Aborto legal: 'Se não tivesse feito, minha vida teria acabado aos 13 anos'

Ana foi estuprada e abortou há oito anos; em relato exclusivo ao Terra Você, ela conta como o procedimento legal contribuiu em sua superação

9 set 2024 - 05h00
(atualizado às 10h02)

Na semana passada, a segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça da Bahia tomou uma decisão histórica. O órgão reverteu uma decisão anterior, por unanimidade, e autorizou a interrupção da gravidez de uma mulher cujo feto, com graves más-formações, não tinha chances de sobreviver após o nascimento. O caso foi noticiado na última segunda-feira (2) pelo jornal O Globo.

A decisão ocorrida na semana passada na Bahia precisou passar pelos tribunais já que a juíza que negou o primeiro pedido de aborto alegou que não havia “identificação de risco concreto à vida da gestante, se levada a gestação a termo", e --mais uma vez-- levantou a discussão sobre o aborto legal no país.

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A brasileira Ana Gomes foi vítima de estupro aos 13 anos e fez um aborto legal
A brasileira Ana Gomes foi vítima de estupro aos 13 anos e fez um aborto legal
Foto: Pexels/Pixabay

No Brasil, o aborto é previsto em lei apenas em três casos: anencefalia do feto, quando há risco à vida da gestante ou quando a gravidez é decorrente de estupro. Esse último é o caso de Ana Gomes, do Rio de Janeiro, que contou sua história em relato exclusivo ao Terra Você.

Há 8 anos a jovem foi sexualmente violentada por um amigo da família e, assim como a mulher que ganhou o direito na Bahia na semana passada, passou pelo processo de aborto legal. Hoje, aos 21 anos, ela conta o momento mais difícil da sua história, que ocorreu em plena transição da infância para a adolescência.

Abusador era "amigo" da família

Nascida e criada na zona norte do Rio de Janeiro (RJ), Ana teve uma infância relativamente tranquila. Seus pais trabalhavam muito e ela se acostumou desde criança a ficar sozinha e cuidar da casa.

O abusador era amigo da sua família. Um homem de quase 60 anos de idade que foi criado com sua mãe e tios, morava em frente a casa onde ela vivia e realizava serviços de transporte escolar para crianças, levando Ana e seu irmão para o colégio.

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O estupro aconteceu em 2017, quando Ana ainda não tinha completado 14 anos. Desde o crime, ela passou a viver com medo até de sair da sua casa e recebeu inúmeras ameaças do abusador.

“Eu entrei em uma depressão muito profunda depois do crime, tinha medo de sair, até de ir no portão, porque se ele estivesse na rua, rapidamente entrava no carro e me perseguia pela rua. Desenvolvi ataques de pânico, que estavam se tornando mais frequentes a cada dia que passava, levando tudo sozinha”, lembra Ana.

Cerca de um mês e meio após o crime, ela decidiu contar aos seus pais o horror que havia passado e estava passando. Enquanto o abusador tomava sol na varanda de casa, os pais de Ana acionaram uma viatura da Polícia Militar. Ele tentou fugir, mas foi alcançado pelos policiais e levado junto a família da jovem para a delegacia. Onde Ana viveu mais momentos de terror.

Ela conta que a delegada de plantão insinuava que ela estava mentindo, já que na outra sala, o abusador dizia que pagou R$ 5 para ter relações com Ana e ela aceitou por dinheiro. 

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“Eles diziam pra mim: ‘por que você não fez nada? Você tem 13 anos, novinha, ele tem quase 60, um senhor’. No meu Boletim de Ocorrência, inclusive, eu contei que fui ameaçada por uma faca durante todo o crime. Mas pra eles, era um absurdo eu não ter reagido. Fui tratada como se fosse a verdadeira criminosa”, diz. 

Mas o sofrimento de Ana não terminou ao deixar a delegacia. O abusador foi liberado e a jovem foi ao Instituto Médico Legal para realizar um exame de corpo delito. 

Depois, Ana foi encaminhada ao Hospital Souza Aguiar para tomar as medicações necessárias, fazer os testes de Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) e o exame Beta HCG - coleta de sangue capaz de apontar uma gestação.

“Quando saíram o resultado dos exames, todos deram negativos, menos o Beta. Foi um choque total para todos. A enfermeira foi a pessoa mais empática, a todo tempo, desde que cheguei lá, ela estava dando todo apoio para mim”, recorda. 

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Ana foi transferida para a maternidade Maria Amélia, que fica atrás do hospital. Lá, ela fez um ultrassom vaginal, que confirmou a gestação de 6 semanas. 

“Foi extremamente marcante e deprimente ouvir o coração [do feto], eu só queria aquilo fora de mim, não aguentava nem sequer olhar na tela, porque eu não queria sentir um pingo de pena daquilo. Aquele coraçãozinho nunca me ganhou, eu não queria ele, eu não queria estar naquela maca daquele jeito, eu só sentia tristeza e mágoa”.

Aborto aprovado em menos de 10 dias

Em menos de 10 dias após a denuncia, o aborto legal foi aprovado. No dia seguinte, Ana foi internada junto a várias gestantes que estavam prontas para ter o que chamavam de “o dia mais importante de suas vidas”. O que a fez passar por mais uma prova de sobrevivência. 

“Uma das minhas colegas de quarto sabia que eu ia fazer um aborto e durante os dois dias que fiquei com ela, ela ficou 24h falando que eu iria me arrepender, que apesar de como foi concebido, ele era é um milagre. Aquelas palavras eram tão pesadas para uma criança que foi uma vítima e já estava sofrendo demais. Eu mirei toda a minha raiva e tristeza pro feto, não queria me sentir uma assassina, um monstro”, detalha Ana. 

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O processo aconteceu rapidamente e Ana foi liberada no dia seguinte ao realizar o aborto legal. Ela conta que a equipe médica foi receptiva e todos tiveram cuidado e carinho com ela e sua família. 

O abusador se mudou da vizinhança após o crime e retornou a casa onde morava dois anos depois. Ele passou a observar Ana nos horários em que ela saia e voltava para casa. Os transtornos mentais se intensificaram e a jovem chegou a tentar tirar a própria vida. 

“Ninguém fazia nada, todo mundo sabia o que ele tinha feito comigo, mas para todo mundo, mesmo com 13 anos, eu havia dado consentimento a ele. Foram anos terríveis. Os anos de 2020 e 2021 me salvaram pela pandemia, eu fiquei 2 anos trancada em casa”, diz a jovem. 

Em 2022, Ana foi morar sozinha e desde então não teve notícias sobre o homem. Há alguns meses, viu em uma publicação que ele havia morrido e finalmente sentiu que poderia seguir sua vida com um pouco mais de paz. 

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“Foi o melhor dia da minha vida. Eu finalmente pude respirar, ir na casa dos meus pais visitar eles, minhas crises de pânico diminuíram. Só de saber que eu poderia andar no mundo sem ele aqui, me trouxe muito conforto e paz”. 

Criminoso acumulava denúncias

Tempos depois, Ana soube que o homem acumulava denúncias de ameaça, tentativa de assassinato, injúria racial, assédio e até medida protetiva das filhas. Ela nunca foi chamada na delegacia para dar continuidade ao processo.

Seis anos depois do crime, o tempo é o maior aliado de Ana na recuperação do trauma. Com tristeza e mágoa, ela lutou contra a vontade de não viver e segue a cada dia excluindo mais um pedaço desse momento da sua vida. 

“Eu não tive um final feliz, na verdade nenhuma de nós temos. Não tive justiça, tive uma reparação, que foi o aborto. O que aconteceu comigo poderia ter sido evitado se a justiça não tivesse falhado desde o início. Nunca me arrependi de ter denunciado, eu não teria nenhuma estabilidade mental para cuidar do fruto do crime que destruiu e tomou boa parte da minha vida. Fiz, e nunca me arrependi”, diz. 

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Hoje, Ana consegue ter lazer, dorme sem ajuda de remédios, e é casada com um companheiro que a ajudou com seus traumas de relacionamento e sexualidade. 

“Toda vez que penso como seria minha vida se não tivesse feito, só teriam duas opções: me matar e/ou matar o fruto. Minha vida teria acabado aos 13.”

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Fonte: Redação Terra Você
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