*com base na matéria "Parece queijo, tem gosto de queijo, é vendido como queijo, mas não é queijo", de Mariana Costa, publicada originalmente em O Joio e o Trigo
Nos últimos anos, uma nova tendência tem ganhado força na indústria alimentícia brasileira: as chamadas "soluções lácteas". Estes produtos, apesar do nome que sugere presença de leite, muitas vezes possuem uma composição com proporção mínima ou até mesmo ausência total de leite. Esta tendência tem sido impulsionada pela crise enfrentada pela cadeia produtiva de leite no Brasil.
A produção de leite no país tem enfrentado desafios significativos, resultando na saída de cerca de 600 mil produtores nos últimos 20 anos, devido a custos crescentes e disponibilidade reduzida de leite. Nesse cenário, surgem produtos de qualidade nutricional inferior e preços mais baixos, direcionados tanto para fabricantes de alimentos quanto para os consumidores finais. Essa realidade se deve em parte a brechas na legislação alimentar, que permitem até mesmo o uso de aditivos não autorizados pela Anvisa.
Um exemplo notável é a categoria de misturas lácteas, que ganharam destaque no mercado, com produtos à base de soro de leite vendidos em embalagens semelhantes às dos produtos originais. Essas soluções lácteas se tornaram uma alternativa atraente para empresas que buscam reduzir custos em meio à escalada dos preços dos produtos lácteos tradicionais.
Empresas como a Alibra, especializada em ingredientes lácteos e não lácteos, introduziram produtos como a Mozzana, uma cobertura com sabor de mussarela, projetada para ser misturada ao queijo real, com o objetivo de economizar custos. No entanto, a Mozzana não contém ingredientes lácteos, sendo composta principalmente por água, gordura vegetal, amido modificado, caseína e aditivos diversos.
As “soluções lácteas” também estão presentes nos fasts foods. A Schreiber Foods é a fornecedora de queijos processados para o McDonald’s. Ela fornece ao menos três tipos de “preparado sabor” nas modalidades prato, cheddar e mussarela, produtos feitos à base de água, gordura vegetal, queijo (não especificado), leite e muitos aditivos. Não é possível saber ao certo a composição desses produtos que são fornecidos apenas para o setor de food service e para a indústria de alimentos.
A escassez de produtos lácteos tradicionais levou a uma oportunidade de ampliar a base de clientes para produtos como compostos lácteos, substitutos de queijos, coberturas cremosas e muito mais. No entanto, informações detalhadas sobre a composição desses produtos muitas vezes não estão disponíveis para o consumidor.
A regulamentação e fiscalização de produtos de origem animal no Brasil são compartilhadas entre o Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) e a Anvisa. Os derivados lácteos são divididos em três categorias, com a exigência de um percentual mínimo de ingredientes lácteos no peso final. No entanto, as brechas na legislação permitiram que os fabricantes de soluções lácteas usassem termos como "cobertura" e "sabor queijo" em seus rótulos, mesmo quando os produtos continham menos de 50% de ingredientes lácteos ou nenhum leite.
A situação tornou-se ainda mais complexa com a presença de aditivos não autorizados em muitos desses produtos, aumentando a preocupação com a qualidade e a segurança alimentar. Embora o MAPA tenha se manifestado contra o uso de alegações lácteas em produtos sem ingredientes lácteos significativos, a regulamentação e fiscalização efetiva são responsabilidades da Anvisa.
Em 2022, a Anvisa convocou uma reunião com entidades setoriais e fabricantes de aditivos para abordar a expansão desses produtos no mercado. As entidades foram informadas de que "não têm respaldo nenhum na regulamentação que permita o uso de aditivos". No entanto, muitos produtos irregulares continuam disponíveis nas prateleiras dos supermercados.
No geral, a tendência das soluções lácteas levanta questões importantes sobre a regulamentação, rotulagem e qualidade dos alimentos no Brasil. Com a demanda por produtos mais acessíveis e duráveis, a indústria de alimentos busca inovações que, por vezes, comprometem a integridade dos produtos tradicionais, deixando os consumidores em busca de maior transparência e regulamentação eficaz.