Você já viu "Bebê Rena", a série do momento da Netflix? Vou aproveitar mais essa oportunidade para discutir saúde mental. Adianto que para explicar o que acontece com Martha e Donny, os personagens centrais, vou ter que dar alguns spoilers que podem impactar sua experiência ao assistir os episódios. Se esse for o caso, guarde o texto para ler depois.
A série, baseada em uma história real (true crime), narra a complexa relação entre o aspirante a comediante Donny Dunn (Richard Gadd) e a advogada que não advoga Martha (Jessica Gunning), que passa a stalkear o ator. Tudo começa quando ela entra no local em que ele trabalhava como barman, e Donny, percebendo que a moça não estava bem, resolve ser gentil e oferecer um drink.
Esse pequeno gesto de atenção é o suficiente para que Martha passe a acreditar que ele está interessado nela, se apaixone imediatamente e passe a persegui-lo incansavelmente, mandando ao longo do tempo mais de 41 mil mensagens de texto, 350 horas de correio de voz, 700 tweets, além de centenas de páginas de cartas. Nada é obstáculo para Martha, que passa por cima de tudo e de todos para estar perto de Donny, tendo até atitudes agressivas e violentas. Vale dizer que o próprio Gadd viveu a situação que ele roteirizou e interpretou em "Bebê Rena".
Como formular hipóteses diagnósticas
Ao longo dos episódios, o espectador descobre que Martha é uma bomba-relógio emocional, pronta a explodir a qualquer momento, e que já tinha vivido o mesmo padrão de comportamento em relacionamentos anteriores, perseguindo e atormentado seus alvos, inclusive condenada criminalmente.
É sempre arriscado e superficial palpitar sobre o diagnóstico de alguém que está retratado na tela, mesmo que o personagem represente uma vida real. Nada substitui um minucioso exame psíquico e uma cuidadosa avaliação psiquiátrica, os melhores recursos que psiquiatras e psicólogos têm para formular hipóteses.
Diferente das doenças físicas em que um exame de sangue ou uma técnica de imagem podem fechar um diagnóstico, em psiquiatria são a história clínica, os relatos dos familiares e os impactos que os pensamentos, comportamentos e emoções têm na vida da pessoa que vão guiar o raciocínio médico e terapêutico. E muitas vezes, mesmo após meses e até anos de acompanhamento, o profissional pode ter dificuldades em chegar a uma conclusão. Apesar dessas limitações, e feitas essas ressalvas, vamos arriscar alguns palpites.
Martha
Martha apresenta oscilações emocionais importantes, baixa tolerância à frustração, idealização e adoração alternadas com raiva e hostilidade, dificuldade de controlar impulsos, é autocentrada, autorreferente, tem reações explosivas e comportamentos agressivos. O conjunto dessas manifestações podem configurar um transtorno de personalidade do tipo borderline.
Mas a paixão obsessiva e a percepção irreal de Martha em relação a Donny (mesmo depois de inúmeras negativas e limites colocados por ele) nos aproximam de outro diagnóstico, a erotomania ou síndrome de Clèrambault, uma desordem delirante em que a pessoa acredita que alguém, em geral de um status mais elevado (mais rico, mais importante, mais bonito, mais atraente) ou uma figura pública está apaixonado por ela.
O delírio persiste mesmo quando há evidências claras que o outro não está minimamente interessado. Perseguir, mandar presentes, escrever incontáveis e-mails, invadir a vida alheia, tentar desvalorizar ou desmerecer amigos, familiares e relacionamentos afetivos da vítima são alguns dos sintomas. A erotomania é mais frequente em mulheres na faixa dos 30 aos 50 anos, que vivem mais solitárias e isoladas.
Interessante perceber que os dois diagnósticos não são excludentes. Assim como alguém pode ter diabetes e hipertensão ao mesmo tempo, transtorno borderline, erotomania e até depressão podem andar juntos. Martha não chega a perder o contato com a realidade (não está psicótica), embora em alguns momentos ela se deixe levar por crenças falsas e interpretações distorcidas das respostas de Donny.
No final, o espectador fica sabendo que Martha teve uma infância dura, com episódios de violência doméstica, e que seu conforto era abraçar um pequeno bebê rena de pelúcia, daí a forma "carinhosa" com que ela se dirigia a Donny, pessoa que lhe trazia a fantasia de acolhimento e, talvez, de esperança na vida.
Donny
A passividade, complacência e relutância de Donny em buscar a polícia mesmo com as sucessivas invasões da privacidade de Martha chamam atenção. Se em alguns momentos, ele reconhece riscos e busca se esquivar, em outros, ele parece permitir a aproximação. Para quem está delirante, a ambiguidade pode funcionar como um convite real.
Como o próprio Gadd deixou claro em várias entrevistas, ele estava em um momento de vida tão machucado, vulnerável, fracassado, excluído, inseguro em relação aos seus desejos, que o simples fato de alguém o considerar especial, único, digno de paixão e arrebatamento, pode ter sido uma forma de compensação.
Em alguma medida, Donny talvez permita e incentive que Martha se aproxime porque tem um ganho emocional mesmo nessa relação claramente abusiva. Mas os encontros acabam perpetuando esse ciclo de dor e recompensa. Podemos até pensar em uma certa co-dependência de Donny e Martha, que dá combustível para que a história dos dois se perpetue.
Donny enfrentava prejuízo importante da autoestima, episódios de abuso de drogas, sintomas depressivos, crises de ansiedade, comportamentos autoagressivos, disforia em relação à sua orientação sexual, entre outros possíveis diagnósticos. Essas condições que já existiam em sua vida escalonaram depois que ele sofreu violência sexual por parte de um importante diretor de cinema.
Em função do trauma, ele pode estar lidando com PTSD, síndrome do estresse pós-traumático, transtorno em que a pessoa revive sensações e imagens do episódio, com dificuldade de separar o que pode ser seguro e o que pode ser arriscado nas relações.
Em muitos momentos, Donny parece enfrentar também a síndrome de Estocolmo, em que a vítima de um sequestro ou de um abuso, para se sentir mais segura, desenvolve uma ligação afetiva com seu algoz, sentindo até carinho e pena do mesmo, o que acaba facilitando eventuais manipulações por parte do abusador.
E nós?
Os sete episódios trazem tantas camadas de emoções que fazem a gente pensar, e sentir! Primeiro, a série traz uma boa dose de angústia para a audiência. Há também o receio de ficar mal por conta de alguns gatilhos como sofrimento, dor, abandono, violência sexual, entre outros.
O desconforto nos lembra que em vários encontros da nossa vida emocional a gente já pode ter caído na tentação de stalkear, ou ainda, de ter sido perseguido por alguém que interpretou de forma equivocada nossas respostas e intenções. Relacionamentos abusivos moram perto e podem estar à espreita nas inúmeras esquinas da nossa vida afetiva.
A própria paixão, mesmo quando correspondida, pode ser um momento de intenso apagamento de limites, de interpretações muito pessoais da realidade e da projeção de desejos da gente no outro e vice-versa. E tudo isso pode ficar mais intenso e arriscado quando não estamos bem ou encontramos com alguém que pode estar ainda pior.
É impossível não sentir raiva de Martha, mas também é difícil não empatizar com seu sofrimento e sentir pena. Da mesma forma, não dá para não sofrer junto com Donny, mas a demora em colocar um ponto final na história também gera revolta. Personagens tão ambíguos se aproximam da realidade humana e fazem a gente se espelhar mais neles.
Talvez a série "pegue" tanto porque não é incomum enfrentar dinâmicas emocionais semelhantes, embora em escala menor, quando a gente está em uma fase mais vulnerável ou tendo que lidar com experiências traumáticas. "Bebê Rena" fala um pouco sobre como nossas experiências afetivas podem se tornar confusas e dolorosas. Quem nunca?
*Jairo Bouer é psiquiatra e escreve semanalmente no Terra Você.