Vai lá, você pega dois voos, viaja mais de 5 mil quilômetros, chega em uma ilha paradisíaca, num hotel de novela e o jantar é... comida brasileira! Duvido que a primeira exclamação seja de entusiasmo. Porém, jornalista é bicho esquisito, quer estar onde nenhum colega está, provar tudo em velocidade desumana e, de quebra, revelar o que houver de mais surpreendente.
Uma esquisitice que faz repórter vibrar com um jantar de Manu Buffara no St. Regis Bahia Beach, em Rio Grande. Dessas coincidências da vida, Manu Buffara estudava jornalismo quando começou a desenhar sua carreira mais do que na gastronomia, na hospitalidade, num resort nos Estados Unidos. Não era na praia de Porto Rico, mas de esqui, perto de Seattle.
Ainda que seja grande cantora de karaokê, Manoella Buffara Ramos é reservada. Aterrizou um par de dia antes com um tanto de tucupi preto, cupuaçu e farinha do Uarini na mala. Trouxe também biquini, mas não foi aproveitar um dos cem melhores spas do mundo, foi direto à cozinha.
De lá praticamente só saia para a horta, esse lugar de idioma universal, para ela, tão familiar. Manu até nasceu em Curitiba, mas com poucos dias já estava em Maringá, onde o pai era fazendeiro. De maneira que os canteiros ajudaram a criá-la. Hoje, de volta à capital do Paraná, eles são parte essencial do restaurante Manu e de seu trabalho social.
Para aplacar a insegurança alimentar e pela saúde da população, a cozinheira comanda um projeto com mais de 80 hortas urbanas comunitárias. Já em Río Grande, as fileiras de ervas, flores, hortaliças e outros vegetais, foram respiro, inspiração e dispensa.
Menu da Manu
Logo depois do amuse-bouche, uma ostrinha na brasa, a colheita de pimentão sweet pepper emulsionou o tartar de mignon de wagyu, que contrastava com a doce acidez do gel de cupuaçu e o crocante de quinoa.
O alho-poró com pancetta, molho de amêijoas e farofa bem crocante de mandioca, deixou claro o protagonismo das plantações, mesmo que os dois seguintes pratos tenham feito de tudo para roubar a cena com frutos do mar impecáveis.
Primeiro, o camarão vermelho, doce por natureza e quase cremoso na consistência, foi ressaltado por tangerina, erva-doce e outros ajíes dulces; depois, a lula "churrasqueada" derreteu-se em um requeijão de coco da ilha: "É legal que a gente vai se renovando, vai usando a criatividade e vai indo. A lula, por exemplo, é um prato do prato do Exímia, mas lá é menorzinha e vem com o molho da tinta. Aqui, eu coloquei o buttermilk de coco do Manu". Ah, o Exímia é o bar que ela abriu este ano em São Paulo com o renomado mixologista Márcio Silva.
A alface tostada fez papel parecido ao dos outros ingredientes locais: se não existisse no prato, a deliciosidade do cordeiro seria rasa. Bem mais que uma saladinha, essa alface foi um dos grandes insights de Manu: "É uma caesar totalmente diferente, com queijo cotija, que é daqui, anchova e, no lugar do crouton, amendoim torrado".
Na sequência, mais uma vez erva-doce encantou, agora com vinagrete de morango e sorvete de iogurte. "Foi um prazer trabalhar com a Manu, o talento é impressionante, a complexidade de sabores, o fato dela se encantar com a cultura local e usar produtos da horta, incluir nosso maracujá e coco nos chocolates, além do tucupi que ela trouxe", comentou Diego Ortega, chef do St. Regis Bahia Beach.
Brasilidade e taurinice
O encantamento de Diego coincidiu com os comentários por todo o salão. Era Brasil daqui, Manu dali, tucupi de lá. Coincidiu com a sensação junto ao último bombom. Pode soar esnobe, mas é real: é raridade chegar ao fim de um menu degustação achando que porções, tempos e sabores estavam no ponto.
Nos bastidores, Manu evitou pensar no bolo para o aniversário da filha caçula no dia seguinte, driblou restrições alimentares de última hora, língua e jeito de trabalhar diferentes. Em respeito absoluto à cozinha alheia, deixou que a serenidade ao pé do fogo se dispersasse à comida, ao serviço, para dentro do comensal.
A melhor chef mulher da América Latina de 2022 (sem entrar no (de) mérito do sexismo), botou o sul do Brasil no mapa gastronômico - do nosso país e do mundo. Propaga que é possível fazer o bem servindo as pessoas, "que um bom prato pode realmente salvar o dia".
Manu está longe dos clichês, mas essa adoração pela comida poderia ser, ou é, traço de sua personalidade taurina. É quase palpável em seu jantar. Não só emociona outra taurina, como dá aquele orgulho de ser brasileiro.