Se os Natais de grande parte das crianças brasileiras têm mesa farta, primos reunidos e muitos brinquedos, os que marcaram a infância de Tatiany Leite tinham tudo isso e um detalhe a mais: a casa cheia de garotas de programa.
Neta de Gabriela Leite, que trabalhou por muitos anos como prostituta e, depois de 'aposentada', se tornou uma militante reconhecida pelos direitos de suas colegas, a estudante de jornalismo de 22 anos lembra com alegria e orgulho os momentos vividos ao lado da avó.
A admiração de Tatiany é tanta que o trabalho de conclusão de curso na faculdade saiu do ambiente acadêmico e se tornou um documentário, Filhas de Gabriela, que está em fase de produção, com lançamento previsto para 2015.
O material reúne depoimentos de familiares, amigos e pessoas influenciadas pela história da ex-‘mulher da vida’.
Gabriela foi vencida pelo câncer em 2013, mas sua história foi contada em dois livros, foi para o teatro e rendeu até uma candidatura à deputada federal, que na verdade não foi para a frente.
Tanta luta em prol de mulheres que veem na prostituição uma profissão como outra qualquer resultou em ações concretas, como a grife Daspu e a ONG Davida, além da conquista de direitos e uma maior visibilidade para a causa.
Defensora da liberdade, Gabriela acabou influenciando a neta, que acredita ter se tornado feminista sem nem mesmo ter buscado por isso.
Na casa onde mora, com a namorada Karina Vilalba, também tem espaço para três gatos – sendo que a única fêmea, sem grandes surpresas, foi batizada de “Pagu”. Nas estantes e paredes a presença da avó é forte, em forma de fotos, discos e outras recordações.
Festinha animada
Tatiany conta que, como a avó morou a maior parte da vida no Rio de Janeiro, e ela em São Paulo, as férias e Natais em terra carioca eram uma verdadeira alegria.
O avô, o jornalista Flávio Lenz César, por quem nutre um carinho especial, não é ‘de sangue’, mas ficou casado com Gabriela desde 1992 até o ano de sua morte. Grande apoiador da mulher, ele está por trás dos seus projetos até hoje.
O casal, um tanto quanto diferente do tradicional, representava liberdade para a então menina. “Nunca conheci alguém como ela. O que sempre achei incrível é que ela não engolia sapo. Ela nunca se deixou rebaixar por nada. A militância dela teve a ver com isso. Ela foi a primeira prostituta que falou. Essa força ela continua passando um ano depois de sua morte.”
Outra característica que marcou a história da avó foi a forte relação com a bebida, que rendeu de momentos engraçados a constrangedores. Segundo Tatiany, isso a chocava bem mais do que a profissão. “Minha avó nunca teve pudores comigo, sempre bebeu muito. As coisas que ela fazia eram engraçadíssimas”, lembra.
Nos aniversários, os avós é que vinham para São Paulo celebrar com a neta. “Lembro de uma festa que ela estava tão bêbada que fez xixi no sofá. Mas eu não tinha essa coisa de bloqueio com a minha avó. Devo admitir que este bloqueio não aconteceu por causa do meu avô. Eu sempre tive uma ligação muito forte com ele, e ele cuidava muito da minha avó”, recorda.
A estudante conta que nunca teve uma relação muito próxima com o pai, que é viciado em drogas, então o avô acabava fazendo a figura paterna. “A gente brinca que minha família é feminista porque os maridos não param”, afirma.
Filha, mãe, avó e puta
Diferentemente da mãe, a funcionária pública Alessandra Leite, Tatiany não teve um choque ao descobrir que a avó trabalhou como garota de programa. “A minha avó já me foi apresentada assim. Não teve uma explicação. Ela não era mais prostituta quando eu nasci, mas estava na militância”.
Por este motivo, cresceu habituada a conviver com as prostitutas amigas da avó. “Quando eu passava Natais e Carnavais lá, as prostitutas viviam em casa. Me viram crescer. Aquilo para mim era totalmente normal, eu não tinha um comparativo negativo. Achava que era um trabalho que elas fazem sexo e ponto.”
Foto: Danielle Barg/Terra
A visão livre de preconceitos com as escolhas da avó, no entanto, não eram as verdades de Alessandra e da bisavó, Matilde da Silva Leite, mãe de Gabriela, hoje com 83 anos.
A estudante conta que, devido ao documentário, descobriu “várias Gabrielas” e hoje consegue entender todos os lados de quem fez parte dessa história.
Alessandra foi criada por Matilde, descrita por Tatiany como uma mulher forte, que veio da roça e se casou aos 14 anos.
Até os dez anos de idade, Alessandra acreditava que Gabriela era sua irmã. Ao dar a luz, o instinto de liberdade – que era uma de suas marcas – falou mais alto, ela deixou o bebê com a mãe e iniciou a vida de prostituta. “Ela deixou o emprego e desapareceu para a família. Ficou durante anos sumida.”
Segundo Tatiany, a relação das duas foi muito complicada. “Eu entrevistei minha bisavó para o documentário, foi um momento forte e inesquecível. Ela falava que sentia vergonha”.
Alessandra, por sua vez, chama Matilde de mãe até hoje. “Minha mãe tinha muita dificuldade com essas coisas. Para mim era muito mais fácil porque eu era uma criança. Eu não tinha ainda uma concepção formada sobre nada. Muito pelo contrário, eu achava genial. Para mim, os meus avós eram os caras que defendiam a liberdade”, conta.
Com opiniões já formadas, Alessandra não aceitava muito bem os rumos tomados pela mãe. “Não deve ter sido fácil descobrir que sua mãe não era sua mãe. Descobrir que sua mãe, na verdade, era puta”, observa.
Tatiany não descreve como ‘rancorosa’ a relação das duas, porém, difícil. “Não tem como negar o peso que as coisas têm. O depoimento da minha mãe [para o documentário] está bem forte. Ela nunca se interessou pela causa da prostituição”, afirma.
A estudante acredita que, em meio à verdade de cada uma, desempenha um papel neutro. “Não consigo ver maldade em nenhuma das partes. Eu entendi a minha avó e entendi a minha mãe, ela teve outra educação. Ela fala que era muito difícil dizer para as amigas que a mãe era puta.”
Prostituta na boca do povo
Tatiany ressalta que a avó fez grandes avanços na área regularização da profissão, em busca de maiores direitos às prostitutas. “O Ministério da Saúde começou a ter olhos para a prostituição. Ela queria mostrar que a puta, antes de qualquer coisa era uma mulher. Ela conseguiu, senão tirar completamente, dar uma aveludada no estigma e no preconceito e colocar a prostituta no debate”, ressalta.
Atualmente, o projeto de lei batizado de Gabriela Leite tramita na Câmara dos Deputados, encabeçada pelo deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ). O objetivo é assegurar o exercício da atividade e ampliar direitos.
Para Tatiany, Gabriela acabou vivendo na pele o que foi buscar no curso de sociologia da Universidade de São Paulo (USP), antes de mergulhar no mundo da prostituição e abandonar a faculdade. “No final das contas ela reverteu tudo isso em um estudo e defendeu causas, pessoas e direitos humanos. A prostituição na verdade foi só o campo. Ela analisou, debateu, militou”, pontua.
Novas Brunas Surfistinhas
Com a aparição de novas histórias de prostitutas na mídia, como Bruna Surfistinha e Lola Benvenutti, é natural que o interesse pela profissão aumente. Tatiany não vê isso como algo negativo, pelo contrário.
Segundo ela, isso ajuda a quebrar o paradigma de que tornar-se garota de programa é algo para quem está sem alternativas. “Só convivi com prostituta que gosta da profissão. Inclusive a minha avó.”
Foto: Danielle Barg/Terra
Neste sentido, ela concorda com a visão de Gabriela, que vai contra ao papel de vítima da garota de programa. “Minha avó odiou o [filme] Bruna Surfistinha porque ela viu uma vitimização. É a menina que brigava com os pais, coitadinha, que virou prostituta e dava para todo mundo por dez contos”, observa.
Já a história de Lola foi aprovada por ambas. “Ela é bonita, ela sabia que tinha capacidade e escolheu essa profissão. De certa maneira, a militância não defende o lado ruim da profissão. Defende a prostituição também como uma escolha”, pontua.
Feminista também passa batom
Tatiany diz que até o momento de mergulhar na pesquisa para o documentário, não se via propriamente como feminista. “Sempre tive um problema com as feministas radicais. Eu sou gay, então conheci muitas que falavam que tinham que odiar homem mesmo. E muitas feministas pegaram no pé da minha vó, porque as radicais não gostam da prostituição. Acham que é uma mulher submissa. Só que o que a minha vó sempre disse é que muita prostituta está lá porque quer, faz o quer, está lá porque gosta da profissão”, analisa.
Ela cita como exemplo deste feminismo moderno a cantora Beyoncé e a paquistanesa Malala Yousafzai, que este ano ganhou o Nobel da Paz por sua luta nos direitos da educação das mulheres. “Essa minha alma feminista é algo familiar, vi toda minha família fazendo isso. As mulheres sempre foram autossuficientes”, afirma.
Para ela, fazer o documentário é também uma oportunidade de abordar estas questões por meio da trajetória da avó. “Quero tentar quebrar o máximo este estigma. Mostrar que a prostituta é uma mulher antes de qualquer coisa.”
O projeto também conta com depoimentos de Jean Wyllys, que conheceu Gabriela e acabou virando amigo da família; e o cartunista Laerte, atualmente envolvido com a Daspu e atuante em temas ligados a minorias, transexualidade e gênero.
De acordo com Tatiany, a importância de Gabriela “ultrapassa a prostituição”. “É uma questão de gênero também, de ser mulher. Quero passar para todo mundo essa visão que eu sempre tive da minha avó, dessa mulher que não tinha medo. Que tinha internamente suas dúvidas e momentos de tristeza, mas dava a cara a tapa. É o que eu acho que todo mundo deveria tentar pelo menos.”
Fotos: Danielle Barg/Terra