Quando duas ou mais pessoas se reúnem, geralmente tem uma mesa e uma porção de petiscos no centro. Ninguém repara muito, mas a culinária vai muito além do pastel do bar e do arroz e feijão do almoço diário. Como um protagonista do convívio social, a comida não fica somente no convencional jantar de amigos e familiares, mas ganha também o poder de melhorar a vida das pessoas, de unir povos e diminuir fronteiras. “Cozinha também é ferramenta social”, afirmou o chef Alex Atala, proprietário do sexto melhor restaurante do mundo, o D.O.M., durante a palestra Aproximação Brasil – Peru: por uma cultura gastronômica mais abrangente, que reuniu ainda o premiado chef peruano Gastón Acurio, o chef Dagoberto Torres, do restaurante Suri, e Rodrigo Oliveira, chef do Mocotó.
“A cozinha tem o poder de influenciar as pessoas, por isso através dela podemos começar um projeto que derrube as muralhas culturais de milhões de anos”, afirmou Gastón Acurio, proprietário do Astrid&Gastón, o 14º melhor restaurante do mundo, segundo a revista Restaurant. O grande projeto é fundir ingredientes brasileiros e peruanos como uma forma real de integrar dois países tão próximos e que têm em comum 2.800 quilômetros de fronteiras e parte da Amazônia.
“A cozinha vai além de alegrar quem come. Ela transforma a vida dos envolvidos”, disse o chef. Segundo ele, a gastronomia deve seguir quatro princípios básicos: difundir a cultura, difundir os produtos, atrair turistas e promover a integração entre classes diferentes. Seguindo a risca a teoria, ele se tornou muito mais do que um especialista em ceviches, mas também um expert em difundir a culinária como “arma social”.
Culinária como arma social
Com esta ideia na cabeça e anos de projetos, um dos melhores chefs do mundo conseguiu alavancar o ceviche a um dos pratos destaques no mundo que carrega o Peru como símbolo e dá destaque a culinária do país andino. Como? Unindo forças. “Cozinhar não é só chef e restaurante, é uma cadeia imensa”, afirma o brasileiro Alex Atala, entusiasta da mesma ideia.
E esse cadeia é mesmo imensa, passa por pescadores, pequenos produtores, vendedores, distribuidores, cozinheiros, restaurantes e, finalmente, os consumidores finais. E Gastón reforça que ninguém neste processo é mais importante que outro e, que, compartilhando dos mesmo objetivos, todos vencem. Está ai o Peru para confirmar a teoria. “Nós sentimos orgulho e respeitamos nossa cozinha e nossa biodiversidade”, comenta Gastón.
Hoje no país andino, a culinária aproxima as pessoas e gera renda para pessoas de classes distintas. A proximidade é tao grande que os cozinheiros peruanos usam placas identificando o nome do pescador que trouxe o peixe que irá ser servido como ceviche.
A culinária saltou de fonte de alimentação para patrimônio cultural no Peru. Atualmente, o país tem 80 mil pessoas estudando culinária e gastronomia. De frente aos resultados, Gastón e o chef espanhol Ferran Adrià lançaram o documentário Perú Sabe: la cocina, arma social, que conta a importância dos jovens nesse processo. Entre as histórias relatados no vídeo, há um jovem que abandonou o sonho de ser jogador de futebol pela nova paixão pelas panelas e facas.
E o Brasil?
E aqui no Brasil? “Acho que os cozinheiros do Brasil têm que sair da zona de conforto e irem conhecer melhor a cadeia de produção e fortalecer o relacionamento com os fornecedores”, comentou o chef Dagoberto Torres, colombiano de nascimento, mas responsável pela cozinha do Suri – Ceviche Bar, localizado na capital paulista.
Entusiasta da mesma ideia de Gastón, Atala criou o ATÁ – palavra que significa fogo, em guarani - um instituto que valoriza e divulga os sabores e ingredientes nacionais e busca melhorar a relação entre o homem e a comida. A tarefa não é fácil e a pressão é grande. “No Brasil, talvez o maior inimigo da cozinha brasileira seja eu. É muita demanda em cima de mim e às vezes eu me esqueço de falar dos jovens. Um país é referência não porque tem um bom cozinheiro, mas porque tem muitos bons cozinheiros”, afirmou o chef.
Para Alex Atala, dividir a responsabilidade, buscar sabores diferentes, valorizar projetos e fazer parceria são os grandes segredos. “O Peru se preocupa com a gastronomia, mas não só com a alta gastronomia. Dá valor ao cozinheiro de rua e ao cozinheiro criativo do mesmo jeito. Aqui no Brasil, as partes se afastam”, comentou.
Mas, nem tudo está perdido para o Brasil. O movimento ainda é recente e une visionários em torno da mesma causa. E exemplos para se espelhar não faltam, já que Atala viu de perto muitos dos trabalhos feitos pro Gastón no Peru. “O importante é aproveitar o que já existe para divulgar a todos. Queremos levar coisas bonitas ao mundo”, encoraja Gastón.
A rainha tapioca
E o que de mais belo o Brasil poderia levar ao mundo? A farinha de mandioca. “Acredito que em breve ela poderá se tonar uma referência da identidade nacional. Sou um entusiasta da farinha e das farofas”, afirmou Atala.
Rodrigo Oliveira faz coro com o “mestre” e vai além, elege a tapioca como provável produto-bandeira que irá divulgar a culinária brasileira ao mundo. “Aposto que a tapioca tem chances de se tornar o grande destaque brasileiro. O ceviche é mais que um prato, é um conceito e é versátil, então poderíamos encher a tapioca de pasta de amendoim nos Estados Unidos ou colocar queijo brie na França que iam dar receita interessantes de tapioca”, argumenta o chef do restaurante nordestino Mocotó.
Se a farinha de mandioca não decolar ou for preciso lançar mão de novas receitas, não será problema, já que compartilhamos de imensa biodiversidade. “Temos a maior dispensa do mundo, do chili mexicano ao vinho chileno”, diz o chef do D.O.M. Para o Brasil chegar ao patamar de organização e união em torno da culinária vivenciados pelo Peru falta muito. Mas, mesmo assim, ele já ganha certo destaque e não passa despercebido.
“Acho exagerado dizer que a Europa se inspira no Brasil. Acho que ela está interessada, curiosa pelo Brasil e pela América Latina”, explica Atala. E, para brilhar ainda mais diante dos olhos do mundo e melhorar a vida de milhões de pessoas envolvidas na cadeia da gastronomia, usar melhor os milhares de ingredientes disponíveis aqui pode ser um grande começo. “Vamos começar a colocar fraternidade na mesa”, traduz Gastón.