Tema levantado pela novela Amor à Vida, da TV Globo, o ressarcimento pelo uso temporário do útero para gestação de uma criança, procedimento popularmente conhecido como “barriga de aluguel”, é proibido pelo Conselho Federal de Medicina. Na trama, o casal homoafetivo Niko (Thiago Fragoso) e Eron (Marcello Antony) planeja constituir uma família e os personagens querem realizar o sonho de ter o primeiro filho. Para isso, eles buscam uma mulher que ceda o útero para efetivar a fertilização in vitro (FIV).
A escolhida deve ser a personagem Amarilys (Danielle Winits), amiga dos personagens. A história esbarra em dois obstáculos, porém, de acordo com a diretora do Centro de Fertilidade da Rede D’Or, Maria Cecília Erthal. O primeiro é a falta de parentesco entre a dona do útero e o doador do espermatozoide. Além disso, o óvulo para o procedimento precisa ser de doadora anônima.
“Com casais homossexuais masculinos, não temos nem o óvulo, nem o útero. É feito um acordo entre os dois sobre quem doará o sêmen, buscamos uma doadora de óvulos anônima, e o útero precisa ser de familiar até o quarto grau de parentesco, segundo a CFM”, detalhou a ginecologista.
A nova diretriz da CFM, publicada no início de 2013, afrouxou as regras em relação à reprodução humana. Antes da fertilização in vitro, para atender a demanda de “casais masculinos”, só era permitido até o segundo grau de parentesco. Entretanto, o envolvimento de terceiros no processo ainda não foi liberado.
“Teríamos que encaminhar o caso ao CFM, explicando a falta de parentes para realizar a fertilização e pedindo autorização para uma amiga participar”, explicou Maria Cecília, mostrando uma possibilidade de como resolver. O pedido costuma ter resposta positiva, mas estende o tempo total do procedimento de dois para seis meses, segundo ela.
Para as mulheres com intenção de ter filhos juntas, as complicações são menores, e é possível que as duas desfrutem a gestação. A diretriz da CFM permitiu uma espécie de "gravidez compartilhada": “usamos o óvulo de uma das parceiras, com o espermatozoide de um doador anônimo, e introduzimos no útero da outra mulher”, explicou Maria Cecília. A grávida não consegue transmitir códigos genéticos ao bebê, mas vive toda a experiência de ser mãe. “Aumenta o envolvimento das duas”, considerou a médica.
Fertilização in vitro x inseminação artificial
A opção para gerar um filho oferecida pela medicina a casais do sexo masculino é a fertilização in vitro (conhecida como FIV), disse a especialista em reprodução humana. É colhido o sêmen de um dos homens para fertilizar, em laboratório, o óvulo de uma doadora desconhecida. O embrião é, então, introduzido no útero de uma parenta de até quarto grau. A FIV também é opção para “casais femininos” que tenham problemas para engravidar. “O procedimento tem 60% de chances de dar certo, custa entre R$ 15 mil e R$ 18 mil, leva cerca de 60 dias para homens e 20 dias para mulheres”, afirmou Maria Cecília.
A inseminação artificial intrauterina é um tratamento menos complicado do que a FIV que atende apenas os casais homoafetivos do sexo feminino. “Pegamos o sêmen de um doador anônimo, separamos os bons espermatozoides e introduzimos no útero da futura mãe no período correto”, explicou a ginecologista. O custo é menor, segundo ela, gira em torno de R$ 5 mil e em poucos dias pode-se fazer a intervenção. Porém, a estimativa de sucesso cai para 20%, aproximadamente.
Adoção sem preconceitos
Os homossexuais conseguiram legalizar a relação homoafetiva, atraem milhões de pessoas todos os anos à avenida Paulista pelo movimento em prol à causa LGBT e podem adotar crianças sem qualquer discriminação, segundo o desembargador coordenador da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça de São Paulo, Antônio Carlos Malheiros. “Eu já apoiava a causa, mas depois do julgamento equiparando as uniões homossexuais com as heterossexuais não há razões para haver recusa”, disse.
No passado, juízes se apoiavam na determinação da Constituição de que um casal é formado por homem e mulher ao negar um pedido de adoção feito por homossexuais. Para driblar o julgamento baseado na opção sexual, pessoas costumavam entrar com o pedido de adoção declarando-se solteiras. “Apenas um dos parceiros passava pelo exame psicossocial, o que deixava a criança exposta a uma pessoa que não foi estudada. Não era correto”, comentou o presidente da Comissão de Direito da Criança e do Adolescente da OAB de Niterói, Felipe Fernandes.
A primeira etapa para adoção é participar de um grupo preparatório. Em seguida, o casal vai até a Vara da Infância, passa pelo processo de habilitação, faz inscrição no cadastro nacional de adoção, é entrevistado por psicólogo e assistente social, recebe visita domiciliar, apresenta documentações de renda e estado de saúde, aguarda a localização de uma criança no perfil requerido e o caso é levado ao juiz, que aprova ou não, explicou Fernandes. “Por falta de estrutura do Poder Judiciário e das inúmeras exigências dos casais, o processo leva cerca de dois anos”, informou Malheiros.
Houve aumento nos pedidos de adoção por casais homoafetivos, afirmou o Malheiros. Fernandes, há mais de 10 anos trabalhando com grupos preparatórios para o processo, estimou que em cada 15 casais participantes, cerca de 3 são formados por pessoas do mesmo sexo. “Pude avaliar que são excelentes pais e mães, raramente vemos esse tipo de adoção causar confusões posteriores, como abuso sexual ou situações de agressividade”, elogiou o desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo. Para adotar uma criança, é preciso ser maior de 18 anos e ter 16 anos a mais do que o adotado.
Como a criança encara?
Dois pais ou duas mães: não é desta forma que os livros de biologia ou os próprios professores das escolas costumam ensinar a composição familiar. “É importante que a criança entenda a família como um conceito baseado na afetividade, no amor e no cuidado. Caso contrário, ela pode achar que o que tem não é uma família”, explicou a psicóloga Daniela Faertes. Ela ressaltou a importância de os pais ensinarem o respeito às diferenças ao filho e falarem do preconceito de forma ampla, não concentrada na homossexualidade.
“O preconceito vem de fora, não está na criança”, afirmou a psicóloga e terapeuta de família da associação Quintal de Ana, Edna Orlando. Ela atendeu uma menina que pediu dois presentes pelo Dia das Mães na escola e ouviu da professora que “não existia família com duas mães”. Por isso, é essencial a escolha de uma instituição preparada para lidar com as diversidades. O bullying e a discriminação podem causar falta de confiança e autoestima, portanto, o contato direto com a escola é essencial.
A referência à figura feminina ou masculina não é uma preocupação das psicólogas. Daniela explicou que, de acordo com o temperamento de cada parceiro, é assumida uma postura mais afetiva ou autoritária. “O casal homossexual consegue cumprir os papéis”, disse. Edna acrescentou que tio, avô, avó ou tia também podem servir como figuras representativas à criança.
Quando o “hetero” se descobre “homo”
Em entrevista ao Terra, Edna se lembrou de pelo menos dois casos em que um dos membros de casal heterossexual se apaixonou por pessoa do mesmo sexo e iniciou novo relacionamento. A reação dos filhos anteriores ao relacionamento homossexual é variável de acordo com a criação e idade. No entanto,a situação pode provocar um conflito de identidade, seguno Daniela. “O novo modelo da família não pode ser imposto de uma hora para outra”, aconselhou.
A abordagem deve ser fundamentada em realidade, mas “com calma”. “Tudo o que a criança achava, de repente não é mais nada daquilo”, comentou Daniela. Para a compreensão, não pode faltar o apoio do ex-cônjuge abandonado, tanto em relação à separação, como à diversidade.