BRASÍLIA - Os dois milhões de comprimidos de hidroxicloroquina doados ao Brasil pelos Estados Unidos deverão ser usados, em parte, como forma de prevenir que profissionais da saúde sejam contaminados com a covid-19, segundo consta na declaração conjunta que formalizou o acordo entre os dois países. A indicação profilática da droga, no entanto, contraria recomendações médicas e do próprio Ministério da Saúde.
"A HCQ (hidroxicloroquina) será usada como profilático para ajudar a defender enfermeiros, médicos e profissionais de saúde do Brasil contra o vírus. Ela também será utilizada no tratamento de brasileiros infectados", anunciaram os países na semana passada, em nota divulgada pelo Itamaraty.
Não há, até hoje, estudos que comprovem a eficácia da cloroquina e da hidroxicloroquina no combate à covid-19. Mesmo após ampliar a orientação sobre o uso da droga, o Ministério da Saúde recomenda que o medicamento seja prescrito a pacientes a partir dos primeiros sintomas, não de forma profilática.
O médico que prescrever a droga fora de regras do Conselho Federal de Medicina (CFM) também pode cometer infração ética. Ao Estadão o presidente do Conselho, Mauro Luiz de Britto Ribeiro, diz que o parecer da entidade sobre o uso da droga não livra de punição quem a prescrever para o uso preventivo.
Cooperação Brasil-EUA no combate ao Covid-19 continua avançando. Chegaram hoje ao Brasil 2 milhões de doses de hidroxicloroquina doadas pelos EUA. Colaboraremos com os EUA na pesquisa clínica da hidroxicloroquina e no desenvolvimento de uma vacina.
— Ernesto Araújo (@ernestofaraujo) May 31, 2020
A doação dos EUA ao Brasil foi comemorada pelo chanceler Ernesto Araújo nas redes sociais. "Cooperação Brasil-EUA no combate à covid-19 continua avançando. Chegaram hoje ao Brasil 2 milhões de doses de hidroxicloroquina doadas pelos EUA. Colaboraremos com os EUA na pesquisa clínica da hidroxicloroquina e no desenvolvimento de uma vacina", escreveu em 31 de maio.
O acordo, no entanto, pegou de surpresa técnicos do Ministério da Saúde e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A droga está parada no Aeroporto de Internacional de São Paulo, em Guarulhos, há mais de uma semana, aguardando a agência aprovar a licença de importação. O ministério também não definiu para quais locais enviará o produto. O Itamaraty afirmou que caberá à Saúde decidir sobre a doação recebida. "A Agência Brasileira de Cooperação e o Ministério da Saúde mantiveram entendimentos nas negociações para o recebimento da doação", disse.
No dia seguinte à divulgação da nota conjunta entre os dois governos, o ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello, recebeu o embaixador dos EUA, Todd Chapman. O Ministério da Saúde não confirmou o assunto da reunião.
Para o médico, advogado sanitarista e pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) Daniel Dourado, a distribuição da cloroquina para uso específico contra a covid-19 é ilegal, pois não há protocolo oficial do Ministério da Saúde de tratamento. "Se o ministério entregar o medicamento e cada secretaria usar como desejar, está ok. Mas se disser que é para covid-19, vai cometer ilegalidade, pois vai assumir protocolo de medicamento sem registro."
Médicos podem receitar a cloroquina contra a covid-19 de forma "off label", ou seja, fora da indicação da bula. Segundo orientação do CFM, o paciente deve declarar estar ciente de que a droga tem efeitos colaterais e não apresenta eficácia comprovada contra o vírus.
Aval da Anvisa
Mesmo doados, os comprimidos dependem de aval da Anvisa para serem liberados. Técnicos da agência e do ministério afirmam, reservadamente, que sequer sabiam quem fabrica o produto, e ainda aguardam apresentação de documentos para liberar o medicamento.
O Itamaraty disse ao Estadão que a Sandoz produz a cloroquina doada pelos EUA ao Brasil. O produto deste laboratório não tem registro na Anvisa, o que exigirá análise de forma "excepcional" da agência.
A Anvisa costuma ser rigorosa para liberar entrada e distribuição de remédios. A agência e o Ministério da Saúde já tiveram conflitos por divergirem sobre a liberação de importações. Como mostrou o Estadão, a Anvisa foi pressionada em março a liberar produto vindo da China, mesmo sem registro no País para comercialização.