'Como carregar o filho de um monstro?', diz mulher estuprada

Maternidade fruto de estupro, caso retratado na novela 'Em Família', é como pesadelo para vítimas de violência sexual

2 abr 2014 - 15h45
(atualizado às 15h57)
<p>Gravidez fruto de estupro é segunda violência à mulher, segundo especialistas, muitas não criam vínculo com o bebê e sentem horro ao imaginar que estão carregando um filho do estuprador</p>
Gravidez fruto de estupro é segunda violência à mulher, segundo especialistas, muitas não criam vínculo com o bebê e sentem horro ao imaginar que estão carregando um filho do estuprador
Foto: Getty Images

“Como eu poderia carregar o filho de um monstro?”. Maria*, 36 anos, foi estuprada por dois homens quando voltava do trabalho, por volta das 23h, já próximo à sua casa. Ela engravidou durante o ato de violência, o que intensificou o trauma. Em meio ao turbilhão de sentimentos ruins que vivenciou por ter sido obrigada a fazer sexo com desconhecidos, não houve espaço para amor ou instinto maternal: “eu não aceitei”, disse, em entrevista ao Terra, horas depois de interromper a gravidez no Hospital Pérola Byington, em São Paulo. O sentimento de violação de direitos impede a criação de um vínculo entre mãe e bebê: “vítimas chegam e falam: ‘quero que tire esse monstro de dentro de mim, estou com o demônio na minha barriga’”, contou o ginecologista Cristião Fernando Rosas,  presidente da Comissão de Violência Sexual da Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRAGO).

O aborto em casos de estupro é legal e oferecido pelo Sistema Único de Saúde, já que, segundo o coordenador do Ambulatório de Violência Sexual e de Aborto Legal do Hospital Pérola Byington, Jefferson Drezzet,“a gravidez é uma segunda violência para a mulher”, segundo Jefferson Drezzet, coordenador do Ambulatório de Violência Sexual e de Aborto Legal do Hospital Pérola Byington. No entanto, nem sempre as vítimas procuram ajuda médica. Na estimativa informada por Drezzet, apenas 20% dos casos chegam ao conhecimento de alguém do setor da saúde ou segurança. Na trama da novela Em Família, a personagem Neidinha (Jéssica Barbosa) foi violentada por três homens no Rio de Janeiro e engravidou de Alice (Érika Janusa). Ela decidiu prosseguir com a gravidez e criar a filha com amor. No entanto, fora da ficção, ignorar a violência e o sofrimento não é uma decisão tão simplista.

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*Maria, 36 anos, estuprada dentro de um carro quando voltada do trabalho

Eram 23h30 mais ou menos. Eu já estava perto da minha casa, quando um carro com dois homens dentro parou do meu lado. Um rapaz armado desceu e me obrigou a entrar e ir para um lugar deserto. Eles me estupraram dentro do carro, depois me deixaram em uma avenida, o lugar mais próximo era a casa de uma amiga e eu fui até lá. Só contei para ela. 



Sou mãe de dois filhos e estou solteira há oito meses. Há alguns anos, quando tentei engravidar novamente, o médico disse que meu útero era invertido e precisaria de um tratamento para conseguir ter filhos. Por isso, minha preocupação depois de tudo era fazer exames apenas para saber se havia contraído alguma doença. Como eu trabalho, acabei adiando. 



Quando chegou o período em que eu deveria menstruar, para minha surpresa, isso não aconteceu. Comecei a me sentir mal e ter enjoos. Fiz um teste de gravidez comprado em farmácia e ele confirmou o que eu temia. Pensei em procurar um lugar clandestino que vendesse remédio para aborto, mas fiquei com medo, porque muitas mulheres morrem por conta disso.



Minha amiga pesquisou na internet alguma forma para me ajudar e descobriu o centro de atendimento do hospital Pérola Byington, onde interrompi a gravidez. Como poderia carregar por nove meses o filho de um monstro? Alguém que faz uma coisa dessas com uma mulher é um monstro, para mim seria muito difícil aceitar. Agora que fiz o aborto, me sinto aliviada.

 

Quando a mulher grávida vítima de estupro procura atendimento médico, ela tem três opções: manter a gestação, interrompê-la ou doar o bebê. “Mesmo que convencidas a manter a criança, existe muita dificuldade para superar o trauma. Já tivemos três casos de infanticídio”, afirmou Drezzet. Uma pesquisa feita pelo hospital Pérola Byington apontou a violação de direitos humanos como o principal motivo para o aborto. A religião não costuma interferir na decisão da maioria. Segundo Drezzet, 90% das mulheres que interrompem a gravidez se dizem religiosas. “E nenhuma se arrepende”, afirma.

“Não suportaria olhar para o meu filho e lembrar tudo. Seria muito ruim para a criança se eu não conseguisse gostar dela”, disse Sabrina, 22 anos, que optou por interromper a gravidez causada pela violência sexual que sofreu no caminho entre o trabalho e a casa onde mora. Na ficção de Manoel Carlos, a mãe de Alice reúne esforços para esconder que a filha foi fruto de um estupro. Nesse ponto, a vida imita a arte. A pesquisa de Drezzet também revelou o temor das vítimas de que a criança venha a saber como foi concebida e os danos emocionais e psiquiátricos que poderiam sofrer por conta disso.

Aborto e o sentimento de culpa

Quando acontece em circunstâncias violentas, é normal a mulher ficar em dúvida entre ter ou não o bebê. *Clarice fez a primeira opção. “Busquei com todas as minhas forças amar a criança. Foi uma luta interna”. Ela foi violentada pelo marido em 1993, engravidou e passou anos calada sobre o assunto. O casal frequentava uma igreja que desaprovava qualquer acusação em relação ao marido. Além da religião, também pesou em sua decisão o medo de se sentir culpada pelo resto da vida. Temor infundado, segundo Drezzet. “Nossa experiência mostra que as mulheres conseguem superar o trauma causado pelo aborto nos primeiros seis meses após o procedimento”.

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A religião em si não mostra tanta interferência na decisão, de acordo com Drezzet. “Oitenta por cento das mulheres que interrompemos a gravidez são católicas e evangélicas. Noventa por cento delas têm religião e apenas 10% são agnósticas”, informou o ginecologista e obstetra sobre dados recolhidos no Pérola Byington. “Mas nenhuma se arrependeu por abortar”, acrescentou. É importante avaliar que os números são com base nas mulheres que buscam ajuda médica e que, geralmente, são motivadas pela gravidez indesejada.

Religiosa, Clarice foi violentada pelo marido em 1993, engravidou e passou anos calada sobre o assunto. O casal frequentava uma igreja que desaprovava qualquer acusação em relação ao esposo. Ela decidiu não interromper a gravidez, não apenas pela religião, mas pela culpa que um aborto poderia trazer: “busquei com todas as minhas forças amar a criança. Foi uma luta interna para que o amor prevalecesse”, disse. Drezzet falou sobre a “síndrome do aborto”, um trauma específico e duradouro na mulher, mesmo que decidida, que interrompe uma gravidez. “Não é verdade, nem é reconhecido pela Sociedade Americana de Psiquiatria. É uma especulação para assustar as pessoas, pois nossa experiência mostra que as mulheres conseguem elaborar a situação, geralmente, nos primeiros seis meses após o procedimento”, argumentou.

 

*Clicélia, 45 anos, estuprada pelo marido e mãe de um menino fruto da violência

Fui violentada em 1993 de uma forma brutal pelo meu marido, na nossa própria casa. Fiquei calada por anos, pois frequentava uma igreja em que não podia expor meu companheiro. Deus resolveria tudo. Tive medo, fiquei insegura, perdi a vontade de viver, passei por crises de ansiedade, cheguei a pesar 140 kg – 53 kg a mais do que peso hoje - e minha libido ficou abalada. No estupro, eu engravidei de um menino e busquei com todas as minhas forças amar a criança. Ela não pediu para nascer, era apenas um ser indefeso que precisava de mim. Foi uma luta interna para que o amor prevalecesse e entendo que muitas mulheres não consigam superar essa violência.



Na época em que fui violentada, eu estava proibida de ter relações sexuais por causa de uma ferida no útero. Mas meu marido, ensinado que a mulher tem que servir e estar à disposição do homem, não respeitou a condição. Após o estupro corri até o banheiro para me higienizar, mas, mesmo assim, engravidei. Tive vergonha de procurar um médico. Chorei muito, muito mesmo, mas não pensei em abortar, pois me causaria muita culpa. Além do trauma, a ferida fez da gravidez muito dolorosa, eu urrava de dor e tive que ser levada ao hospital para tomar medicamento para a dor algumas vezes. 



Aos sete meses de gestação tive complicações. Meu médico disse que era decorrente da ferida no útero. Quase fiquei careca. Aos oito meses, comecei a ter contrações e meu estado emocional não era dos melhores. Até que um ginecologista me olhou nos olhos e disse que eu estava em depressão profunda. Quase desmaiei nesse dia. Eu não podia contar tudo o que havia acontecido e expor meu  marido, um servo de Deus. 



Tive um parto tranquilo. Meu sentimento pelo bebê era de proteção. Ele cresceu e se tornou um menino forte, corajoso, visionário, trabalhador e decidido. Não frequentei mais a igreja. Comecei a estudar Direito e estou escrevendo uma pesquisa sobre ‘bullying eclesiástico’.  A prática do estupro no meio evangélico é comum. A maioria das mulheres não fala sobre o assunto, nem busca ajuda médica. 



Um trauma como o estupro é uma ferida e a recuperação é diária. No começo, não olhava nos olhos do meu marido, mas continuamos juntos e hoje ele sabe que precisa melhorar em pontos para que possamos nos recuperar. 

 

Após sofrer violência sexual, a maioria das mulheres, de acordo com os especialistas entrevistados, não procura um hospital ou delegacia especializada. Quando não enfrentam o problema sozinhas, elas preferem que o confidente seja um amigo, parceiro ou membro da família. Sabrina passou dias trancada em casa chorando, até uma amiga preocupada procurá-la. “Medo, angústia, vergonha, perturbações e negação”, estão entre as razões, de acordo com Rosas.

Os hospitais com atendimento a vítimas oferecem coquetel profilático para evitar o desenvolvimento de doenças sexualmente transmissíveis, vacina contra hepatite e coquetel anti HIV. “Por isso é importante procurar um médico logo após o crime, nas primeiras 72 horas”, aconselhou Rosas.

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Até mesmo para a gravidez, os centros de atendimento oferecem a conhecida “pílula do dia seguinte”. Nas primeiras 24 horas, informou Rosas, a eficácia do medicamento é de 95%, 48 horas após o coito é de 80% e até o quinto dia será de 30%. O aborto legal realizado em casos de estupro é um procedimento com baixo índice de complicações e que exige cerca de um dia de internação. No entanto, quando mais idade gestacional, mais riscos existem. O prazo máximo é de 20 semanas ou quando o feto atinge 500g. O ginecologista ressaltou a importância de também fazer a denúncia de violência sexual em uma delegacia.

Trauma, paranoia e vida sexual

Uma pesquisa recente divulgada pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) apontou que a maioria dos brasileiros acha que “Mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”. Segundo o levantamento, 65,1% das pessoas – incluindo homens e mulheres – concordaram com essa informação, enquanto 58,5% apoiaram a ideia de que “Se mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros”.  A reação diante dos resultados incentivou a campanha online chamada “Eu não mereço ser estuprada”, que ganhou força na rede social. 

Ainda assim, a maioria das mulheres que sofre violência sexual não procura ajuda. E quando elas vão em busca de socorro, preferem que o confidente seja um amigo, parceiro ou alguém da família. “Angústia, vergonha e negação são os principais motivos da reclusão”, diz Rosas. É importante lutar contra esses medos. Os hospitais com atendimento a vítimas oferecem coquetel profilático para evitar o desenvolvimento de doenças sexualmente transmissíveis, vacina contra hepatite e coquetel anti HIV. “Por isso é fundamental procurar um médico nas primeiras 72 horas após o crime, além de fazer a denúncia de violência sexual em uma delegacia”, aconselha Rosas.

Os centros de atendimento oferecem também o contraceptivo conhecido como “pílula do dia seguinte” nas primeiras 24 horas após o estupro. Nesse período, a eficácia do medicamento é de 95%. Após 48 horas cai para 80% e até o quinto dia chega em 30%. O aborto legal realizado em casos de violência sexual é um procedimento com baixo índice de complicações e exige cerca de um dia de internação. No entanto, quanto mais avançada estiver a gravidez, maiores os riscos. O prazo máximo são 20 semanas ou quando o feto atinge 500g. 

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Além do tratamento clínico, as mulheres violentadas precisam de apoio psicológico e familiar. A ausência desses cuidados pode piorar os sintomas do trauma, que já incluem perda da qualidade do sono, pesadelos, alterações no apetite, depressão e isolamento social.

 

*Sonia, 22 anos, foi estuprada e passou dias trancada em casa chorando

É uma história muito trágica para mim. É horrível ser violentada, ter que fazer sexo com um homem desconhecido. Eu estava voltando para casa, eram quase 20h. Um homem estava atrás de mim, mas passou reto. Depois veio outro e eu achei que iria passar também. Mas ele começou a andar devagarzinho, me cobriu a cabeça. Fui violentada. 



Passei dias trancada dentro de casa, chorando. Depois de um tempo, comecei a passar mal, sentir enjoo e dor de cabeça. Chorei ainda mais. Uma amiga minha ficou preocupada, veio me visitar e perguntou por que eu estava daquele jeito. Eu contei para ela que um homem havia me estuprado e que eu poderia estar grávida. Foi minha amiga que me ajudou a encontrar um hospital para fazer o aborto.  Era um bebê não desejado. Eu precisava tirar essa criança.



Não suportaria olhar para o meu filho e lembrar de tudo. Seria muito ruim para a criança se eu não conseguisse gostar dela. 

 

 *A pedido das entrevistadas suas identidades foram preservadas

Fonte: Terra
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