A frase é fortíssima, mas necessária de ser compartilhada: “Eu matei os neurônios do meu filho”, título do TEDx da jornalista Larissa Carvalho em 2020. Mãe de João, do primeiro casamento, não era marinheira de primeira viagem quando planejou o segundo filho, Théo, hoje com 9 anos. O que ela não sabia na época (e muitas famílias não sabem) é que poderia ter feito o teste do pezinho ampliado em laboratórios particulares para detectar bem mais do que 6 doenças.
Théo recebeu o diagnóstico tardio de uma doença genética rara, a acidúria glutárica tipo 1. O organismo de quem tem esta doença metabólica não consegue absorver as proteínas ingeridas, como as do leite, causando sequelas irreversíveis, como desenvolvimento motor e cegueira. Situação que pode ser evitada após as primeiras horas de vida com o exame do pezinho ampliado.
"Ninguém nunca tinha me falado sobre teste expandido na rede particular. É preciso mudar a cultura médica, falar dentro dos hospitais e consultórios, fazer a informação circular. Se eu soubesse, a vida do meu filho estaria completamente diferente."
Para evitar que a história se repita com mais Théos, Larissa abriu o coração e roteirizou o documentário “Uma Gota de Esperança” (Globoplay), narrando sua trajetória e trazendo histórias de outras famílias. Em seu mês de estreia, maio de 2021, foi o filme documental mais assistido da plataforma de streaming da Globo.
"O recado que quero deixar é: enquanto o teste do pezinho não estiver expandido, as famílias que puderem façam na rede particular. Tempo é cérebro, como digo no documentário. Se perder tempo, perde cérebro."
É um investimento alto que talvez não queiram ou não possam fazer, mas vale muito mais do que uma festa de chá-revelação ou de mêsversário. É priorizar o que realmente importa.
TERRA: O QUE A MUDOU NA SUA VIDA APÓS LANÇAR O DOCUMENTÁRIO?
Larissa: Meu objetivo era alertar a todos que esperam um bebê sobre o teste do pezinho, que no SUS ainda é incompleto. Muitas famílias passaram a me procurar para contar de seus filhos, que poderiam ter uma doença igual ou parecida com a do Théo. Meu coração se sentiu reconfortado diante da tragédia que eu vivia, pois comecei a entender o sentido daquele tudo: eu poderia devolver às pessoas parte da minha história como um meio de solução para elas.
A minha história foi de dor na minha casa e na minha familia, mas ao mesmo tempo salvou muitas crianças. O documentário mostrou para outras famílias caminhos que ninguém tinha me mostrado. Bati de consultório em consultório por um ano e 10 meses, desesperadamente.
Nas madrugadas, eu ia para a janela e ficava barganhando com Deus. Me dê só mais um pedido na vida, eu quero uma resposta. Era o que eu pedia todos os dias olhando para cima. Só queria o diagnóstico. Já sabia que meu filho não iria andar, sentar ou falar. Estava conformada com o filho que eu tinha, com aquele destino, mas não me conformava em não ter uma resposta.
Evitar outras Larissas nas janelas nas madrugadas me fez ver um pouco de sentido em tudo que a vida me impôs.
VOCÊ FALOU EM SE CONFORMAR COM O DESTINO: COMO SE DÁ ESSA ACEITAÇÃO?
Demora tempo no coração de uma mãe, de um pai, entender que o filho do sonho não é o que chegou pra gente. Entender novos sonhos a serem vividos com aquela criança diferente da desejada. Hoje tem uma frase que me incomoda muito quando vejo uma mãe esperando um bebê. É comum todo mundo desejar: “que venha com saúde”. E se não vier saudável? É para voltar pra trás? A gente tem que repensar, pois é muito menino que vem com deficiência. Eles não merecem vir no amor?
As coisas demoraram para se ajeitarem no meu coração, nos meus desejos... Sonhei com meus filhos desde adolescente, já tinha nome escolhido para o João e o Théo. E nos meus sonhos de menina, meus filhos iriam correr, jogar bola, andar a cavalo, subir na cerca. Meu filho mais velho faz tudo isso, o mais novo não. Ele é um espectador de tudo isso, da cadeira de rodas ele observa tudo. E é bem feliz também desta posição, é um menino muito feliz.
É uma mudança grande em relação ao que sociedade impõe como modelo de filho feliz e que traz felicidade. É uma mudança no sonho que a gente alimenta. Demora absorver a diferença e ver beleza nela. Não sei dizer se foram dias ou meses, até a conclusão de que meu filho seria uma criança atípica, eu já era tão apaixonada e envolvida.
Amo esse menino tão profundamente, sei cada canto da pele dele de tanto que cheiro e beijo, tento adivinhar onde ele sente cócegas ou vontade de se coçar porque a mão não obedece, cada cacho do cabelo dele. Sou segura em dizer que esse menino tinha que ser meu, exatamente do jeito que ele é. Me traz muita alegria em cada olhar e gargalhada. Todos os momentos com ele são bons demais. Absorvi plenamente o luto do filho sonhado. Não se supera o luto, a gente convive com isso e o domina.
IMAGINAVA VIRAR REFERÊNCIA SOBRE O ASSUNTO? QUAL HISTÓRIA MAIS LHE MARCOU?
Me envolvi tanto na luta do teste do pezinho com o Instituto Vidas Raras que já estava sendo uma vida diferente do que tinha até o momento. Meu telefone não parava, as redes sociais abarrotadas de mensagens de famílias, reconhecem o Théo em qualquer lugar. O documentário foi filmado com tanta delicadeza que aproximou a gente, encorajou muitas as pessoas a nos pararem na rua para pedir uma foto ou pedir socorro, indicações de terapias, tudo isso após “Uma Gota de Esperança”.
Antes disso, participei do programa “Bem-Estar” (em 2019) e a central de atendimento da Globo recebeu 18 chamados de pessoas querendo falar comigo. Retornei todas as ligações: eram famílias de crianças com deficiência sem diagnóstico ou com diagnóstico em que não confiavam. Indiquei todos os exames que Théo fez (genéticos, metabólicos etc). Das 18, 5 descobriram doenças parecidas ou iguais às dele, e em 7 doenças de outras naturezas. No final das contas, 12 crianças de 18 foram salvas após o programa.
Também me marcou bastante a mensagem de uma mãe, agradecendo por devolver o sopro de vida. Ela escreveu: “Tinha certeza de que minha vida seria só cuidar e não ter mais felicidade; hoje te vendo me inspiro, consigo momentos para mim.” Confessou que tinha pensado em tirar a própria vida e agora está fortalecida, até vivendo um novo amor.
Outro encontro memorável foi após palestrar em um congresso de nefrologia. Um médico pediu para tirar uma foto comigo para deixar no consultório: “Todas as vezes que uma mãe entrar na porta me pedindo para investigar, mesmo que eu tenha certeza de um diagnóstico, jamais vou deixar de investigar a fundo. Obrigado por reacender em mim um doutor investigativo que estava adormecido.” Fiquei emocionada!
Nas palestras que faço, parte do cachê é direcionado para comprar a fórmula especial de crianças com a doença do Théo, para mães que ainda não conseguiram na Justiça. Uma lata custa R$ 2.400 por mês e dura 15 dias. A cada família que ajudo tenho a certeza de que tem um sentido nessa história toda.
VOCÊ MENCIONOU A MÃE ATÍPICA QUE ENCONTROU UM NOVO AMOR. QUER COMENTAR A SUA HISTÓRIA PESSOAL TAMBÉM?
É fundamental a gente falar disso, por mais que seja incômodo. A gente precisa mostrar para a sociedade o quanto as mães enfrentam solidão na criação de filhos com deficiência.
Segundo uma pesquisa (Instituto Baresi, 2012), quase 8 em cada 10 pais abandonam as mães de crianças com deficiência e doenças raras antes dos filhos completarem 5 anos. A chegada de um filho para um casal nunca é fácil; por mais que tenha amor é um desafio, desestabiliza por vários motivos. Não tenho constrangimento em fazer essa leitura. Criança é uma benção, é alegria, é desejo realizado para muitas familias. Mas também é desafio. E quando a criança chega com deficiência vem junto o luto para os pais.
Além do cansaço, do orçamento não previsto, é um investimento muito maior que precisa ser feito. Às vezes existe uma culpabilização, um jogo de procura por responsabilizar o outro. Por que isso aconteceu? Foi a sua gravidez? Foi fruto de alguma doença que alguém levou para o casamento? Foi erro do médico que um dos cônjuges escolheu?
Se o casal não é muito unido e decidido a enfrentar, é difícil mesmo sobreviver. Requer mais do que amor, requer a decisão em viver aquilo junto. No meu caso, meu casamento já iria acabar de qualquer forma antes disso. O pai do Théo convive, tem tarefas e responsabilidades, mas é uma realidade que precisa ser falada. Recomendo que assistam ao TEDx “A solidão das mães especiais”, da Lau Patrón, sobre a falta de de rede de apoio. É um caso de saúde pública.
*Este é um trecho da segunda de uma série de 5 reportagens especiais para o Terra, conteúdo produzido com apoio da bolsa de jornalismo da US National Press Foundation: Covering Rare Diseases. Leia também a primeira delas: "Doenças raras na infância: a odisseia das famílias em busca de um diagnóstico"