A cidade onde vivemos tem muita influência no desenvolvimento infantil. A qualidade de vida de uma criança é permeada pelas condições urbanas, incluindo a infraestrutura disponível, o acesso aos serviços públicos, a qualidade do ar, o trânsito e a dinâmica social. Em muitas regiões, porém, os espaços não são nada amigáveis à infância, com pouco conforto e vários riscos. Como podemos adaptar os ambientes urbanos pensando no bem-estar e saúde (física e mental) das gerações futuras?
Na primeira parte desta reportagem especial (leia aqui), marcando o Dia Mundial das Cidades, 31 de outubro, falamos sobre experiências na natureza, áreas verdes e meio ambiente. Agora, vamos abordar os espaços construídos e temas como mobilidade urbana, caminhabilidade e melhorias nos espaços coletivos e sistema viário (ruas e calçadas) para serem mais seguros e convidativos às crianças e seus cuidadores.
Tomadores de decisões, políticos, arquitetos e urbanistas, líderes e as comunidades precisam juntos discutir a forma de criar cidades mais seguras e mais acessíveis. Qualquer local concebido para a perspectiva das crianças acaba sendo muito mais inclusivo para todos os moradores. Por onde começar? Hoje trazemos exemplos de soluções já executadas em outras cidades das Américas para inspirar ações em outros locais.
A rede social era a rua (e pode voltar a ser)
Há alguns anos, minha filha perguntou quando é que poderia ir e voltar a pé sozinha da escola, de tanto que ela ouvia as minhas histórias (dos anos 1980) com a minha turma. Moramos em Porto Alegre, a capital do Rio Grande do Sul, a 12ª cidade mais populosa do Brasil, com quase 1,4 milhão de habitantes. Como adulta, eu conheço o caminho de cor. Mas pensando no ponto de vista de uma criança a pé, o que ela encontraria no trajeto? E na sua cidade, como seria esse percurso?
Não é preciso morar em uma Capital para imaginar as respostas. A forma como a urbanização evoluiu deixou de considerar as pessoas no centro da atenção. Muitas famílias enfrentam a escassez de opções de mobilidade e espaços públicos acessíveis, convidativos e seguros. Os grupos mais impactados são bebês, crianças pequenas e seus cuidadores.
Outubro é também o Mês de Caminhar para a Escola (Walk to School Month). A efeméride internacional foi criada para chamar a atenção sobre algo que antes era tão banal e agora pode ser fatal: centenas de crianças morrem por dia no mundo todo decorrentes de acidentes de trânsito. O número exato em 2019 foi de 115.843 pessoas de 5 a 19 anos. No Brasil, no período de apenas 8 meses (janeiro a agosto de 2021), mais de 6 mil crianças e adolescentes entre zero e 19 anos foram internadas em estado grave por atropelamentos na condição de pedestres ou ciclistas, segundo a Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet).
É uma crise global silenciosa. Crianças têm corpos menores e mais frágeis, o que as torna mais vulneráveis. Sem falar em outro fatos prejudiciais à saúde: por terem menor estatura, estão diretamente na mira da fumaça dos escapamentos de carros, ônibus e caminhões, respirando ar tóxico. Estas estatísticas movem ativistas da infância a buscarem todos os tipos de alternativas para melhorar esta realidade.
“Se você falar em redução de velocidade, de forma geral, as pessoas vão se assustar e não vão querer implantar nada. Mas se você falar em reduzir a velocidade no entorno das escolas para aumentar a segurança das crianças, é difícil que alguém se oponha, tendo filhos ou não. As pessoas entendem a importância disso”, explica a urbanista Beatriz Rodrigues, gerente de programas da Global Designing Initiative Cities. Um dos programas da GDCI é o Streets for Kids, focado em estratégias para melhorar a vida das crianças nos cenários urbanos, com mais segurança, acessibilidade e estímulos ao desenvolvimento.
Um dos principais objetivos do Streets for Kids é reduzir os estressores ambientais gerados por veículos motorizados. Isso inclui a implementação de projetos de ruas seguras, como medidas de moderação de tráfego e redutores de velocidade, desde faixas de pedestres mais sinalizadas ou elevadas, além de zonas de baixa velocidade perto de escolas e creches.
Cidades de 15 minutos permitem boa caminhabilidade para todos
A gente adora acompanhar as descobertas de um bebê, sejam as primeiras palavras ou a primeira comidinha. E desde os primeiros passos, ainda titubeantes, damos a mão para apoio e livramos o espaço ao redor de possíveis perigos em casa, tanto uma quina de móvel quanto tapetes deslizantes. Quando este bebê vira criança e começa a caminhar pelas ruas, os riscos são de outra natureza.
“As cidades se tornaram menos seguras e agradáveis desde que começamos a valorizar os carros no lugar das pessoas. Por isso, o fato de olharmos para uma cidade e não vermos crianças nela, significa que há algo a ser resolvido”, afirma Letícia Sabino, paulistana, mestre em Planejamento de Cidades e Design Urbano.
Quando falamos em ruas e bairros, fazemos uma distinção importante: caminhar é diferente de caminhabilidade. Autor da definição do termo “walkability” em 1999, o canadense Christopher Bradshaw explica que a idade em que as crianças caminham sozinhas é determinante para entender quão caminhável é uma cidade. Algumas serão mais caminháveis que outras, conforme certos critérios mensuráveis.
CAMINHABILIDADE
A caminhabilidade avalia o quanto uma rua, bairro ou cidade é segura, agradável e confortável para que as pessoas (de todas as idades, gêneros e condições sociais) possam se deslocar a pé para acessar serviços essenciais como educação, trabalho e lazer. Para isso, considera a estrutura existente (calçadas, árvores, bancos para sentar, iluminação, parques, entre outros), assim como o uso (presença de pessoas diversas, respeito e segurança ao caminhar, entre outros).
Letícia Sabino gosta tanto do assunto que há mais de 10 anos fundou o Instituto Caminhabilidade, ONG liderada por mulheres, com o objetivo de contribuir para desenvolver cidades em que pessoas e caminhar sejam prioridade. O grupo já realizou ações para mais de 40 cidades brasileiras, com consultorias, pesquisas e projetos urbanos. Um dos pontos é olhar além da criação de playgrounds e do ajuste das calçadas. “É preciso pensar em áreas com bancos para sentar, descansar e contemplar, áreas sombreadas com árvores para mais conforto térmico, bebedouros, banheiros de fácil acesso e áreas interativas, que aguçam o brincar”, explica Letícia, citando uma das iniciativas que cidades podem copiar, como a Paulista Aberta.
Além da caminhabilidade, outra ideia conectada à mobilidade urbana são as “cidades de 15 minutos”, conceito de 2016 proposto pelo urbanista franco-colombiano Carlos Moreno. O modelo incentiva a criação de núcleos urbanos autossuficientes, ou seja, que os moradores possam acessar serviços essenciais e espaços de recreação a uma curta distância a pé ou de bicicleta. Não se trata de confinar as pessoas em suas regiões, e sim promover uma vida urbana mais sustentável e integrada, pois reduziria a necessidade de deslocamentos longos e a dependência de transporte (público ou privado). Ao redor do mundo, cidades como Paris (França), Melbourne (Austrália), Ottawa (Canadá) e Xangai (China) adotaram o conceito em alguns bairros.
A ideia oferece uma série de benefícios para crianças e seus cuidadores, como é de se imaginar. Facilita o deslocamento de crianças e cuidadores, sendo mais convidativo para atividades ao ar livre, combatendo o sedentarismo, como falamos na primeira reportagem. Também reduz os riscos de acidentes, já que o tráfego de veículos diminui. E a proximidade traz mais autonomia para a criança, que pode ir sozinha à escola, fazer trabalho em grupo na casa de algum colega, sair para fazer um lanche na padaria, coisas básicas do dia a dia.
I.A. NA MOBILIDADE DAS CIDADES
Ferramentas de Inteligência Artificial permitem checar quais lugares do mundo têm o perfil de "cidade de 15 minutos".
WHAT IF - O site permite visualizar o tempo aproximado de deslocamento a pé ou de bicicleta até os serviços essenciais em diferentes cidades, ajudando a entender como a mobilidade se insere na realidade de cada local.
15 MINUTES CITY AI - A plataforma analisa o uso do solo e o acesso a serviços em um raio de 15 minutos ao redor de um ponto escolhido pelo usuário, com insights sobre a viabilidade da implementação do conceito em diferentes áreas da cidade.
As dicas são da urbanista Izabele Colusso, vencedora do Prêmio Somos Cidade de Educação Urbanística 2023, coordenadora e docente do curso de Arquitetura e Urbanismo da Unisinos.
Quais são as características de uma cidade boa para crianças?
Se as cidades são amigáveis para crianças, com espaços para brincar e onde sejam escutadas, é muito provável que sejam bons lugares para todas as pessoas viverem: este é o pensamento do pedagogo Francesco Tonucci, também escritor e cartunista. Há 30 anos, Frato – como é conhecido – sonhava em ver lugares onde os carros não fossem soberanos, e sim os bambinos. Em sua cidade natal, a italiana Fano, os moradores criaram um conselho de crianças para ouvir suas demandas. Assim foi o início da Rede Mundial de Cidades das Crianças. Hoje o projeto tem adesão de 300 municípios ao redor do mundo que desejam tornar seus espaços urbanos mais acolhedores.
Para participar da Rede Mundial de Cidade das Crianças, não é necessário um investimento financeiro direto, mas há alguns requisitos — como a criação de um comitê de crianças que participe ativamente das decisões dos espaços urbanos. Quase todos os países da Europa e outros nove da América Latina, entre eles, o Brasil, estão na rede, com cidades como Pelotas/RS, Benevides/PA e Recife que já aderiram ao projeto, com compromisso de implementar boas práticas.
Jundiaí/SP passou a integrar a rede em 2018 e virou a sede da Rede Brasileira das Cidades das Crianças. A prefeitura disponibiliza cavaletes estilizados com a frase da foto acima, um desenho do próprio Tonucci, criador do movimento global. Quem gerencia o fechamento das ruas são os próprios moradores do bairro, incentivando a participação da comunidade.
CIDADES PARA PESSOAS
Defensor de cidades mais humanas, o arquiteto e urbanista dinamarquês Jan Gehl é referência no assunto Cidades Para Pessoas. Ele critica o planejamento urbano que privilegia o carro em detrimento das pessoas. Seus livros e trabalhos nos escritórios da Gehl People, na Europa e nos EUA, defendem uma mudança de mentalidade. Para as famílias com crianças, as cidades mais “caminháveis”, na visão de Gehl, só trazem benefícios:
#1 Cidades com menos carros e mais espaços para pedestres e bicicletas são mais seguras para as crianças, permitindo que elas brinquem e explorem seus arredores com mais liberdade.
#2 Bairros densos e com boa infraestrutura para pedestres incentivam as crianças a se locomover a pé ou de bicicleta para a escola e outras atividades, o que contribui para a saúde e a independência desde cedo.
#3 Espaços públicos de qualidade, com áreas verdes, bancos, praças e mobiliário urbano convidativo, oferecem às crianças oportunidades para socializar e se conectar com a vizinhança.
Exemplos do Brasil e da América Latina para transformar ruas e entornos de escolas
Quando uma tarefa é grande demais, muitas vezes não se sabe nem por onde começar. Mas começar por algo pequeno pode contagiar o entorno. Aqui compartilhamos exemplos de transformações de espaços urbanos em diferentes cidades com o objetivo de se tornarem mais amigáveis às crianças.
Espaços urbanos subutilizados no bairro Jardim Aeroporto, em MOGI DAS CRUZES, hoje são aproveitados pelos moradores da área e as crianças que estudam nas quatro escolas do entorno, três creches e uma escola de Ensino Fundamental, além de uma UBS (Unidade Básica de Saúde). Integrante da rede Urban95, Mogi também se denomina Cidade das Crianças e quer provar a vocação. Os alunos do bairro participaram de oficinas lúdicas criando desenhos e maquetes, depois levados a equipes de arquitetos e urbanistas da prefeitura e do CoCriança para materializar as ideias, além de ampliar as calçadas, investir em pinturas e arborização. A cidade também tem outros parques naturalizados, os “Parques Natús”, com trilhas sensoriais, brinquedos e mobiliário feitos de elementos naturais. Pesquisa com os moradores mostrou que aumentou a percepção de segurança a partir da presença de mais pessoas circulando pelo local.
Uma rua que era exclusiva para a circulação de automóveis agora é um local mais seguro e acolhedor para bebês, crianças pequenas e cuidadores no bairro do Sumaré, em SOBRAL, no Ceará. O bairro foi escolhido por ser uma área de vulnerabilidade social. A via principal de acesso era perigosa para pedestres, com carros estacionados nas calçadas, obrigando as pessoas a andarem no meio da rua. Com calçadas ampliadas, sinalização adequada, redutores de velocidade, nova arborização e brinquedos, a Praça da Primeira Infância Maria Cardoso do Nascimento agora é ponto de encontro de quem estuda nas creches e escolas ao redor, além dos moradores.
A entrada e saída das duas escolas municipais e uma creche no RECIFE eram de difícil acesso. Não tinha calçamento, nem espaços de permanência ou convivência. A transformação do entorno remodelou não só toda a rua, mas também criou um ambiente lúdico para as crianças, guiando-as no caminho para as escolas. No horário de pico, cerca de 1.200 pedestres, a maioria crianças, circulam por ali. O projeto no Recife faz parte de uma iniciativa que transformou 35.415 m² de espaço público, incorporando travessias elevadas, elementos lúdicos, bancos, estruturas de sombreamento, árvores e vegetação nos novos passeios. Além de receberem investimentos da prefeitura e do GDCI (Global Designing Cities Initiative), as melhorias recebem as opiniões de centenas de crianças e seus cuidadores que moram na cidade.
Para reduzir o número de acidentes de trânsito envolvendo crianças, a prefeitura de Fortaleza criou em 2019 o programa "Caminhos da Escola". Selecionada para o programa Streets for Kids da GDCI, a cidade reduziu um espaço no bairro Planalto Ayrton Senna, antes dedicado só aos carros, e transformou em um espaço público compartilhado entre pedestres, ciclistas e motoristas. Para isso, alterou-se o pavimento e reduziu-se a largura das ruas, com um segmento da Av. Chico Mendes fechado para a construção de uma área de brincar. Árvores e mobiliário urbano como bancos, jardineiras e elementos lúdicos foram acrescentados.
No ano passado, a cidade foi selecionada pelo programa Bloomberg Initiative for Cycling Infrastructure (BICI), também da GDCI, que incentiva o uso da bicicleta como meio de transporte. Única cidade brasileira contemplada, a capital cearense recebeu o apoio financeiro de 1 milhão de dólares para desenvolver 180 quilômetros de ciclovia na cidade, já em fase de implantação.
Um programa que começou com 24 pessoas vestidas de zebras informando a população sobre as mudanças no trânsito de LA PAZ, capital da Bolívia, virou sinônimo de responsabilidade cidadã e educação urbanística para crianças e adultos. A escolha do animal bicolor como protagonista é lúdica, mas também faz alusão ao nome em espanhol pelo qual se chamam as faixas de pedestres por lá, “paso de cebra”. Atualmente há zebrinhas educadoras do trânsito atuando em outras cidades bolivianas, como Tarija, Sucre e El Alto. Entre uma dança e outra, elas ajudam as crianças a cruzar as ruas na saída das escolas e orientam motoristas perdidos ou apressadinhos. O projeto também ajuda a combater as desigualdades sociais: por baixo das fantasias das zebras estão jovens em situação de vulnerabilidade, com idades entre 15 e 22 anos, contratados em meio período pelo governo.
Mais de 1.000 crianças foram beneficiadas em uma intervenção de 450 metros quadrados neste espaço público em León, no MÉXICO. É mais do que “pintar calçadas”: observe como o mobiliário urbano feito na rua ajuda a incentivar as crianças a usarem o espaço com segurança. As faixas de pedestres e a sinalização de trânsito também estão agora mais visíveis, como a pintura grande do limite de velocidade de 30 km/h para reduzir a velocidade dos veículos nas redondezas da escola. Esta intervenção garantiu a redução de 82% no número de veículos motorizados que excedem a velocidade permitida. O Colectivo Tomate, parceiro da GDCI e da prefeitura de Leon no projeto, conduziu uma pesquisa prévia para ver a percepção de segurança das famílias. Agora 74% dos responsáveis responderam que esta rua é segura para seus filhos brincarem, em comparação com 1% de antes das pinturas. Outro elemento bacana do mobiliário urbano são os bancos lúdicos multiuso, como o da foto acima: os adultos podem se sentar, as crianças podem brincar. A pedido dos moradores, o sucesso do projeto está estimulando planos para outras transformações em mais ruas.
Como acontece em muitas capitais do Brasil, o trânsito nas grandes cidades de EL SALVADOR é caótico, com vias urbanas de alta velocidade e pouquíssima infraestrutura para pedestres e ciclistas, o que prejudica o direito de ir e vir das crianças. O assunto virou uma das prioridades do país desde 2020, por meio da política pública Primeira Infância Crescer Juntos, com foco nas idades de zero a 8 anos. São diretrizes em quatro áreas de intervenção, sendo que uma delas é a criação de ambientes e entornos protetores. Para educar as crianças sobre mobilidade e para que no futuro elas próprias não sejam motoristas infratores, as aulas de educação para o trânsito são recorrentes e de forma lúdica. Na foto acima, um dia de brincadeiras educativas viárias em SAN SALVADOR, capital do país, para falar sobre regras das ciclovias e limites de velocidade.
Urbanismo para inclusão e combate à xenofobia nas cidades das fronteiras
Se estamos falando em cidades boas para crianças, não é possível deixá-las de fora das decisões. Na verdade, incluir este público-alvo no planejamento das cidades deveria ser recorrente. A participação infantil não acontece de forma diretamente executiva, e sim na parte anterior aos projetos. Os insights são muito promissores, como prova este projeto da ONU Habitat chamado Conexões Urbanas.
Várias cidades da América Latina receberam a iniciativa, entre elas Foz do Iguaçu e Ciudad del Este, localizadas na Tríplice Fronteira, região onde se encontram o Brasil, o Paraguai e a Argentina e onde 36% dos habitantes são menores de 18 anos, grupo demográfico mais expressivo. Crianças de 8 a 14 anos moradoras destes locais foram convidadas a colaborar na ideação de espaços públicos, como áreas de lazer, esporte e cultura.
Para conhecer a cidade, a primeira etapa foi realizar caminhadas exploratórias. “Aqui é um lugar bom de atravessar a rua? Tem muita gente caminhando por aqui? Tem muito lixo na rua? Vocês saberiam voltar para casa sozinhas?”, foram algumas das perguntas norteadoras para a observação. Papel e lápis na mão, as crianças se divertiram desenhando ou fazendo mapas e maquetes.
Chamou a atenção de todos os envolvidos o cuidado e a preocupação, partindo das próprias crianças, de como promover mais inclusão para crianças migrantes no planejamento dos espaços públicos. “Em todas as oficinas, as crianças se preocuparam não só com as necessidades delas próprias, mas com a de toda a população, como brinquedos adaptados, melhorias nas calçadas, sinalização das ruas e ciclovias, além da forte sensibilidade ambiental em cada etapa”, narra a gerente de programas Camilla Almeida, do escritório da ONU Habitat para América Latina e Caribe.
Outro resultado das oficinas foi a maior integração da garotada participante. Uma criança migrante de Foz do Iguaçu havia relatado que ao chegar na cidade se sentia excluída, inclusive trazendo relatos de xenofobia no novo bairro. O acolhimento das crianças durante as atividades nos espaços urbanos trouxeram novas amizades: agora o colega está super integrado ao grupo e à comunidade, presença constante nas brincadeiras. “A participação nos assuntos da cidade também colaborou para a mudança de chave no processo de socialização”, conclui Camilla.
Ruas abertas para as crianças curtirem a cidade (e conhecerem seus vizinhos)
Por ser limitado, o espaço é o recurso mais precioso nas cidades. Recuperar espaços já existentes para as crianças brincarem pode ser um caminho mais fácil de executar. Nem tudo precisa ser construído ou remodelado para ser mais amigável às crianças, até porque o custo seria impeditivo.
Uma alternativa mais simples é fechar as ruas temporariamente aos finais de semana e feriados, por exemplo. Fechar para os carros, abrir para as pessoas. O impedimento temporário do trânsito e sua abertura para os moradores traz oportunidades como as que existiam “antigamente”, com brincadeiras e interações sociais. Outro benefício é o fortalecimento de vínculos familiares intergeracionais, destacam os especialistas.
Nos relatos das chamadas Ruas de Brincar, as famílias contam que é a oportunidade de recordar (e ensinar) atividades “das antigas”, como pular corda, queimada, amarelinha, esconde-esconde, além de jogar bola e andar de bicicleta. Todos saem ganhando, pois a prática reduz a poluição, aumenta a segurança e estimula os laços comunitários. Quando foi a última vez que você encontrou seu vizinho além da reunião de condomínio?
COMO ABRIR UMA RUA PARA AS CRIANÇAS
A legislação que regulamenta o fechamento de ruas para lazer infantil em finais de semana e feriados varia em cada município. É preciso consultar a diretriz específica da cidade para saber os requisitos. Em muitos casos, a participação da vizinhança é determinante, como a aprovação de pelo menos 75% dos moradores para a prefeitura analisar o pedido, além de não existir hospitais ou outros serviços públicos no logradouro.
No BRASIL
Há quase uma década, a Avenida Paulista de SÃO PAULO fecha para o trânsito todos os domingos e feriados, reunindo moradores e turistas. O primeiro teste feito em 2015 foi bem-sucedido e, desde o ano seguinte, seus 2,7 quilômetros de extensão e 50 metros de largura são usados para atividades culturais, esportivas e recreativas. Se até este logradouro ícone da capital financeira do país consegue, outras também podem repetir. O movimento surgiu de um grupo de organizações da sociedade civil de SP, uma delas o antigo SampaPé, que hoje se chama Instituto Caminhabilidade (ONG criada só por mulheres), e de articulação com a prefeitura.
NOVA YORK, a mais famosa “selva de concreto”, conta com muitas mãos para tirar as crianças de dentro de casa, especialmente em bairros menos centrais. Dezenas de voluntários participam da Street Lab, organização sem fins lucrativos, que ativa espaços urbanos de forma temporária, com foco em ações educativas e de lazer, com jogos e biblioteca itinerante. Desde 2011, já foram 2 mil intervenções em 435 locais diferentes da cidade. Um dos métodos se chama "School Streets", que transforma ruas próximas a escolas em espaços livres de carros. O Street Lab envia kits para outras cidades ao redor do mundo para ajudar a implementar projetos semelhantes.
Nos Estados Unidos, visitamos a “cidade ideal para famílias”
Se fosse possível escolher um lugar para criar os filhos, como definir o melhor? Recente ranking da fintech WalletHub apostou que sim. Para chegar à lista das melhores, foram analisadas 182 cidades americanas com base em vários critérios, como custo de moradia, qualidade da educação e saúde, segurança e oportunidades de diversão e lazer, além de espaços verdes. Cruzando todos os fatores, o Estado da Califórnia ficou com cinco cidades no top 10 (Fremont, Irvine, San Jose, San Diego e Huntington Beach), com Fremont sendo a número 1 do ranking.
A saber: a WalletHub é uma plataforma de finanças pessoais que produz rankings bem específicos (qual a melhor cidade para quem tem alguma deficiência, para se aposentar ou até para ser solteiro). O site cruza um grande volume de dados públicos, como agências governamentais, departamento de transportes e até FBI para dados de criminalidade, gerando um modelo estatístico próprio.
A californiana Fremont tem 226 mil habitantes, dados do censo americano de 2023, população similar a de cidades brasileiras como Sete Lagoas (MG), Presidente Prudente (SP) ou Novo Hamburgo (RS), conforme o censo de 2022. Fica a uma hora de San Francisco, geograficamente dentro da região do Vale do Silício, sinônimo de inovação tecnológica. Tem vizinhas famosas como Palo Alto, sede da Apple, ou Mountain View, sede do Google.
Fremont era a sede oficial da Tesla até 2021, o que se observa pela quantidade de pontos para carregar carros elétricos. Mas a chegada à cidade chama a atenção não pela tecnologia, e sim pela natureza: da janela do trem o percurso mostra as imponentes cadeias montanhosas que a circundam. E aqui a jornalista pede licença para narrar outras observações em primeira pessoa.
Quando viajo, tenho por hábito pedir informações nas ruas — sempre a mulheres, para evitar problemas. Faço isso para não pegar o celular a toda hora e para economizar bateria e dados móveis (ainda mais em roaming). Uma placa no centro comercial de Fremont informava que os pontos de interesse estavam a poucos minutos de caminhada. Na dúvida sobre seguir à direita ou à esquerda, me aproximei de uma mulher que estava no estacionamento externo. Ela não só me apontou a direção como se ofereceu para me levar até lá. Pequenos espantos: você daria carona a uma pessoa estranha de outro país? Ou aceitaria carona de uma desconhecida? Eu aceitei.
“Fremont me recebeu tão bem que vai ser um prazer ajudar uma estrangeira como eu”, ela me disse, apresentando-se com seu nome vietnamita, que não consegui repetir. “Os americanos também não conseguem”, ela riu, informando que seu nome ocidental é Izzie. Contou que é enfermeira e mãe de três crianças pequenas. Trabalha no hospital principal da cidade, perto da estação do trem. Perguntou o que eu estava fazendo na cidade, que recebe poucos turistas. Contei sobre o ranking de melhor local para criar filhos na América. “Não poderia concordar mais”, Izzie comentou enquanto me levava ao Central Park de Fremont.
Há muitas áreas naturais protegidas pela cidade, mas este parque é espantoso. Um pano de fundo espetacular para atividades ao ar livre, com um lago (Elizabeth Lake) cercado de montanhas. Patos e gansos saíam da água para explorar o ambiente — e eu parecia a única pessoa surpresa com isso e com o baixo número de crianças ao redor, tanto nas pracinhas de brinquedos tradicionais ou na de brinquedos aquáticos (Aqua Adventure). Era o último dia das férias de verão nos EUA, o que faz muitas famílias viajarem.
Izzie, minha guia espontânea, voltou a seus afazeres após circular comigo no Central Park. Fiquei mais algumas horas explorando por conta própria. “Para escrever sobre cidades é necessário conhecer muitas delas”, diz o urbanista e pesquisador Alain Bertaud no livro “Ordem sem design: como os mercados moldam as cidades”. Baseada nas que já conheci, desde as pequenas interioranas às metrópoles cosmopolitas, posso atestar que o trânsito de Fremont é a principal surpresa.
Subúrbios americanos são exatamente como vemos nos filmes e em séries, mas Fremont não é considerada subúrbio (ainda que suas áreas residenciais sejam como no imaginário). As casas sem muros, as ruas largas. Tem bastante tráfego nas ruas, como se vê na foto acima. O exemplo a seguir é a chamada “abordagem Visão Zero” para reduzir significativamente acidentes de trânsito. Desde o início do seu programa em 2016, Fremont conseguiu uma redução de 92% nos acidentes entre pessoas com menos de 16 anos, um índice recorde mundialmente, que rendeu o prêmio internacional Vision Zero for Youth Leadership Award.
Você está caminhando e aperta o botão para atravessar a rua. Em menos de 10 segundos o sinal fica vermelho para os carros, e o pedestre pode cruzar tranquilamente. Testei em várias ruas: todas funcionaram. Nenhuma cara feia de motoristas, nenhuma buzina ou freadas súbitas. Lembra que no começo da reportagem contei que minha filha queria ir e voltar a pé da escola? Em Fremont, as famílias confiam. Fica aqui minha esperança, como mãe e jornalista: será que falta muito para termos esta segurança em cada esquina do nosso Brasil?
Para começar agora mesmo e colocar em prática de forma coletiva
Conheça dois guias em português, para download gratuito, destinados a profissionais de diversas áreas que gostariam de saber mais sobre a realização de espaços urbanos amigáveis para crianças. São manuais com dicas para você também se engajar em tornar as cidades mais confortáveis a todos.
DESENHANDO RUAS PARA CRIANÇAS
Da Global Designing Cities Initiatives
Estudos de casos do mundo inteiro, estratégias e recomendações para transformar ruas em locais mais seguros e agradáveis para famílias.
PROXIMITY OF CARE (Proximidade do Cuidado)
Ferramentas e orientações para gestores municipais, designers, arquitetos e urbanistas para criar espaços urbanos que atendam às necessidades das comunidades.
Dicas de obras infantis para explicar os espaços urbanos à nova geração
Que tal começar a envolver as crianças na melhoria das cidades desde cedo? Selecionamos três livros infantis para inspirar mudanças de forma lúdica a partir da literatura infantil, com obras em linguagem acessível.
MANUAL PARA FAZER CIDADES LEGAIS
De Lívia Zanelli (autora) e Isa Sonntag (ilustrações)
Um guia ilustrado para mostrar às crianças quais são os elementos que formam uma cidade, com tópicos como segurança nas ruas, o que são espaços coletivos, áreas verdes e bairros com tudo pertinho. Nas páginas finais, um QR Code traz o download de um “passaporte urbano” para imprimir e preencher nas ruas com seu filho.
SE ESSA RUA FOSSE MINHA
De Peter Fussy (autor) e Thaís Mesquita (ilustrações)
A história de uma criança que sonha com uma rua mais segura e sem carros, explicando de forma prática o que é planejamento urbano e mobilidade, além da importância de tornar as cidades mais humanas. Repare que as cores das ilustrações mudam conforme a imaginação e a vivência do protagonista, ficando mais colorida.
VOU A PÉ
De Bianca Antunes (autora) e Luisa Amoroso (ilustrações)
Acompanhamos Sossô em sua jornada de casa para a escola, explorando aventuras e sentimentos que a rua oferece a partir da perspectiva infantil, com surpresa, medo ou alegria. No site da editora, famílias e professores podem baixar conteúdos gratuitos para trabalhar em sala de aula ou ampliar o debate em casa de forma lúdica.
*Esta reportagem foi produzida com apoio da Heinrich Böll Stiftung Foundation por meio da Transatlantic Media Fellowship 2024.