As duas principais formas de demência - a doença de Alzheimer e a demência vascular - não atingem brancos e negros no Brasil de maneira uniforme. Em ambos os grupos, o Alzheimer é a enfermidade que com mais frequência causa declínio cognitivo com o avanço da idade. Ele, no entanto, afeta uma proporção maior de brancos do que de negros. Já a demência vascular, o segundo tipo mais comum, atinge uma porcentagem maior de negros do que de brancos, segundo estudo liderado pela geriatra Claudia Suemoto, da Universidade de São Paulo (USP).
No trabalho, publicado em julho na revista JAMA Open Network, Claudia e colaboradores analisaram amostras de 16 áreas do cérebro e de outras estruturas do encéfalo de 1.815 pessoas com média de idade de 74 anos que morreram na cidade de São Paulo e doaram o material para o Biobanco para Estudos do Envelhecimento da USP, um dos maiores acervos de cérebro do mundo. Dois terços dos doadores eram brancos e um terço negro, grupo que incluía pretos e pardos.
"Não sabemos se fatores genéticos podem contribuir para explicar a diferença nas taxas de prevalência dessas formas de demência, uma vez que não fizemos testes genéticos", conta a geriatra da USP. "O mais plausível é que negros tenham mais demência vascular porque têm menos acesso a serviços de saúde e controle inadequado de fatores de risco cardiovascular", afirma. Os negros eram mais jovens e com menos anos de educação formal que os brancos. Além disso, uma proporção maior de negros fumava, consumia níveis elevados de bebidas alcoólicas e tinha hipertensão.
O que Claudia e colaboradores viram agora em uma amostra da população brasileira só havia sido observado antes nos Estados Unidos. Em um estudo publicado em 1989 no Journal of the National Medical Association, a patologista Suzanne de La Monte, da Escola Médica Harvard, e os colegas Grover Hutchins (1933-2010) e G. William Moore, da Universidade Johns Hopkins, realizaram a autopsia em 144 pessoas com demência e verificaram que a doença de Alzheimer era 2,6 vezes mais comum em brancos do que em negros. Com a demência vascular, ocorria o oposto.
Mais recentemente, a epidemiologista Teresa Filshtein, da Universidade da Califórnia (UC) em São Francisco, e a patologista Brittany Dugger, da UC em Davis, avaliaram 435 casos de demência em três grupos étnicos: negros, hispânicos e brancos não hispânicos. De acordo com os resultados, publicados em 2019 no Journal of Alzheimer's Disease, a frequência de demência vascular era mais elevada em negros (40% tinham o problema) do que em brancos (28%) e ainda mais alta entre os hispânicos (54%) - mais estudos são necessários para explicar essa elevada ocorrência de demência vascular no grupo hispânico.
Além de corroborar dados da população norte-americana, o estudo brasileiro é importante por pelo menos três motivos. O primeiro é que, com o aumento da população e da expectativa de vida global, se espera uma elevação importante dos casos de demência, principalmente nos países de média e baixa renda, onde a prevenção e o acesso a diagnóstico e tratamento são mais limitados.
Uma projeção publicada em 2022 na The Lancet Public Health calcula que o total de pessoas com demência no mundo deve aumentar 2,6 vezes até 2050, passando dos atuais 57 milhões para 153 milhões.
No Brasil, estimativas do grupo da psiquiatra e epidemiologista Cleusa Ferri, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), publicadas em 2023 no The Journals of Gerontology - Series A, sugerem um aumento de casos proporcionalmente maior, de 3,3 vezes na próxima década e meia, subindo de 1,8 milhão para 5,5 milhões.
Em 2022, Caramelli, Claudia, Cleusa, Livingston e Nitrini recalcularam para a realidade brasileira o impacto do controle dos 12 fatores de risco apresentados nas primeiras edições do relatório da The Lancet. Se fosse possível eliminar esses fatores, haveria uma redução de 48,2% nos casos de demência. A diminuição seria de até 54% nas regiões mais pobres do país.
Nas regiões Sul e Sudeste do Brasil, por exemplo, a baixa escolaridade está associada a 7,7% dos casos, enquanto nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, 9,6%. Embora a fração evitável seja quase a mesma para brancos e negros (respectivamente, 47,9% e 46,9% dos casos), o peso de cada fator é diferente nessas duas populações, de acordo com os dados, que integram o relatório do Ministério da Saúde e foram publicados em novembro de 2022 na Alzheimer's & Dementia.
Composto por dois volumes, o documento do ministério traz informações sobre estigmas associados à demência, além da sobrecarga financeira e psicológica enfrentada pelos cuidadores. Também apresenta estimativas de subdiagnóstico, que é de 50% na Europa, 60% na América do Norte e de 80% a 90% no Brasil. "Aqui, além de haver subdiagnóstico, os diagnósticos são frequentemente realizados muito tarde", conta Cleusa. "Conhecer a realidade é essencial para pensar em estratégias de ação."
Esses e outros dados do relatório deverão orientar a implementação da Política Nacional de Cuidado Integral às Pessoas com Doença de Alzheimer e Outras Demências, sancionada em junho pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Criada em conformidade com o Plano de Ação Global para as Demências 2017-2025 da Organização Mundial da Saúde (OMS), a política estabelece 10 diretrizes, que abrangem temas como fortalecimento da atenção primária em saúde e capacitação dos profissionais desses serviços, criação de uma linha de cuidado para demências nos programas e serviços de saúde já existentes, promoção de hábitos de vida saudáveis voltados à prevenção do problema e garantia do uso de tecnologias para o diagnóstico, tratamento e monitoramento dos pacientes.
"Vários motivos têm feito o tema da demência receber mais atenção nos últimos anos. Agora, é preciso criar estratégias que considerem as particularidades das regiões e das diferentes populações do país, usando os recursos que já temos e incorporando novos, para realizar a prevenção, o diagnóstico e o cuidado tanto das pessoas com demência como de seus cuidadores", destaca Claudia.
A reportagem acima foi publicada com o título "Nuances da demência" na edição impressa nº 346, de dezembro de 2024.
Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.