"A gente sai na rua e já é a resistência". A frase dita pela cantora Tássia Reis, uma das mulheres ouvidas pela reportagem do Terra, resume de maneira precisa o que é ser negro no Brasil. Com 53% dos mais de 200 milhões de brasileiros, apesar de maioria, a população negra sofre diariamente com o olhar da sociedade como um todo, especialmente quando decide se inserir dentro de sua própria cultura.
O maior símbolo disso, muito provavelmente, seja o cabelo. Ainda que discutido - de maneira tímida e isolada, é verdade - em cenas de novelas como Babilônia, o visual crespo torna a mulher negra, em especial, um alvo fácil de preconceito. Era assim há décadas, é assim hoje. A semelhança entre as histórias de vida de Tássia e da MC Soffia, rapper de apenas 11 anos, reflete essa teoria. "Eu considero a escola o pior lugar para uma menina crespa. É muito cruel. E na rua também, entre os amigos", diz Tássia. "A pressão da sociedade me fazia alisar, porque na escola as meninas ficavam falando que meu cabelo era duro, ruim, de bombril, essas coisas. Aí, pra não ser mais zoada por toda a escola, eu pedi pra alisar o cabelo, porque a gente sofre muito lá", relata Soffia.
A reportagem colheu depoimentos de quatro mulheres, sendo que uma delas, Lúcia Udemezue, representa o coletivo Manifesto Crespo, de diversas idades e opiniões. Paula Lima, MC Soffia, Tássia Reis, Lúcia e o Manifesto contam suas histórias, que refletem a realidade de muitas mulheres negras e mostram que a discussão sobre cabelo crespo está muito além da moda.
PAULA LIMA, 44 ANOS
Já alisou o cabelo?
Sim, já alisei. Quando criança eu alisava o cabelo, usava pasta, minha mãe alisava com pasta. Teve pente, chapinha, relaxamento, de tudo. Já usei maria chiquinha, rabo de cavalo, chanel, enfim. Acho que toda mulher gosta de experimentar, né? E a gente também têm sempre outras referências, e uma hora você pinta, enfim. Então eu alisei sim, já rolou de tudo.
Alisava por que?
Acho que já era quase que uma tradição. Ficava mais fácil de cuidar, e acho que esteticamente era o mais comum. A mãe passava muito creme no cabelo das crianças, e alisava porque conseguia fazer um corte. Acho que tinha uma facilidade para a própria mãe lidar com o cabelo. Não era comum ver cabelo natural. Não lembro de crianças da minha idade com cabelo natural crespo, sem nenhuma química, como hoje vemos muito. E é muito bacana que hoje exista uma liberdade e um respeito por sabermos que existe essa diversidade por conta de mistura de raças.
Parou de alisar quando?
Olha, na verdade, eu usei prancha por muito tempo. Aí depois comecei a trançar porque achava style e vi um filme com a Angela Bassett que ela tinha umas tranças grossas, e fiquei apaixonada por elas. Aí fiquei anos com a trança, só que gosto muito de água. Então quando tirei férias e fui pra Bahia, eu desencanei e deixei meu cabelo como ele tivesse que ser. E aí rolou, porque lembro que na época fazia Ídolos, e aí voltei de férias e já ia trançar o cabelo de novo. Mas fui me adaptando porque as pessoas começaram a elogiar tanto que eu comecei a me ver de uma outra forma no espelho também.
Cabelo como afirmação?
É engraçado. Eu nunca pensei no meu cabelo nesse sentido de afirmação, porque eu nasci sabendo que era negra, que meu cabelo era crespo e que tinha todos os direitos que qualquer outra pessoa [tem]. Então eu nunca levantei uma bandeira porque isso pra mim sempre foi algo natural.
TÁSSIA REIS, 25 ANOS
Já alisou?
Quando criança minha mãe não passava nenhuma química até uma certa idade. Depois de um tempo, ela começou a fazer um relaxamento que libera os cachos, vamos dizer assim, que era mais “fácil” de pentear. E aí eu trançava, sempre fiquei trançada. Nunca usei a textura lisa. Sempre a textura crespa, mas durante um tempo ele tinha química, sim.
Sofria muito preconceito quando criança?
Acho que todas as mulheres negras desse país [sofriam com isso], né? E só por isso que eu usava química, relaxamento, na tentativa de me aproximar mais do padrão que é imposto pra todo mundo, e eu tinha vergonha. Não queria ser zoada. Então usava preso, usava trança, e passava como a “estilosa” e não a neguinha do cabelo duro. Eu nunca fugi do estereótipo. Isso na escola. Porque eu considero a escola o pior lugar para uma menina crespa. É muito cruel. E na rua também, entre os amigos. Lembro de uma vez que saí na rua, inclusive minha mãe tinha até feito um desses relaxamentos, mas o cabelo continuava bem volumoso, e aí saí na rua me sentindo maravilhosa, e em dois minutos começaram a me zoar e eu voltei pra casa e prendi o cabelo. Eu só queria ser aceita.
Qual a importância da mulher negra usar o cabelo natural dela?
Acho que mais importante do que usar o cabelo natural dela, é que ela entenda que o cabelo crespo não é ruim. E eu tô falando do cabelo crespo igual ao meu, sabe? Não tô falando do cabelo cacheado que aparece na TV. Porque eles consideram aquele cabelo o limite do crespo e do aceitável, para a televisão e para a sociedade. É muito importante que ela saiba que aquilo é a raiz dela, a identidade dela. No Brasil, principalmente, não aceitam nossas raízes e ficam o tempo todo dizendo que somos outras coisas com esse mito da igualdade social, não respeitando nossas diferenças. Então a partir do momento que eu sei que sou maravilhosa, que eu não preciso alisar meu cabelo, afinar meu nariz e deixar de ser quem eu sou pra ser aceita, porque eu não preciso ser aceita, eu preciso gostar de mim, já tá tudo certo. E se eu quiser alisar o cabelo depois disso, tudo bem, é uma escolha minha. Porque o problema não é a mulher negra alisar o cabelo, o problema é a sociedade alisar o cabelo dela. A estética negra é política. A gente sai na rua e já é a resistência, por nada, de boca fechada, andando na rua.
MC SOFFIA, 11 ANOS
Já pensou em alisar?
Eu já alisei meu cabelo quando era pequena. A pressão da sociedade me fazia alisar, porque na escola as meninas ficavam falando que meu cabelo era duro, ruim, de bombril, essas coisas. Aí, pra não ser mais zoada por toda a escola, eu pedi pra alisar o cabelo, porque a gente sofre muito lá. Mas agora minha mãe me leva em eventos de mulheres negras com cabelos lindos, igual ao meu, e aí eu não quis mais alisar e, se alguém me xingar, eu vou ligar sim, né? Mas já tenho até resposta pra dar.
Sofria agressões físicas na escola?
Não. Me chamavam de cabelo duro, essas coisas mesmo. Mas elas só me xingavam, não mexiam com cabelo, nem me batiam.
O que fez você se afirmar com o cabelo?
Minhas músicas. Porque eu canto muita música de cabelo natural. E o que eu passei não quero que as outras crianças sofram também. Porque na maioria das vezes não é a criança que quer alisar, é a família que quer e a pressão na escola, porque ficam xingando ela. Aí eu passo a música pras crianças que têm cabelo black pra incentivar elas e usar o próprio cabelo.
Você consegue influenciar os amigos?
Acho que sim, né? Porque lá na escola tinha umas meninas com cabelo preso, cabelo alisadinho, que tinham um cabelo enrolado lindo, mas ficavam alisando, e começaram a usar o natural quando ouviram minhas músicas e as coisas que eu falava pra elas sobre esses encontros que eu ia com minha mãe.
LÚCIA UDEMEZUE E O MANIFESTO CRESPO
Quem é o Manifesto Crespo?
Nosso trabalho nasceu a partir de discussões sobre as diversas questões do universo da cultura afrobrasileira, suas produções artísticas e estéticas, buscando reconhecer seu valor e fortalecer a memória e a autoestima de mulheres negras, numa luta pelo resgate das nossas origens - uma vez que o Brasil conta com a maior população originária da diáspora africana. Temos como foco central a discussão sobre como o cabelo crespo pode e deve ser encarado de uma forma criativa, fazendo com que se desmistifique a ideia de que existe cabelo ruim.
Quais os resultados alcançados pelo coletivo?
Tem um exemplo que aconteceu no Sesc. Hoje em dia espaços culturais e educacionais como o SESC fortalecem bastante com essa oportunidade de falar de identidade, corpo e cabelo crespo através de oficinas de tranças e turbantes. Mesmo com alguma resistência ao tema por parte de alguns profissionais da educação o retorno das nossas atividades é sempre muito positivo pois é um espaço para desmitificar esse corpo negro, esse cabelo sempre chamado de ruim e difícil. Nós sempre recebemos mensagens de pessoas que se empoderaram e abriram empreendimentos de beleza a partir da nossa oficina e que passaram a ter uma visão diferente sobre os “padrões de beleza". Essa questão da trança, de aprender a trançar o cabelo.
Existe preconceito ainda maior contra o cabelo realmente crespo?
Acho que existe sim esse preconceito com cabelos mais crespos, com essa questão do relaxamento. [Relaxamento] é uma forma de alisamento, não é? Então acho que existe ainda uma questão pra se resolver com esse tipo de cabelo. Tem uma história muito curiosa que eu vi essa semana, que nos Estados Unidos eles até dividem o cabelo crespo em categorias. Então o meu, que é mais crespo, seria tipo um C4, e o seu um C2. Então existe, sim, é uma barreira.
Cabelo crespo: moda ou ato político?
Nossa, essa é difícil (risos). Pode ser moda, pode ser ato político. O importante é que a pessoa, a mulher principalmente, tenha direito ao corpo, entendeu? Isso é o que importa. O que ela vai fazer depois, se vai pelo lado estético ou mais atrelado ao manifesto político, é uma opção dela, a questão é ter direito ao corpo. Ela tem que ter o direito de alisar e de usar natural também, e não pode ter que ser "aceita" por um conceito de beleza criado pela sociedade.
Além de Lúcia, o Manifesto conta com Denna Hill, Nênis Vieira, Nina Vieira e Thays Quadros.
Dificuldade para encontrar um salão especializado
Na conversa com a reportagem, Paula relatou a dificuldade que sente em encontrar um salão de beleza que saiba tratar o cabelo crespo, o que a faz optar pelo tratamento caseiro mesmo. "Já fui em salão pra hidratar e o cabelo saiu mais seco do que chegou. Então tenho que me virar, eu vou me experimentando, vou mudando, e parece que tem dado certo pelos elogios que recebo (risos)", disse ela.
Para esclarecer esse lado estético, o Terra tentou entrar em contato com o Instituto Beleza Natural, chegando até a enviar perguntas para o local, mas não obteve respostas até a publicação da reportagem.
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