Nosso movimento de reforçar a cultura queijeira brasileira passa por questões semânticas desafiadoras. Entre traduzir terminologias de outros idiomas e inventar palavras que não existem em português, como o "queijo de casca florida" (que o corretor teima em corrigir para casca flórida), nós conseguimos arrepiar os cientistas mais puristas da língua lusitana.
Essa população de seres invisíveis que povoam a casca de um queijo é chamada na academia intelectual de microbiota. Palavrinha que remete às bactérias do intestino ou da pele. Só que propor para um cliente um queijo com microbiota não é algo atraente como argumento de venda... Engraçado é que os mesmos cientistas que adoram microbiota odeiam a palavra micróbio ou germes. Vai entender.
Vender queijo com bactérias, então, que ideia horrorosa! Em vez de falar em bactérias, eu prefiro o francês "flore" ou o inglês flora. Falar em flora, ou microfloras na hora de apresentar um queijo é mais romântico, evoca um jardim e justifica o nome de "casca florida". Ótima opção para não precisar falar de mofo nem de bolores.
Na arte da cura de queijos, a necessidade de invenção de palavras é enorme. Têm sido usada a palavra "afinador" para designar quem matura queijos, abrasileirando a palavra francesa "affineur".
Afinar em português sempre foi para o ato de ajustar as notas de um instrumento musical: afinar o violão. Essa é dispensável, pois já temos em português as palavras "curador" e "maturador", que eu prefiro do que falar de afinador.
Outra palavra do universo da maturação de queijos que não tem tradução é morge, aquela água turva que os curadores lavam seus queijos, para promover a transferência de floras de lotes de queijos mais velhos para queijos mais novos. Essa ninguém inventou outra e ficou morge mesmo. Morge é exclusivamente utilizada para a preparação de lavagem de queijos de massa dura e semidura.
Já para o líquido que lava queijos de massa mole, a expressão é solução de lavagem mesmo, pois ela é trocada a cada utilização.
Formando leveduras
Leveduração: uma palavra que inventamos na última edição da Profissão Queijeira, a revista francobrasileira para o público profissional que vive de queijo. Vem do francês "levuration", processo inicial de cura de algumas famílias de queijo, que acontece em sala específica por 3 ou 4 dias, onde o Geotrichum candidum domina a microbiota da casca e prepara o queijo para ir para a sala de cura.
A sala de leveduração, segundo a tecnologia do queijo reblochon, tem temperatura de 18ºC e umidade de 80% à 85%, ideal para multiplicação da microbiota, oups, da flora superficial do queijo. Trocando em miúdos: o mofo da casca!
Para quem quer aprofundar, na revista Profissão Queijeira 16 explicamos em um longo texto que esse fenômeno de mofar são as dinâmicas micelianas do Geotrichum candidum, ou o Geô (também inventamos apelidos diminutivos para os microrganismos que dão em queijos), que tem duas fases: a de levedura e a outra quando deixa o queijo aveludado, pois há uma formação de micélios. Traduzindo do científico para o popular: a população cresce e o queijo vira um tapete branco mofado.
Aprender a traduzir esses termos científicos do queijo na linguagem caipira é coisa que vai acontecendo aos poucos. É o meu maior desafio enquanto redatora da revista Profissão Queijeira. A recompensa vem quando vejo que os produtores começam a entender melhor o que dá resultado, por exemplo, qual temperatura e umidade fazem o mofo ficar um tapete branquinho: Assim eles vão se apropriando do Geô e de toda informação queijeira.
Novidades da última revista
A revista Profissão Queijeira, que sai a cada dois meses, chegou na sua edição nº 20! A matéria de capa é sobre o queijo vulcânico feito por Elena Stein, que cultiva mofo branco quando o clima fica mais úmido e quente. Ela transforma uma parte do leite do rebanho de vacas da raça Caracu em Poços de Caldas.
Dentro da cratera do vulcão adormecido, todos os queijos são de leite cru e fermentos selvagens. Os queijos também ficam branquinhos quando o clima está bem úmido e fresco.
Na seção de vendas, a loja Fusqueijão é invenção de um casal carioca, Aline Garrido e Rubens Aleixo, que começou a vender queijo em um fusca e migrou pra internet, revolucionando a arte de vender queijos. Artista que, aliás, teve também uma palavra inventada: o tão importante queijista! Assim vamos evoluindo a cultura queijeira brasileira, o que não existir, nos permitimos inventar.
*Texto adaptado do editorial da revista Profissão Queijeira nº20