria sido embargada pela Secretaria de Patrimônio da União (SPU), órgão vinculado ao Ministério do Planejamento, os agentes esclareceram que a construção irregular sem a anuência do órgão ambiental competente é crime ambiental tipificado em lei (9.605/1998, a Lei de Crimes Ambientais). Detalharam ainda quem a SPU não tem competência para atuar diante de um ilícito ambiental e que o ICMBio tem papel limitado às unidades de conservação instituídas pela União.

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"Assim, conclui-se que o Ibama jamais poderia se furtar de exercer sua competência legal diante de um flagrante de crime, para fazer cessar a degradação ambiental", afirma a nota técnica. "A ação empreendida pelo Ibama foi legal, não havendo invasão de competência, tampouco fazendo o papel de 'corregedor' do processo municipal, pois não houve qualquer avaliação da regularidade da licença ambiental do município."

A nota técnica conclui que os argumentos de Alves "são equivocados, mostrando-se totalmente diversos dos fatos aferidos em campo e dos atos administrativos constantes nos autos do presente processo". Afirma ainda que causa "estranheza" o fato de a decisão do superintendente ser tomada antes da audiência de conciliação ambiental e do encerramento da instrução do caso, como previsto em processos como esse.

O documento foi encaminhado ao Ministério Público Federal e ao Ministério Público do Estado da Bahia. Os fiscais também pedem que a Procuradoria Federal Especializada do Ibama se manifeste sobre o ato de anulação da multa e do embargo do superintendente.

A crítica dos especialistas ambientais é de que esse tipo de estrutura, que fica submersa, enterrada na areia, compromete a procriação das tartarugas, que avançam para a margem para desovar. O resort está localizado na mesma praia do Projeto Tamar, programa do ICMBio de proteção aos animais marinhos.

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Inconformismo. Na semana passada, ao ser questionado sobre o assunto pelo Estadão, Rodrigo Santos Alves afirmou que não há acusação sobre o hotel "estar executando obras além do licenciamento existente". "O que há é um inconformismo com o licenciamento, que desafia a via judicial, e não administrativa", comentou.

Alves afirma que "a obra de construção do muro em gabião está sendo realizada de acordo com a licença ambiental expedida pelo município, dentro do limite do terreno, no limite interno da área que fora assoreada pela força da maré". Ele negou que tenha se antecipado ao processo administrativo normal e disse que "a administração deve rever seus atos sempre que estejam maculados de nulidade".

O Tivoli Ecoresort afirmou, por sua vez, que o objetivo da obra é conter o avanço do mar sobre a estrutura do hotel. Por meio de nota, o estabelecimento declarou que intervenções do mesmo tipo já ocorreram na região e que sua obra acontece dentro da área da propriedade. Os efeitos da obra, segundo o Tivoli Ecoresort, "são mínimos, pois, além de se localizar em um trecho de baixa densidade de desovas, possui curta extensão e temporariamente foi executada em um período que não são registradas atividades reprodutivas das tartarugas marinhas".

Em nota técnica, analistas ambientais refutam argumentos do superintendente do Ibama na Bahia e afirmam que se trata de "crime ambiental"
Foto: Reprodução / Estadão
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