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Dos presídios ao TikTok: mulheres de presos mostram 'parte boa' de rotina na internet

Influenciadoras mostram, em conteúdo leve e divertido, como preparam os jumbos para os companheiros e os bastidores das visitas às prisões

6 mai 2022 - 05h00
(atualizado às 08h40)
Jessica Mendes,  Stefany Pereira e Erika Mauro
Jessica Mendes, Stefany Pereira e Erika Mauro
Foto: Reprodução/Instagram

"A gente tenta mostrar a parte boa, já que a ruim todo mundo conhece". É assim que Jessica Mendes, de 26 anos, resume a produção de seu conteúdo viral sobre como é a vida de uma "mulher de preso" no TikTok, perfil na plataforma de vídeos curtos em que soma quase 6 mil seguidores. 

Com muita simplicidade e naturalidade, Jessica e centenas de outras mulheres, que se chamam de "cunhadas", mostram os bastidores da vida — nada glamurosa  — de quem tem um ente querido atrás das grades. Elas lutam todos os dias para que, quando a sentença for cumprida, seus maridos tenham suporte para construir uma nova realidade.

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São 601 quilômetros que separam Jessica, moradora de Itaquaquecetuba, do marido Bruno, que cumpre pena há seis anos no Complexo Penitenciário de Nova Independência, quase na fronteira com Mato Grosso do Sul. Uma vez por mês, ela é tomada pela ansiedade pré-visita e também pelos receios à sua integridade física na viagem de onze horas de duração. 

O conteúdo que ela publica no TikTok é gravado nos dias anteriores ao encontro com o amado. Os vídeos, muitas vezes, seguem um padrão: ela mostra a montagem do jumbo, kit levado ao detento, semelhante a uma cesta básica; se arruma para a visita; prepara a marmita que vai levar para o marido e termina com cenas de trechos do trajeto até local de destino.

"Só daqui até a Barra Funda levo duas horas, mas sigo com fé", comenta.

Os vídeos de Jessica somam números expressivos na plataforma, assim como os da tag #mulherdepreso de forma geral. Um de seus maiores hits tem 58 mil visualizações, mas há perfis que alcançam milhões de views em poucas horas. 

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Toda essa visibilidade se torna uma faca de dois gumes. Ao mesmo tempo que ela recebe o acolhimento das cunhadas, que entendem as dificuldades da rotina e dos cuidados, também é alvo de piadas e críticas de quem não conhece essa realidade. 

Mas Jessica garante que é tranquilo lidar com essa repercussão negativa, que já lhe rendeu até ameaças de morte. A experiência veio do Instagram, onde reúne 15 mil seguidores. Antes do TikTok, ela já produzia conteúdos na rede social e recebia mensagens de ódio por mostrar sua rotina.

"Mulher de bandido"

Mas nem sempre é assim. Com a atendente de telemarketing Stefany Pereira, por exemplo, a fama veio rápido e, com ela, uma onda de críticas e haters interessados apenas em ofendê-la. Em seu primeiro vídeo, publicado em fevereiro, foram mais de 5 milhões de visualizações do dia para a noite e, é claro, uma enxurrada de comentários veio junto.

"Não é fácil de forma nenhuma", desabafa a jovem de apenas 20 anos. 

Dentre os comentários, ela relata que já teve que ler que "bandido bom é bandido morto" após mostrar a montagem do jumbo para seu marido. Houve quem dissesse, também, que ela seria abandonada por ele assim que a sentença fosse cumprida e que ela seria uma "mulher de bandido".

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"As pessoas não têm empatia pelo próximo. Elas pensam que, por um marido ou um filho estarem presos, a gente também faz coisa errada, só que não é assim", se defende.

As jovens são levadas a crer que, enquanto seus companheiros estão presos, elas também precisam cumprir alguma penitência aqui fora.

"Nós que somos mulheres de preso somos muito julgadas", relata Stefany. "A gente não faz [os vídeos] romantizando, porque não é uma coisa legal, mas sim para que as pessoas vejam que os presidiários não estão lá às custas do governo. É o familiar que tem que mandar tudo", explica.

Apesar dos comentários negativos, Stefany afirma que continuará com o conteúdo no TikTok, a preparação e o cuidado para com o marido. "Estou estendendo a mão para que ele saia dessa vida como uma pessoa melhor. Dando um apoio pra ele sair dessa vida", garante.

Tudo por amor

"Apoio" parece ser palavra de lei para as cunhadas fazerem o que fazem. Jessica, por exemplo, acredita que o suporte que tem dado ao amado nos últimos seis anos tem lhe garantido, além de sanidade no encarceramento, incentivo para não voltar ao mundo do crime. Bruno, inclusive, prestou o último Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e pretende cursar uma universidade, ainda não definida, em breve. 

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Sem receio de ser deixada por seu amor quando a "liberdade cantar", como a própria diz, é na montagem dos jumbos que esse apoio todo fica visível. Jessica é autônoma do ramo estético, ou seja, não tem renda fixa. 

Ela trabalha com maquiagens, penteados e tratamentos de beleza. Entre um boleto e outro, sem deixar faltar nada em casa, ela consegue uma sobra e investe do kit, que geralmente chega a custar R$ 700. Geralmente, os jumbos contêm enlatados, comida, produtos de higiene, canetas, roupas e até isqueiro. Somados às passagens de ônibus, que custam em média R$ 500 de ida e volta, o orçamento para encontrar o marido uma vez ao mês pode chegar a R$ 1,2 mil.

Entretanto, o financeiro é apenas a ponta do iceberg de problemas para quem tem parentes encarcerados. A sobrecarga emocional é grande. Renegado pelos pais após a prisão, o marido de Jessica não recebe parentes ou amigos, o que a coloca em uma posição delicada, tendo que ser toda a base afetiva dele.

"É pesado, preciso ser mãe, irmã, prima. E se eu não fizer por ele, ninguém faz", desabafa.

Momentos quase perdidos

Nem só de comidas e produtos de higiene são feitos os jumbos. A promotora de vendas Erika Mauro, de 22 anos, aproveita as visitas presenciais e as encomendas para mandar fotos do filho para o marido, que cumpre pena há dois anos — quando a jovem ainda estava grávida de dois meses.

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"Mando fotos de qualquer coisa que nosso filho faça: quando começou a engatinhar, primeira papinha, tudo", conta.

As imagens impressas são uma forma de mantê-lo dentro da família, mesmo que ainda não conheça o filho pessoalmente e esteja a nove horas de distância de casa. A família mora na capital paulista e a penitenciária fica localizada na cidade de Irapuru (SP).

"Tiro foto de todos os eventos em família também. Todas as datas importantes, com todos os detalhes", revela. Até mesmo fotos da casa do casal e dos novos móveis ou mudanças nos cômodos Erika envia para o companheiro. "Ele quer ficar por dentro de tudo", justifica.

Humilhação nas visitas

Erika conta orgulhosa que nunca perdeu um dia de visita, mas reconhece que há dificuldades para entrar no presídio. Segundo ela, o humor dos agentes penitenciários é o que dita se a revista será constrangedora ou não.

"A realidade é uma só: se forem com a sua cara, você passa tranquilo. Se não, você vai ter que ir pro 'quartinho', tirar a roupa, ir para o PS [pronto-socorro]. Já vi amigas minhas sendo humilhadas", relata.

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Jessica sente o mesmo desconforto. Ela conta que percebe o olhar torto das pessoas, que acham que as mulheres de presos são bandidas ou também estão envolvidas no crime.

Mas o preconceito não é o único incômodo da maquiadora. Jessica reclama da inconstância entre o que é estabelecido pelo Estado como regras de visitação e o que, de fato, ocorre em cada presídio. 

Segundo ela, durante a Páscoa, o Governo permitiu o envio de ovos de chocolate aos internos. No entanto, famílias relataram que não conseguiram entregar os presentes porque a administração dos presídios teria decidido arbitrariamente se deixaria ou não os produtos entrarem.

"É frustrante, porque quando estamos lá não temos como recorrer aos nossos direitos e ainda assim ficamos com medo de que nossos maridos sejam penalizados", desabafa.

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Reação da família e amigos 

Em meio à luta pelo amor, as cunhadas muitas vezes ainda têm de enfrentar a rejeição em seus próprios núcleos familiares. Stefany Pereira e Erika Mauro lidam sozinha com a realidade que vivem, sem a ajuda de suas respectivas famílias. 

Já Jessica Mendes, por outro lado, diz que sempre foi próxima aos pais, mas a relação ficou abalada depois que informou sobre o relacionamento com um detento. O pai da influenciadora aceitou a situação mais rápido do que a mãe. 

Atualmente, a sogra de Bruno, marido de Jessica, ajuda esporadicamente na montagem dos jumbos e vira-e-mexe ela prepara as refeições que a tiktoker leva nas visitas. Mas a ajuda é só para colocar a mão na massa mesmo. O investimento financeiro é todo de Jessica, que diz assumir para a si os custos com o jumbo. 

Pode expor?

Há quem pense que essa exposição pode atrapalhar, de alguma forma, o processo penal enfrentado pelos detentos. No entanto, em tese, os vídeos não deveriam prejudicá-los, segundo o defensor público Thiago de Luna Cury, coordenador auxiliar do Núcleo Especializado em Situação Carcerária da Defensoria Pública de São Paulo. 

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"Elas não fazem nada de ilegal, apenas denunciam algumas violações. Mas a gente sabe que podem haver retaliações", comenta.

Cury explica que as mulheres de presos têm direito de expor as ilegalidades às quais estão sendo submetidas, no entanto, é possível que seus maridos sejam responsabilizados pelos conteúdos publicados. 

"A gente sabe que pode acontecer, mesmo que a gente nunca vá conseguir uma declaração formal que a transferência ou a anotação de uma falta grave, alguma coisa imputada, tem relação com esses vídeos", observa.

O constrangimento ao qual são submetidas durante as revistas na entrada dos presídios é um dos assuntos que podem ser mal interpretados. As mulheres de presos relatam que muitas vezes precisam ficar nuas e de cócoras para provar que não levam itens proibidos para seus companheiros. Segundo o defensor público, a prática é ilegal. 

"As revistas devem necessariamente ser feitas só pelo scanner corporal", explica. "Atualmente, é vedada esse tipo de revista com nudez. Em caso de alguma suspeita levantada pela imagem do scanner, a pessoa deveria ser convidada a ir a um hospital e passar por um procedimento específico para avaliar o que é a imagem e a eventual elucidação. Ou estaria proibida de fazer a visita naquele momento", acrescenta.

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Segundo Cury, o assunto já foi tema de discussão na Defensoria Pública, mas ficou em suspenso devido à pandemia da Covid-19. O órgão defende que profissionais capacitados, como técnicos em radiologia, sejam contratados para manusear os escâneres. O argumento usado é que muitas vezes os funcionários, sem conhecer a imagem, interpretam de formas diversas o que estão vendo e colocam a visitante em uma situação vexatória.

Quanto à não padronização dos jumbos, questionada por Jéssica Mendes, Cury diz que a administração pode escolher o que entrará ou não em cada unidade prisional. Uma portaria regulamente, de modo geral, o que deve constar nos kits e sob quais condições, no entanto, há particularidades para cada presídio. 

"A gente sabe que tem uma certa discricionariedade dentro de cada uma das unidades prisionais", afirma o defensor. Ou seja: os diretores das unidades prisionais têm, sim, liberdade de ação administrativa, desde que não contrariem as normas gerais.

*Com a supervisão da editora-assistente Estela Marques

Fonte: Redação Terra
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