No ano passado, a Colúmbia Britânica tornou-se a primeira província do Canadá a descriminalizar o uso de drogas pesadas como parte dos esforços para enfrentar uma crise mortal relacionada ao abuso de opioides. Mas a política enfrenta alguns retrocessos, o que deixa o futuro dela um tanto incerto.
Todas as segundas-feiras, o ex-prefeito de Vancouver, Kennedy Stewart, recebia um e-mail que listava todas as pessoas que haviam morrido na cidade por overdose de drogas na semana anterior.
Um dia, há cerca de três anos, essa lista incluía o nome de um parente — Susan Havelock, a irmã de seu cunhado.
"Ela morreu aqui na rua às duas da manhã", disse Stewart à BBC, em seu escritório no centro de Vancouver, apontando para fora da janela.
"Quando isso atinge sua família, você começa a ver o quão desesperadora é toda essa situação."
A América do Norte está no meio de uma grande crise de drogas. As overdoses fatais atingiram um pico que superou os 112 mil nos Estados Unidos pela primeira vez no ano passado.
No Canadá, em nenhum lugar esta questão é sentida de forma mais aguda do que na Colúmbia Britânica, onde a situação foi declarada pela primeira vez como uma emergência de saúde pública em 2016. No ano passado, a província registou um recorde de mais de 2,5 mil mortes por overdose.
Estima-se que cerca de 225 mil pessoas usem drogas ilegais na província canadense, e especialistas dizem que o fornecimento de drogas nas ruas — que trazem misturas de fentanil e outros produtos — coloca cada uma delas sob risco de morte.
Em janeiro de 2023, na tentativa de enfrentar a crise, a Colúmbia Britância tornou-se a primeira — e a única — província do Canadá a descriminalizar a posse de uma pequena quantidade de drogas pesadas, para "reduzir as barreiras e o estigma" que impedem aqueles com dependência grave de drogas em buscar ajuda e tratamento que salvam vidas.
O programa do governo, que funciona numa fase piloto até 2026, permite que adultos portem até 2,5 gramas de heroína, fentanil, cocaína ou metanfetamina sem serem presos, acusados ou verem as suas drogas apreendidas, exceto perto de escolas e aeroportos.
Porém, pouco mais de um ano após o início do projeto, o programa está sob pressão crescente de alguns residentes e opositores políticos, que o consideraram uma "experiência prejudicial" implementada sem salvaguardas para o restante público. Outros a descrevem como uma experiência que "falhou completamente" na redução das mortes por overdose de drogas.
Desde então, a Colúmbia Britânica apresentou um projeto de lei que expandiria os locais onde o uso de drogas é proibido para incluir não apenas escolas e aeroportos, mas também playgrounds e as proximidades de residências e empresas — uma medida que foi bloqueada, por ora, pela Suprema Corte da província devido às preocupações de que causaria "danos irreparáveis" às pessoas que usam drogas.
Agora, os defensores da descriminalização temem que a adesão pública a esta política diminua.
"É realmente lamentável", disse Fiona Wilson, subchefe do Departamento de Polícia de Vancouver, que também atua como presidente da Associação de Chefes de Polícia da província.
"No final das contas, estamos todos remando na mesma direção, pois não queremos criminalizar as pessoas em virtude do uso de drogas, uma vez que isso deveria ser encarado como uma questão de saúde."
Trata-se de um debate que afeta não apenas grandes cidades como Vancouver, mas também lugares como Port Coquitlam, um subúrbio de 60 mil habitantes, rico em trilhas para caminhada, parques públicos e residências pequenas, que têm apenas um morador.
Nesse local, houve uma briga durante uma festa de aniversário infantil que foi "a gota d'água" para o prefeito Brad West.
West disse à BBC que uma família avistou uma pessoa usando drogas perto da festa, realizada em um parque local. Confrontado, o indivíduo recusou-se a sair, segundo o relato do prefeito.
"Isso para mim é inaceitável", afirmou West, acrescentando que a polícia tinha o direito de intervir nessa situação.
Surgiram histórias em outros lugares sobre apetrechos para drogas encontrados em parques e sobre cães que ingeriram acidentalmente opioides encontrados no chão.
Em junho, Port Coquitlam aprovou por unanimidade um estatuto próprio para restringir o consumo público de drogas. Outras jurisdições seguiram o mesmo exemplo.
A descriminalização baseia-se no argumento de que a guerra contra as drogas falhou — e que prender pessoas com dependência grave poderia aumentar a probabilidade de overdose, forçando-as a encontrar alternativas que podem ser letais. Um registro criminal também pode impedir esses indivíduos de encontrar um emprego estável, reduzindo a possibilidade de recuperação.
"Fiquei preso durante nove meses por meio grama de cocaína", conta Guy Felicella, um defensor da redução de danos causados pelas drogas. Ele mora em Vancouver e se recuperou do vício em drogas após seis episódios de overdose em 2013.
A descriminalização, segundo ele, o teria ajudado a reduzir o medo de ser punido legalmente — um temor que o forçou a consumir drogas em locais privados, fora da vista de outras pessoas para quem poderia pedir ajuda caso tivesse uma overdose.
Portugal, país onde as drogas foram descriminalizadas em 2001, tem taxas de mortalidade relacionadas ao abuso de substâncias que são significativamente mais baixas do que o observado em outros países.
O sucesso lusitano inspirou esforços tanto na Colúmbia Britânica como no Estado americano de Oregon, que descriminalizou as drogas em 2020.
Porém, nas três localidades, a política enfrentou resistência. No Oregon, por exemplo, os legisladores reverteram completamente a iniciativa em março, depois de ela ter sido responsabilizada pelo aumento da desordem pública e do consumo de drogas.
Na Colúmbia Britânica, que tem um histórico de defesa da redução de danos, o esforço do governo para rever a política de descriminalização foi contestado em tribunal devido a preocupações de que levaria a um "aumento do risco de mortalidade por overdose".
Até agora, os tribunais foram contra esse argumento — e o resultado da decisão judicial suscitou reações mistas.
Para o prefeito West, os tribunais "estão fora de sintonia com a percepção do público".
"Este foco no 'dano irreparável' a um determinado grupo ignora o dano que ocorre aos outros quando se permite o uso público e desenfreado de drogas", argumenta ele.
Mas estes sentimentos foram contrariados pelos defensores da descriminalização, como o legista-chefe da província, que afirmou não haver provas para afirmar que o público em geral esteja em risco devido ao consumo público de drogas.
"Não é confortável ver pessoas usando drogas em público", admitiu Lisa Lapointe, em entrevista ao meio de comunicação local CityNews em janeiro.
"Mas quem está mais desconfortável? São aqueles de nós que voltam para nossas casas quentes ou são aqueles que vivem sem teto e precisam lidar com a situação da melhor maneira que conhecem?", questionou ela.
No bairro Downtown Eastside de Vancouver, que há muito enfrenta questões sociais como a pobreza e o uso de drogas, os defensores acusaram os políticos de semearem o "pânico moral".
"Fazer bodes expiatórios e difamar pessoas que usam drogas tem sido [historicamente] um ótimo meio de obtenção de votos", observa Garth Mullins, membro da Rede de Usuários de Drogas da Área de Vancouver.
Não há dados sobre o quanto o consumo público de drogas na Colúmbia Britânica aumentou após a descriminalização, mas houve uma queda de 76% nas apreensões de posse de drogas no primeiro ano de implementação da política.
Os dados mostram também que a utilização de serviços de verificação de drogas — onde as pessoas podem testar as substâncias para ver o que há na composição delas — e de locais de prevenção de overdoses — onde é possível consumir drogas sob supervisão — aumentou.
A taxa de mortalidade, no entanto, continuou em ascensão. Desde a descriminalização, as mortes notificadas por toxicidade relacionada aos opioides se elevaram em quase 5%.
Lapointe, legista-chefe da província, rejeitou qualquer ligação entre a descriminalização das drogas e esse aumento, dizendo que "o fentanil ilícito é responsável" pelas mortes.
Junto de outras autoridades de saúde pública, ela sustenta que a descriminalização é apenas uma ferramenta entre muitas para enfrentar a crise.
Stewart, prefeito de Vancouver de 2018 a 2022, foi uma força motriz por trás do esforço inicial para descriminalizar as drogas na Colúmbia Britânica.
Ele não conseguiu se reeleger ao perder as eleições por uma diferença 23 mil votos para Ken Sim, um candidato de centro-direita que fez campanha com a promessa de contratar mais policiais e limpar acampamentos de sem-teto no Downtown Eastside de Vancouver.
O agora prefeito Sim também apoia a pressão da província para restringir o consumo público de drogas — sinalizando uma mudança política na grande metrópole.
Numa declaração à BBC, Sim diz que a crise das drogas é "devastadora" e "profundamente pessoal para muitos moradores de Vancouver e da Colômbia Britânica".
Mas ele acredita que é necessário encontrar um "equilíbrio delicado" entre apoiar pessoas com dependência grave e "manter as áreas seguras para crianças e famílias".
Stewart acredita que os moradores de Vancouver mudaram nos últimos anos — com a disparada dos valores imobiliários e o aumento dos custos devido à inflação, ele argumenta que algumas pessoas se tornaram um tanto mais conservadoras.
Uma coisa que não mudou, observa ele, é a gravidade da crise das drogas.
"Esses e-mails com as mortes por overdose da semana passada ainda chegam à caixa de entrada do novo prefeito todas as segundas-feiras", destaca Stewart.