As dores e os amores de quem vive uma maternidade atípica

A youtuber Márcia Magalhães e a escritora Tereza Melo dividiram suas vivências como mães de filhos com necessidades especiais.

7 mai 2020 - 14h00
(atualizado em 8/5/2020 às 10h06)

Receber a notícia de que um filho não terá um desenvolvimento típico é um choque para as mães que idealizaram a maternidade perfeita. Ou uma frustração para quem simplesmente gestou com amor, decorou cada detalhe do quartinho da criança, lavou as roupinhas com todos os cuidados de higiene e planejou o ingresso do filho na escolinha e a conquista do diploma anos à frente. O script às vezes muda rápido com o diagnóstico de uma deficiência. "Cada uma vive do seu modo o luto da expectativa", diz Márcia Magalhães, ex-secretária executiva trilíngue.

"Quando a gente engravida, a gente não pensa no que pode ser. A gente pensa no básico, no que acontece, no que é típico. Ninguém imagina que vai gerar uma criança com deficiência. Então, quando eles chegam, é uma baita de uma surpresa", relembra. Com parto tranquilo e gravidez saudável, Márcia sentiu que próximo de completar um ano o seu filho se desenvolvia um pouco devagar, mas não achou que seria algo grave. "Quando a médica falou que ele tinha uma paralisia cerebral e jogou essa bomba no meu colo, naquele dia eu senti uma coisa muito estranha, uma coisa ruim, e percebi que minha vida profissional tinha acabado. Foi a primeira coisa que eu pensei", acrescenta. À época, ela trabalhava na rede de joalheria H Stern. 

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Márcia Magalhães grávida de Arthur
Márcia Magalhães grávida de Arthur
Foto: Reprodução

A partir daí, a corrida por uma ascensão na carreira transformou-se em uma jornada pela saúde. Em 2016, quando Arthur tinha quase seis anos, uma ressonância magnética confirmou que na verdade ele tinha Síndrome de Leigh, uma das oito mil doenças raras catalogadas no Brasil, segundo dados de 2019 do Ministério da Saúde. No País, são mais de 13 milhões de brasileiros que têm doenças raras, ainda de acordo com a pasta, assim como o Arthur, o Caio (que vocês conhecerão mais à frente) e a minha irmã, Júlia, também portadora de Leigh.

“É uma síndrome neurometabólica, degenerativa, genética e mitocondrial. A mitocôndria é o que gera energia para o nosso corpo e o Arthur tem um defeito nessa cadeia de geração de energia. Isso faz com que os músculos estejam, na maior parte das vezes, hipotônicos (com pouco tônus e força muscular, o que causa moleza e flacidez), até mesmo na parte interna de órgãos como esôfago e intestino. Arthur não teve perdas, só ganhos. Nessa síndrome, as crianças chegam a caminhar, a falar e elas retrocedem. O Arthur não chegou a ter nada. Então, a gente não considera que ele teve uma progressão da doença porque ele não teve perdas. A única coisa que ele fez muito bem foi mamar. Depois que ele parou, o sugar para ele já era", explica Márcia. 

Arthur e Márcia Magalhães, youtuber do canal Dicas Especiais.
Foto: Reprodução

Recomeço

A mãe de primeira viagem afirma que levou mais ou menos cinco dias para digerir efetivamente a informação de que seu filho era uma criança atípica, e encarar os desafios que estariam por vir. “Quando a gente não tinha o diagnóstico, o que mais angustiava era pensar que poderia haver uma vitamina que pudesse auxiliar no desenvolvimento ou estabilizar o quadro dele e a gente não estar usando. Eu cheguei a um ponto que eu não queria mais saber o que realmente ele tinha. Decidi que queria cuidar do Arthur, melhorar o bem estar dele”. 

Com bastante fisioterapia, sessões de fonoaudiologia, psicopedagogia, hidroterapia, terapia ocupacional, o apoio do Hospital Sarah, no Rio de Janeiro, e principalmente da Clínica Follow Kids,  Arthur teve alguns ganhos no desenvolvimento e hoje apresenta quadro estável. Márcia, por sua vez, virou uma grande entendedora da rotina do seu filho. Entre erros e acertos, tem dicas valiosas que compartilha em seu canal do YouTube Dicas Especiais, com mais de sete mil inscritos.

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O espaço virtual, criado em 2015, é uma das atividades que Márcia mais sente prazer em desenvolver e que concilia junto aos cuidados do filho, da limpeza da casa, da comida e do marido, Fabio Magalhães. "Tudo para o meu filho vem de mim. As terapias são feitas na clínica, mas estamos em teleatendimento agora por causa da pandemia. Até uma diarista que vinha a cada 15 dias nós precisamos parar. Sou eu que faço tudo mesmo. Meu marido trabalha em casa então dificilmente eu tenho essa ajuda. Se eu pedir eu vou ter. Eu não gosto de ficar atrapalhando ele", relata. 

Para o autocuidado, sobra-lhe apenas uma hora diária que destina à atividade física, em casa mesmo, quando Arthur tira um cochilo pela manhã. Até por isso, o canal está desatualizado há quatro meses. O lazer externo, antes da quarentena, também envolvia a maternidade. "Eu não tenho com quem deixar o Arthur. Meus pais são idosos, minha mãe tem medo. Minha sogra é mais tranquila, mas ela tem uma vida social, ela gosta de sair e também tem medo de alimentar ele por causa do engasgo. Eu não me sinto confortável de prender ela para eu sair. A gente sai para comer, para ir ao cinema raras vezes. De modo geral, quando a gente sai, eu levo ele. Onde eu tiver que ir, carrego comigo".

Márcia Magalhães, o marido Fabio e o filho do casal, Arthur.
Foto: Reprodução

De ex-secretária trilingue de uma grande rede de joalheria à mãe em tempo integral, Márcia tem certeza de que sua rotina não é fácil, mas que as coisas melhoram com o tempo. "As mães de crianças com deficiência costumam colocar na cabeça que têm dificuldades muito grandes. Eu prefiro pensar que são dificuldades diferentes, mas que a gente contorna, que a gente aprende a lidar. E a gente vai conhecer pessoas, tratamentos, formar grupos de ajuda. Eu sei que é difícil para caramba e que eu estou em um grupo pequeno de mães que levam isso bem. Tem muito pai que não aguenta e vai embora. E cada uma vive seu luto pela expectativa de um jeito diferente. Até aquilo passar, cada uma tem o seu tempo. A gente precisa viver feliz e com pensamento positivo para viver com saúde". 

Raro, não invisível

Tereza Melo é mãe atípica solo de Caio Moreno, de 25 anos. Mas às vezes brinca que é "pãe" (pai + mãe), já que o ex-marido só cumpre o papel financeiro com o filho. "Infelizmente, os homens não suportam conviver com a dor", comenta a ex-empresária. Tereza, assim como Márcia, teve uma gestação completamente normal e saudável. A surpresa sobre a deficiência do filho veio na primeira infância, quando o menino começou a perder o equilíbrio após uma infecção respiratória. Aliado a isso veio a perda da fala e de alguns movimentos. Era a --raríssima-- Síndrome de Van der Knaap se desenvolvendo. A doença neurológica apresenta algumas características comuns em alguns pacientes como macrocefalia ou aumento do perímetro cefálico (crânio aumentado), desenvolvimento psicomotor inicial normal ou moderadamente afetado e perda da coordenação motora.

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Tereza Melo e Caio, seu filho e fonte de inspiração para o livro 'Raro, não invisível'
Foto: Reprodução

Tereza também levou anos para descobrir o que realmente seu filho tinha, passando por um pediatra de Salvador, onde mora, especialistas em São Paulo e nos Estados Unidos. Toda a sua trajetória é contada no livro Raro, não invisível, que lançou em 2019, com tiragem de 500 exemplares. "Eu sempre tive vontade de dividir a minha experiência com outras pessoas. Porque meu filho e outras crianças especiais são felizes e têm neles os sentimentos mais nobres", explica.

Em tempos de pandemia, os banhos de sol e de piscina de Caio, foram substituidos pelas lives na televisão. "Ele ama música, ama MPB", conta Tereza. Caio também estuda em casa, com apoio de uma escola domiciliar oferecida pelo Governo do Estado e é tratado em home care com uma equipe multidisciplinar.

Tereza e Caio em festa junina realizada em 2019
Foto: Reprodução

A mãe de Caio também é adepta da atividade física, que funciona como aliada ao autocuidado e à saúde mental, assim como a faculdade de Serviço Social que cursa. No entanto, a rotina de ginástica precisou dar uma pausa após a descoberta de um câncer de mama e a chegada de tratamentos oncológicos.

"E eu vejo a minha vida como um aprendizado. Eu não vejo que meu filho é algo pesado. Meu filho é amor.  É lógico que eu não gostaria que fosse da forma que é. Mas Deus me deu e tenho que aceitar com amor. Afinal, a gente veio aqui para aprender, para evoluir, para melhorar", explica Tereza, uma daquelas mãezonas, que faz de tudo pelo filho. Já contratou até uma van para levar os amigos cadeirantes do filho para um passeio em shoppings e praias baianas.

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Tereza e Caio em uma das atividades de lazer preferidas do filho: banho de sol e piscina
Foto: Reprodução

"Uma coisa importante para mim é ser feliz e estar com saúde. Então, se ele é feliz e está com saúde, isso é o que importa. E eu olho para ele e vejo o semblante feliz que ele tem. Se eu pudesse dar um conselho para uma mãe novata seria para ela não se apavorar, para ela ter fé. Tudo vai ficar bem e que o mais importante de tudo é o amor". 

Fonte: Redação Terra
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