Fazia muitos anos que o velho pintor Fang vivia aprisionado no Palácio do Imperador do Reino de Chin. Ninguém pintava melhor do que ele as gotas borbulhantes das chuvas afiadas pelo vento do inverno ou as águas calmas dos lagos prateados pelo luar do outono.
Agora, envelhecido, não tinha mais vontade de pintar imagens. Preferia ocupar sua sala na biblioteca do palácio para criar cores, brincar com misturas, borrar caríssimas folhas do melhor papel de arroz com enormes manchas de azul celeste, amarelo ouro ou violeta flor.
Numa tarde de fim de primavera, sossegado com seus queridos pigmentos, foi surpreendido. O Capitão da Guarda, com alguma agressividade, explicou que seria escoltado, “O Imperador chama!”
Fang podia ter sido rico, mas não gostava de vender suas pinturas, preferia trocar por uma tigela de comida. Foi o que pensou ao reencontrar, sobre o Trono Imperial, aquele longo rio rolando ligeiro.
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As curvas de água que enchiam a solidão numa dança murmurante, lembrou, haviam facultado, há tanto tempo, um simples bule de chá. O comerciante da distante província do sul, por sua vez, ao levar o quadro para o Imperador, num câmbio menos modesto, conseguiu uma casa. O Imperador, assombrado, deu ordem imediata para prenderem o pintor, queria somente para si tais espantosas maravilhas.
Diante do trono, ao lado de uma de suas composições, material diverso de pintura – pincéis e tintas especiais que Fang notava terem sumido desde a véspera. O Capitão, conduzindo pelo braço, fez o pintor sentar no chão, assumindo atrás dele uma posição marcial.
“Faz dez anos hoje”, disse levantando-se o Imperador. “Dez anos que aqui chegando, meu convidado de honra, você pintou essa marinha, linda por sinal, e prometeu completar, inserindo a mim, seu soberano, altivo e exuberante, na proa do mais poderoso barco da minha frota”. “Sim, Mestre do Céu”, assentiu Fang, abaixando a cabeça com humildade, “nesses dez anos não fiz outra coisa senão buscar com afinco inspiração para concluir”.
“Já buscou? Agora vai encontrar”, interrompeu brusco o Imperador. “Imediatamente porque a velhice não te permite tantos dias mais. Quero o quadro. Empunha o pincel e cumpre a promessa senão morre aqui mesmo”. Completou a ordem pontuando com um gesto, atendido pelo Capitão que, energicamente, sacou a espada, segurando o cabo com as mãos coladas ao peito, a lâmina pairando acima da nuca do pintor.
Fang rapidamente se pôs a trabalhar. Em menos de um minuto havia acrescentado a nau capitânia de Chin. Em outro minuto, bem na frente do barco, surgia uma figura altiva, vestindo o mais branco dos mantos. Acabaria a pintura em segundos, restava representar apenas a face do Imperador, coroamento de toda a cena.
Escolheu com perspicácia o pincel. Aprumou a mão com exatidão. Determinado, traçou sem pausas o rosto sereno e magnânimo. Respirou fundo. Pegou novo pincel e embebeu no vermelho sangue vivo que reservava para finalizar a obra-prima.
O Imperador deu um passo e se inclinou levemente para ver o resultado. Era esplendoroso. Porém, o rosto não era o seu e sim o do sagaz pintor. Enfurecido, gritou. A espada desceu zumbindo no vazio, um golpe certeiro dado um instantinho depois da última pincelada, também ela golpe certeiro, mas salvador.
Imperador e Capitão se entreolharam. Depois se ajoelharam e, ambos com as mãos em pala sobre os olhos, ofuscados, puderam ainda acompanhar o barco se afastando para o mar alto, cortando as enormes ondas do imenso oceano turquesa. Na frente, vibrando ao sol radiante de um ardoroso verão, todo imaculado, acenava o pintor, sorrindo emoldurado por um lenço encarnado, flutuando magnífico.
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