"A gente não precisa de taça de cristal", diz chef do Esquina Mocotó

Em entrevista exclusiva, Rodrigo Oliveira fala do novo restaurante, do assédio feminino e da 'glamourização' de sua profissão

“Já almoçaram?”, pergunta Rodrigo Oliveira assim que repórter e fotógrafo colocam os pés no seu novo restaurante, o Esquina Mocotó. “Sim”, respondem – imediatamente arrependidos. “Que desfeita”, devolve o chef que, inconformado, trata de providenciar algumas das especialidades da casa para a experimentação durante a entrevista, concedida com exclusividade ao Terra.

A vocação para servir é notada na forma como oferece comida e atenção para qualquer pessoa que cruza o seu caminho, de clientes a funcionários e fornecedores. “Queremos ter um lugar inclusivo, não exclusivo. A gente não precisa de talher de prata ou taça de cristal. A nossa excelência se expressa de outras formas”, afirma.

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Rodrigo foi o responsável por colocar o restaurante do pai, o Mocotó, no circuito gastronômico paulista. Missão cumprida, resolveu abrir o ‘Esquina’, que fica logo ao lado, segundo ele, para poder “criar mais”. Mas sempre com os dois pés fincados nas raízes nordestinas. “Oi crianças”, diz para dois adolescentes que adentram ao salão. “Caramba, como estão grandes. Essa família frequenta o Mocotó desde que eles eram deste tamanho”, surpreende-se.

Apesar da decoração moderna, orientada por ele, o valor à tradição é percebido nos detalhes – um painel com grafite ilustrador Speto, que tem em sua arte referências à cultura do nordeste; o cardápio repleto de ingredientes típicos e, sobretudo, a devoção ao pai, o pernambucano Seu Zé Almeida, que foi quem começou a história toda.

Rodrigo tem a “benção” de nada menos do que Alex Atala, com quem já dividiu as panelas, e também já trabalhou com nomes importantes como Jefferson Rueda, Laurent Suaudeau,  Mara Salles e Gastón Acurio.  

Já provaram do seu famoso dadinho de tapioca personalidades como os irmãos Rocca, Ferran Adrià, Anthony Bourdain, Fernando Henrique Cardoso. “Acho que o que faz do Mocotó tão peculiar é que a gente junta essas pessoas todas. O dono do banco, o presidente da república, o presidente da escola de samba. E ninguém se constrange com a presença um do outro, pelo contrário. Eles comem as mesmas coisas e vivem a mesma experiência, sem distinção. E isso não vai mudar.”

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Já a admiração feminina vai além do sabor dos pratos servidos por lá. “Não sou um cara ingênuo, mas eu vejo isso mais como um gesto de carinho”, afirma o chef. Apesar de discreto neste assunto, admite que conquistou Lígia, com quem está casado há seis anos, pelo estômago, assim como as “últimas três namoradas”. “Para você ver como eu trabalho bastante”. Veja, a seguir, os melhores trechos desta entrevista.

<p>Chef Rodrigo em sua nova casa, o Esquina Mocotó: a cozinha é aberta e os clientes podem ver a montagem dos pratos</p>
Chef Rodrigo em sua nova casa, o Esquina Mocotó: a cozinha é aberta e os clientes podem ver a montagem dos pratos
Foto: Bruno Santos / Terra

Terra: De onde surgiu a necessidade/vontade de abrir um segundo restaurante?

Rodrigo Oliveira: Primeiro a gente já tinha uma demanda excedente no Mocotó, e não conseguíamos acolher todas as pessoas que vinham até aqui. E aí quando a gente viu esse ponto sendo colocado à venda, pensamos que podia ser uma maneira de a gente acolher essas pessoas, mas fazendo uma coisa diferente, não simplesmente aumentar o salão ou algo assim. As pessoas perguntam, ‘não seria muito mais fácil ter ampliado o Mocotó, feito mais um salão?’, com certeza seria mais fácil e correríamos menos riscos, mas para fazer mais do mesmo. Nossa ideia era, pelo contrário, fazer diferente.

Terra: Quais são as diferenças básicas entre os dois?

R.O.: É uma casa que vem complementar o próprio serviço do Mocotó. Aqui a gente tem mais condições de experimentar produtos, novas maneiras de fazer. O Mocotó é um restaurante que tem 40 anos de tradição, por mais que nós estejamos sempre mudando alguma coisa, no Esquina o barro ainda é fresco, a gente consegue modelar com mais liberdade.

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Terra: Como você se divide entre os dois restaurantes?

R.O.: Eu particularmente estou cuidando da Esquina como se fosse um bebezinho. Fico a maior parte do tempo, e essa proximidade é ideal para nós. Lá as coisas já estão estabelecidas.

Terra: No dia a dia você vai para a cozinha bastante ou tem que se dividir em muitas tarefas fora daqui?

R.O.: A maior parte do tempo que eu passo aqui na Esquina é na cozinha, tanto na produção quanto no serviço. E aí nestes intervalos entre almoço e jantar tento atender a todas as outras demandas, como a imprensa.

Terra: Você já disse que é um “paulistano de coração pernambucano”. Além do fato de o seu pai ser pernambucano, quais são suas referências gastronômicas do nordeste? Você costumava ir muito para lá na infância?

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R.O.: Desde pequeno eu viajo com meus pais todos os anos para o Pernambuco. E a gente viaja diretamente para o nosso sítio lá, no interior do estado. Então não só aqui a gente vivia em uma colônia pernambucana, família e amigos muito próximos, e lá estávamos em um ambiente rural, que é onde você tem a presença mais forte dessa cultura original.

Terra: Quais são as referências gastronômicas que mais marcaram você neste período?R.O.: Comia muita coisa, muito cuscuz, tatu, mas não conta para ninguém (risos), feijão. E talvez a lembrança mais forte, que eu não consigo superar de maneira nenhuma, é o sabor da fruta madura comida no pé. Isso nenhum requinte gastronômico, nenhum esforço vai te aproximar daquela experiência, de tão rica, de tão verdadeira, de tão intensa. É inigualável. As coisas que têm um sabor tão próprio, que você jamais vai encontrar aqui.

Terra: O Mocotó é reconhecido pelo seu “preço justo”. Muita gente acha que os preços praticados na capital paulista são desonestos. Você já chegou a enfrentar algum problema ou preconceito de outros colegas por conta disso?

R.O.: Discordo em dizer que algum restaurante pratique preço desonesto. Porque os restaurantes super refinados têm custos exorbitantes. Tudo ali é mais caro, desde o guardanapo, o aluguel, a taça, o talher, o prato. E quando você está comprando aquilo, não está comprando só comida. E curiosamente quanto mais refinado e exclusivo é um restaurante, menos rentável ele é. Então não é que um empresário fala ‘vou cobrar muitos reais no meu restaurante porque vou ganhar muito dinheiro’, é porque aquilo paga os custos e sobra alguma coisa para ele, e às vezes não.

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É uma escolha que se faz em algum momento. Ou você diminui sua margem e ganha no giro ou você aumenta sua margem e se concentra na exclusividade, na excelência.

Terra: E o que você pensa a respeito de quem faz esta escolha?

R.O.: Eu acho que há momento e espaço para todo tipo de negócio. O que não pode acontecer é achar que a boa mesa ou a excelência está ligada a estes acessórios. Estes restaurantes como D.O.M. e Fasano estão aí para os momentos extraordinários, não para os momentos comuns. E é claro que eles cobram por isso e é natural. Eu acredito que restaurantes como esse valem cada centavo que você investe.

É que a escolha do Mocotó é diferente. O contexto é diferente. A gente pensa sempre em inclusividade, a gente quer ter um lugar inclusivo, e não exclusivo. Que todo mundo possa vir e a gente possa se concentrar em grandes produtos e processos artesanal, em um trabalho autoral, mas onde o foco seja isso: a comida e o serviço, o acolhimento. O acessório é acessório.

A gente não precisar estar nos Jardins ou no Itaim para servir alta gastronomia. A gente não precisa de talher de prata ou taça de cristal. E nossa excelência se expressa de outras formas.

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Terra: Você nunca pensou em sair da Vila Medeiros?

R.O.: Já tivemos dezenas de convites. Não tenho nenhuma objeção em outros negócios, mas para nós nesse momento não faz sentido sair vendo que há muita coisa a se fazer aqui, muito a aprender, a evoluir. 

No novo cardápio, pratos que já eram servidos no Mocotó, como o dadinho de tapioca, foram repaginados
Foto: Bruno Santos / Terra
Terra: Como foi o processo criativo do cardápio?

R.O.: Tenho a ajuda de gente muito competente aqui, que é o caso do Rogério Moraes, que é o nosso padeiro, Mariana Dias, nossa confeiteira, o Rafael Coutinho, que é o chef da cozinha, o Marcos Arruda, que é nosso chef de produção, o Ahron Rosa, que é meu chef de bar. E todos eles têm contribuições importantíssimas para o cardápio. Claro que sou o condutor do projeto que eu acalento há muitos anos, então tinha muito dele pronto quando eles chegaram, mas todos eles contribuíram.

Terra: Você tentou outras faculdades antes de apostar na gastronomia. Concluiu alguma delas?

R.O.: Não, eu larguei as duas faculdades. Primeiro Engenharia Ambiental e depois Gestão Ambiental. Tentei e fui muito bem, modéstia à parte. Eu sempre fui bom aluno, sempre gostei de estudar, quando eu larguei o curso de Engenharia eu era representante de classe.

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Terra: Era ‘nerd’?

R.O.: Era aplicado (risos). E aí depois quando cursei Gestão Ambiental tinha um enfoque mais humano, neste mesmo tema, e eu me atraí por isso. E foi lá que conheci uma garota cujo irmão estudava Gastronomia. E foi lá que pela primeira vez ouvi valar do curso.

Terra: Mas você já cozinhava em casa?

R.O.: Muito raramente, mais por sobrevivência, quando era preciso fazer alguma coisa. Não era um hobbie.

Terra: Inicialmente, seu pai se opôs à ideia. Por que você acha que ele não queria que você seguisse esse caminho?

R.O.: Olha, sem dúvida ele sabia bem o quão sofrido era esse mundo.

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Terra: E hoje, o que ele fala?

R.O.: Para mim, ele fala que eu preciso criar juízo, deixar de inventar tanta coisa (risos), mas eu ouço das outras pessoas que ouvem dele que ele no fundo tem orgulho, que de certa forma isso satisfaz, de ver que a gente edificou em cima do legado dele.

Terra: Entre suas experiências, você também viajou por vários lugares pesquisando sobre a cachaça. De onde surgiu este interesse?

R.O.: Meu interesse por cachaça começou aqui no Mocotó. Eu comecei aqui muito novo, via as pessoas tomando aquilo e pensava ‘meu Deus, como é que eles bebem isso, é impossível’ (risos). E daí dessa curiosidade veio o interesse de descobrir o por que tinha tanto gosto nessa bebida. Comecei lendo, não conseguia beber e comecei a ler sobre a bebida. E aí depois não tinha outro jeito de ir mais a fundo se não fosse a campo. Saí viajando por Minas, São Paulo, Rio e depois para o sul do País, centro-oeste, nordeste. Praticamente rodei o País inteiro. E aí nossa carta de cachaça foi se formando. Oficialmente, já tivemos 350 rótulos listados.

Terra: Que pessoas famosas já recebeu por aqui?

R.O.: Chefs de de todo lugar do mundo. Narisawa do Japão, Olivier Roellinger, da França, irmãos Rocca, Ferran Adrià, Vitor Sobral de Portugal, todos os latino americanos, Gaston Acúrio, Virgilio Martínez, Pedro Schiaffino. A lista de celebridades, presidentes como Fernando Henrique Cardoso, gente da TV, Fafá de Belém, Criolo, Mayana Neiva, jogadores de futebol, donos de banco.

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Acho que o que faz do Mocotó tão especial e tão peculiar é que a gente junta essas pessoas todas. O dono do banco, o presidente da república, o presidente da escola de samba, e ninguém se constrange com a presença um do outro, pelo contrário. Eles comem as mesmas coisas e vivem a mesma experiência, sem distinção. E isso não vai mudar.

Terra: Em todos estes anos de restaurante, quais situações já presenciou e que foram inesquecíveis?

R.O.: Lembro de uma centena. Prestes a começar o serviço, em pleno dia de sábado, com 100 pessoas esperando para comer e a gente ficar sem energia. Ou em pleno sábado a noite, às oitos horas, ficar no escuro porque um transformador da região explodiu. Presenciar nas mesas términos de casamentos, grandes revelações, fechamento de grandes negócios, reencontro de pessoas que não se viam há décadas, pedidos de casamento, gente que desmaia, gente que sai daqui para ganhar nenê. Tudo já aconteceu.

Terra: E como é o assédio das mulheres? Elas são discretas?

R.O.: Eu na verdade não sou um cara ingênuo, mas eu vejo isso mais como um gesto de carinho, mais como um gesto de admiração, do que como uma proposta em si. E a cozinha já é uma barreira física suficiente para não te deixar tão exposto.

Terra: O que você acha dessa glamourização da profissão?

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R.O.:

Sem dúvida, hoje os cozinheiros estão alcançando status de celebridade, é muito curioso. Há pouco tempo a profissão era tremendamente mal vista. E ele é um profissional que se dedica árduas horas todos os dias para fazer as pessoas felizes. Não é comida. Se você quer comida você vai ao açougue, pega uma peça de bife e você tem comida. No restaurante você está oferecendo muito mais, você tem carinho. Tem arte, tem artesanato, enfim, eu acho justo este reconhecimento. O que não pode acontecer e que eu acho muito perigoso hoje é que com essa glamourização da profissão os cozinheiros estão cada vez mais longe da cozinha. E hospitalidade é o centro do nosso negócio, não é feijão, arroz, carne. É hospitalidade.

A 'Porcaria' é o carro chefe da casa e traz terrine, presunto Salamanca, manteiga de garrafa e outras delícias
Foto: Bruno Santos / Terra

Terra: Mas você tem muita agenda fora daqui?

R.O.: Eu fiz uma conta no começo deste ano, que se eu aceitasse metade dos convites, eu estaria mais tempo fora do restaurante do que dentro.

Sair é bom e eu conheci talvez duas dúzias de países cozinhando. É algo que vou dever à minha profissão para sempre. E isso é muito bom, eu trouxe muita coisa de fora. Mas eu acredito que como tudo na vida, equilíbrio é a palavra de ordem. E para isso também é preciso estar aqui. Sem dúvida, esse é o melhor lugar para se estar: a sua cozinha.

Terra: Já namorou alguma chef de cozinha?

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R.O.: Não e eu acho que seria muito difícil conseguir conciliar a agenda de dois chefs. Há casais aí bem-sucedidos na cozinha e no relacionamento. Mas sem dúvida ia ser um desafio a mais.

Terra: Já conquistou muita mulher pelo estômago?

R.O.: A minha esposa, por exemplo (risos). Eu a conheci no restaurante. Ela e minhas três últimas namoradas eu conheci aqui, para você ver como eu trabalho bastante (risos).

Terra: Tem algum segredo especial para isso?

R.O.: Acho que não é segredo para ninguém. É fazer com carinho, com devoção, com doação. Não importa se sua especialidade é bolo de chocolate ou sushi. Esse sentimento é facilmente percebido.

Terra: O que mais te encanta na profissão?

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R.O.: A profissão de cozinheiro para mim é muito nobre. Você abre mão de muita coisa, trabalha em um ambiente desafiador, com pressão o tempo todo, com produtos delicados e muita responsabilidade, e nisso tem uma nobreza muito grande porque você faz tudo isso por outra pessoa.

Mas efetivamente na prática o que me encanta é o trabalho manual, sabe. Tem um trabalho intelectual muito grande por trás da cozinha, especialmente quando você propõe um estilo de cozinha diferente, como a gente faz aqui. Mas o que me encanta mesmo é produzir, tocar. Este lado do artesanato da cozinha me encanta.

Terra: Você chegou a cogitar entrar para a lista dos 50 melhores do mundo, pela revista Restaurant?

R.O.: Vou te contar em primeira mão. A gente entrou na lista dos 50 melhores da Vila Medeiros. Se prepara, você vai ter surpresas (risos).

Fonte: Terra
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