A vida de Ho Song, de 45 anos, virou do avesso pouco depois de chegar à Coreia do Sul no final de março.
O comerciante tinha ido ao país para visitar os pais na capital, Seul, e comprar equipamentos para seu restaurante no Brasil, onde vive desde os 12 anos.
Mas ele descobriu seis dias após desembarcar que havia sido infectado pelo novo coronavírus. As autoridades locais suspeitam que isso aconteceu durante a viagem.
A sua experiência ajuda a entender por que a Coreia do Sul se tornou uma referência no combate à pandemia de covid-19, mesmo sem recorrer à quarentena - a começar pelo momento em que Ho colocou os pés no país.
Monitoramento pelo celular
Todos os passageiros que chegam precisam instalar um programa no celular pelo qual informam todas as manhãs se têm algum sintoma.
O aplicativo rastreia a localização da pessoa, e quem deixa de responder recebe uma ligação do governo para confirmar se está tudo bem.
Ho avisou no quarto dia que havia algo errado. Ele pensou no começo que o cansaço e a diarreia podiam ser resultados da longa viagem de avião ou da diferença de fuso horário.
"Mas, no dia seguinte, vi que isso não era normal e liguei no número informado pelo aplicativo e agendei para fazer um exame no mesmo dia", conta Ho.
Testagem em massa
Diferentemente do Brasil, onde os exames feitos pelo governo são restritos a quem tem sintomas mais graves, qualquer um poder ser testado na Coreia do Sul em dos mais de 630 centros.
Até 4 de maio, o país havia realizado cerca de 633 mil testes, o que equivale a 12,3 testes a cada mil habitantes.
Em comparação, o Brasil havia feito até 20 de abril, segundo os dados mais recentes do Ministério da Saúde, 0,63 a cada mil habitantes.
O exame na Coreia do Sul leva cerca de dez minutos para ser feito, e o resultado sai em até 24 horas.
Ho recebeu uma ligação do posto de saúde na manhã seguinte ao dia em que fez o exame. Ele conta que daí em diante tudo aconteceu muito rápido.
Rastreamento de contatos
Na mesma chamada em que soube do resultado positivo, ele foi informado de que deveria estar pronto em meia hora para ser levado para o hospital.
Outra ambulância pegaria seus pais para serem testados. E uma terceira equipe descontaminaria a casa deles. "Foi tudo muito rápido, sincronizado e sistemático. Parecia uma cena de filme", diz Ho.
Enquanto Ho se preparava, ele recebia ligações de funcionários de diferentes órgãos do governo, que perguntavam onde o comerciante havia estado nos últimos dias.
O objetivo era levantar imagens de câmera de segurança de locais pelos quais tinha passado e identificar pessoas com quem ele tinha entrado em contato ao tentar comprar um termômetro em uma farmácia ou ao ir e voltar de ônibus do centro de exames.
Elas seriam rastreadas e também testadas para covid-19 para evitar que o vírus continuasse a se propagar.
Tratamento gratuito
Ho foi levado para um hospital público e avisado de que todo o tratamento seu gratuito. Ele ficou totalmente isolado em um quarto com TV a cabo, geladeira e banheiro. "Não podia nem abrir a janela para tomar um ar", lembra ele.
Os profissionais de saúde só entravam para levá-lo para fazer algum exame, sempre coberto por equipamentos de proteção individual.
Era ele próprio quem tinha que monitorar sua saúde enquanto estava internado. "Eles deixaram todos os equipamentos de medição no quarto e me ensinaram a usar sozinho, para não terem de ficar entrando no quarto", conta Ho.
O comerciante passou 19 dias internado e chegou a ser diagnosticado com uma pneumonia, que acabou não sendo muito grave.
Enquanto ele estava no hospital, fez seis exames para covid-19 e só foi liberado após ter dois testes negativos seguidos, em dias consecutivos, e nenhum sinal de pneumonia.
Alertas por SMS
Em um site público, cada paciente como Ho é identificado por um número, que informa a data de nascimento da pessoa, provável local de infecção, bairro onde mora e hospital para onde foi levado.
O governo alerta por mensagem de texto os moradores da região onde alguém infectado mora ou esteve.
Uma pessoa pode checar o percurso que o paciente fez e quando para saber se entrou em contato com alguém que estava infectado e, em caso positivo, fazer o teste.
Esse sistema de rastreamento, junto com os testes em massa, é apontado como um dos principais motivos pelos quais a Coreia do Sul conseguiu reduzir drasticamente o número de novo casos de coronavírus.
O país chegou a ser o segundo mais afetado do mundo em meados de março, mas hoje tem apenas o 38º maior total de casos, com 10,8 mil infecções confirmadas, e 254 mortes.
Controle x privacidade
Na segunda-feira, foram registrados apenas três novos casos na Coreia do Sul, todos importados. Foi o menor número em quase três meses.
Aos poucos, a vida começa a se normalizar no país. As partidas de beisebol voltaram, mas sem público. E as aulas serão retomadas gradualmente a partir da próxima semana.
Ho acredita que isso só foi possível porque a população aceitou abrir mão de um pouco de sua privacidade.
Ele afirma que a maioria dos sul-coreanos considera isso hoje necessário, após outra epidemia causada por um coronavírus, de Mers, em 2012, na qual a Coreia do Sul foi o país mais afetado fora do Oriente Médio.
"Naquela época, não houve esse tipo de controle, e o governo foi muito criticado porque não conseguiu rastrear as pessoas que foram contaminadas. Por isso, existe esse sistema hoje, e as pessoas não falam mais que é uma invasão de privacidade, porque entendem que sem isso não há como conter a disseminação do vírus."