Júlia* estava conversando com um rapaz há um tempo até que os dois decidiram sair para um encontro romântico. Ele a convidou para jantar em sua casa e, conversa vai e vem, deram o primeiro beijo.
A noite poderia ter ido bem, como em qualquer date, mas tudo se complicou quando eles resolveram fazer sexo. Ao Terra, a estudante, que prefere ficar no anonimato, conta que o homem tirou, sem ela perceber, o preservativo e ainda ejaculou dentro.
“Eu não sei se foi bem um abuso”, pontua a jovem. No entanto, a prática tem até nome e é crime: stealthing. O termo em inglês define a violência sexual de o homem tirar o preservativo durante a relação sem que o parceiro ou a parceira perceba. É o lance do “a camisinha atrapalha, aperta demais, a sensação sem o preservativo é diferente”.
Você sabe o que é Stealthing?
Esse termo é usado para a prática de retirar a camisinha durante o ato sexual e no Brasil é considerado crime de violação sexual mediante fraude. pic.twitter.com/iBQLhbsZ7o
— Coletivo Rebu (@ColetivoRebu) January 19, 2022
“O pior de tudo foi a desculpa dele. Primeiro, ele negou dizendo que não tinha ejaculado dentro e a outra desculpa foi que eu não tinha como engravidar porque não estava no período fértil, sendo que ele nem me perguntou nada”, explica Júlia.
Vale lembrar que o uso de preservativos é indicado não somente para evitar gestação, mas também para proteção em caso de IST’s (Infecções Sexualmente Transmissíveis).
Na mesma noite, Júlia foi embora chorando. Uma amiga a orientou a induzir o homem a confessar por mensagem o que ele fez, “porque assim eu teria ainda mais provas de que não foi consensual o ato sem preservativo”.
“Assim eu o fiz, porque sabe-se lá com quantas outras garotas ele já fez a mesma coisa e não deu em nada. Coloquei na balança se valia a pena denunciar. Ele é enfermeiro aqui no Brasil, mas é de fora (estrangeiro)”, conclui a jovem, que ainda está em processo de tomar sua decisão.
Cultura do estupro
O relato doloroso de Júlia sobre um momento íntimo que acabou em pesadelo mostra como a cultura do estupro está enraizada no Brasil. Outro exemplo, dessa vez público, é o caso do jogador Daniel Alves. Ele está preso há mais de dois meses acusado de estupro por uma mulher em uma boate na Espanha no fim do ano passado.
A vítima declarou que o estupro foi muito violento e durou cerca de 15 minutos. Já o depoimento de Daniel apresentou inconsistências. Quando ainda estava solto, declarou que não conhecia a mulher; depois, afirmou que fez sexo consensual com ela. Depois a defesa afirmou que não houve estupro porque a mulher estava lubrificada - argumento, além de misógino, refutado por médicos há alguns anos.
A repercussão do caso também tem suscitado novos debates: há quem culpe a vítima (sempre há) e quem se preocupou mais quando o jogador foi escalado para a Copa. Sobrou até para Joana Sanz, agora ex-esposa de Alves, que precisou lidar com o caos.
Valéria Scarance, promotora de justiça e coordenadora do núcleo de gênero do Ministério Público de São Paulo, explica que, pela cultura do estupro, homens são estimulados a conquistar e fazer sexo com várias mulheres como parte de sua masculinidade, e as mulheres é que devem ‘se defender’.
“Assim, julga-se a vítima em razão de seu comportamento, suas roupas, bebida e não o agressor. No caso Daniel Alves, por exemplo, foi divulgado que a vítima teria beijado o jogador antes do abuso, o que é irrelevante”, aponta.
Até no Big Brother Brasil o assunto está em pauta
É importante a expulsão de Guime e Sapato para que NUNCA MAIS aconteça! BBB é um programa de entretenimento e dá pra se entreter com milhares de brincadeiras, conversas e ações. Com assédio não!!!!!!!!!!!
— #BBB23 - Preta (@pretademaiss) March 17, 2023
Há um pacto masculino?
O ex-futebolista Walter Casagrande chegou a criticar jogadores brasileiros por não terem se manifestado sobre o caso. “Quando critiquei o péssimo comportamento dos pentacampeões lá no Catar, eles se uniram contra mim para tentar desqualificar as minhas opiniões […] Banquei e banco o que falo sobre eles. No entanto, eles se calam em relação ao estuprador Robinho, que anda livre pelas praias, e agora novamente se calam sobre o caso Daniel Alves”, escreveu em sua coluna no "UOL".
Segundo Valéria, muitos homens ainda não sabem como agir diante de uma notícia de um abuso praticado por uma pessoa próxima, já que: abusadores são bons amigos e cidadãos comuns.
“Esse sentimento de camaradagem expressa ou silenciosa acontece com frequência. Nos processos, é comum ver amigos e colegas de trabalho de um acusado prestarem depoimento em seu favor, dizendo que ele é uma ótima pessoa e que não acreditam que o fato aconteceu”, relata a promotora.
Valéria explica que não existe exatamente um ‘pacto’, mas sim um sentimento de apoio mútuo. "Uma das formas de manifestação do machismo é o 'brotherismo', que é esse apoio expresso ou silencioso".
E quando trazemos o debate para o esporte, é que as arestas se encontram:
“O futebol está intimamente ligado à ideia de masculinidade, em razão da força, virilidade, disputa corporal e também poder econômico. Por muito tempo sequer se permitia que as mulheres jogassem. Com esse culto à masculinidade, não há espaço para se atentar para os sentimentos e desejos de uma mulher. O foco está no homem, não na mulher”.
Ainda é preciso falar de “violência”
No Brasil, a quarta edição da pesquisa ‘Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil’, realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, estima que cerca de 18,6 milhões de mulheres brasileiras foram violentadas em 2022, o equivale (já que estamos falando de futebol) a um estádio com capacidade para 50 mil pessoas lotado todos os dias.
“Em média, as mulheres que foram vítimas de violência relataram ter sofrido quatro agressões ao longo do ano, mas entre as divorciadas a média foi de nove vezes”, define a Agência Brasil.
Decidir terminar um relacionamento abusivo pode ser ainda mais difícil, como no caso da advogada Raíssa Vasconcelos, que sofreu violência doméstica. "Conheci essa pessoa por meio de um aplicativo, mas, apesar disso, ele tinha uma proximidade familiar comigo: era sobrinho do marido de uma prima. Começamos a nos encontrar e foi tudo muito rápido, o que é sinal de um relacionamento abusivo”, afirma.
No início da relação, o agressor era uma pessoa tranquila, segundo a própria advogada, apesar de ser ciumento e ter padrões tradicionalistas de relacionamento (mulher não pode fazer isso, mulher não pode aquilo,etc). “Quando a gente estava em barzinho, por exemplo, eu levantava para ir ao banheiro e ele ia atrás esperar eu terminar. Sempre tinha uma briga falando que eu estava flertando com alguém, briga por causa de roupas, que eu falava bobagem com homens. Sempre me incomodou, mas eu respondia”.
Tudo piorou quando eles casaram, em agosto de 2017. As violências físicas e psicológicas aumentaram. “Ele dizia que eu era puta, piranha, por ter tido outros relacionamentos”, desabafa.
Um dia, em mais um quadro de agressão, Raíssa resolveu chamar a polícia. “O pós foi muito difícil. Vivi no piloto automático, as pessoas ficavam dizendo que eu estava lidando bem. Namorei um tempo depois, essa pessoa me fez bem. Em 2018, comecei a ter crises de ansiedade muito fortes”, conta.
“Nunca vou superar, não é uma coisa para ser superada, é uma coisa para ser elaborada e que faz parte da minha vida. Não sou uma exceção, sou uma regra”.