De veteranos de guerra a adultos que sofreram abusos por parentes na infância, o psiquiatra Bessel van der Kolk acompanha há mais de 50 anos pessoas traumatizadas.
Para muitos desses casos, Kolk diverge da escolha por tratamentos comuns, argumentando que remédios e psicoterapia verbal não são as melhores opções.
O médico, um holandês radicado nos Estados Unidos, defende a busca por intervenções ligadas ao corpo, à autorregulação e à sociabilidade.
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Suas pesquisas envolvem tratamentos pouco ortodoxos, como ioga, massagem e EMDR (sigla em inglês para Dessensibilização e Reprocessamento por meio dos Movimentos Oculares).
Kolk também é um entusiasta da terapia assistida por psicodélicos, como cetamina e MDMA (ecstasy), para pacientes com transtorno do estresse pós-traumático (TEPT).
Ele foi um dos autores de uma conhecida pesquisa sobre o uso de MDMA no tratamento do transtorno, publicada narevista científica Nature Medicine.
O estudo foi eleito pela revista Science como um dos 10 avanços científicos mais significativos do ano de 2021.
Em 2024, liderou outra pesquisa, publicada na PLOS One, que comparou a droga com placebo e mostrou melhora em diversos parâmetros.
"Nosso estudo com MDMA foi o mais interessante da minha vida, porque vimos resultados mais expressivos do que com qualquer outra coisa", afirmou o especialista, em entrevista à BBC News Brasil.
Entretanto, Kolk destaca que esses benefícios devem emergir em ambientes controlados, com acompanhamento terapêutico.
"A preocupação que tenho é que, vivendo em uma sociedade capitalista, imagino que as pessoas começarão a usar essas drogas descuidadamente e a distribuí-las sem o ambiente terapêutico e o auxílio terapêutico que é necessário", aponta.
O psiquiatra está terminando um novo livro com o título Come to Your Senses (algo como "Se volte para os seus sentidos"). Segundo ele, a obra será sobre "o corpo, a imaginação e os psicodélicos".
Há dez anos, Kolk lançava nos EUA um livro que se tornou um best-seller, The body keeps the score. A obra, que ficou 300 semanas na lista das mais vendidas do jornal The New York Times, foi lançada no Brasil em 2020 com o título O corpo guarda as marcas (Sextante).
O psiquiatra também é cofundador da organização sem fins lucrativos Trauma Research Foundation, dedicada ao estudo do trauma, e participou de pesquisas pioneiras: integrou a primeira equipe de neuroimagem a investigar como o trauma altera os processos cerebrais e participou dos primeiros estudos com antidepressivos para tratar do TEPT.
Em sua experiência como pesquisador e clínico, Kolk percebeu um padrão: independentemente do gatilho que gerasse o trauma, seu impacto não era apenas psicológico, mas também fisiológico, podendo influenciar no desenvolvimento cerebral, na capacidade de autorregulação e de sintonia do paciente com si mesmo e com os demais.
É por isso que ele propõe abordagens que trabalham o corpo e as interações humanas, as quais ajudariam essas pessoas a se libertar do estado permanente de hipervigilância e a voltar a sentir confiança nas relações pessoais.
Cerca de 70% da população mundial vai viver alguma situação potencialmente traumática em algum momento da vida, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Uma minoria desses casos gera um transtorno — mas, para Kolk, o trauma deve ser visto como um problema de saúde pública, especialmente quando se inclui nesse rol as vítimas de abuso sexual, abuso infantil e violência doméstica.
"O trauma infantil é o maior problema que temos. Ele está presente em todos os lugares do mundo e tem consequências tremendas a longo prazo", diz o psiquiatra.
Confira os principais trechos da entrevista.
BBC News Brasil - Você costuma ressaltar que o impacto do trauma vai muito além do psicológico. O que uma experiência traumática pode fazer ao nosso cérebro e ao nosso corpo?
Bessel van der Kolk - Coisas assustadoras acontecem com a gente o tempo todo, e a gente consegue lidar com elas. Mas o trauma te faz ficar estagnado: sua mente, seu corpo, sua fisiologia ficam presos e você continua repetindo aquela coisa reiteradamente.
Isso não é uma resposta mental, é mais uma resposta psicofisiológica de um corpo que não consegue lidar com a situação e fica preso ali. Você continua com raiva, com medo, continua respondendo a pequenas coisas como se fossem uma grande catástrofe. Isso se torna algo central, que organiza sua vida.
Você se sente tão fora de controle que começa a tentar recuperar esse controle e se acalmar bebendo ou usando drogas, ou vendo TV 24 horas por dia ou fazendo qualquer coisa que vá ajudar seu corpo a se recuperar de alguma maneira.
BBC News Brasil - O que faz com que uma vivência ruim se torne um trauma?
van der Kolk - O ser humano é resiliente. A vida é dura, coisas desagradáveis acontecem com as pessoas o tempo todo. Se alguém começa a gritar com você, ou você grita de volta ou você sai de lá. No dia seguinte, você continua sua vida. Mas se você está em uma família onde uma pessoa faz isso o tempo todo com você e você não consegue escapar, isso pode se tornar um trauma.
Na verdade, uma parte muito importante para algo se tornar somático tem a ver com o fato de você não conseguir se afastar daquela situação. Você não consegue se afastar de pais violentos. Se você está no Exército, não consegue fugir das situações violentas que estão acontecendo. A capacidade de se mover e fazer algo é o que distingue um evento comum de um trauma. Esse "algo" pode ser escapar ou lutar, dar um soco, tomar uma atitude.
BBC News Brasil - Deveríamos levar o trauma infantil mais a sério?
van der Kolk - O trauma infantil é o maior problema que temos. Ele está presente em todos os lugares do mundo e tem consequências tremendas a longo prazo. Se eu trabalho para um chefe abusivo, eu posso simplesmente dizer: vou cair fora daqui, vou perder algum dinheiro, mas tenho uma escolha. Mas se você é uma criança, você não tem escolhas.
BBC News Brasil - Quais são as consequências de passar por experiências traumáticas na infância?
van der Kolk - Isso afeta a pessoa em vários níveis. Se você é abusado sexualmente, por exemplo, pode sentir que é culpa sua e que sua sexualidade é uma coisa terrível. Pode ter medo do sexo, sentir nojo de você mesmo. Ou pode sentir que é a única coisa para a qual serve, que a única maneira de trilhar seu caminho no mundo é por meio de ações sexuais. Então, realmente, é um grande impacto na identidade.
Mas também há um impacto na biologia. Isso significa que seus hormônios do estresse serão muito ativados com coisas muito pequenas.
Então, a vida se torna uma série contínua de desastres, porque até as menores coisas te deixam louco. Tudo é interpretado como um drama, como sendo terrível.
Ou você pode aprender a se fechar e a não sentir nada, e então passa pela vida como um zumbi.
BBC News Brasil - Completamos cinco anos do início da pandemia de covid-19. Saímos dela mais traumatizados?
van der Kolk - Não existe "nós". A pandemia não foi um trauma para mim: moro em uma casa bonita em volta da natureza, formei uma bolha com alguns amigos e cozinhamos refeições fantásticas, fizemos muita música, atendi algumas consultas online.
Meus filhos moram na Irlanda e caminharam todos os dias com seus filhos, foi lindo para a vida familiar, não um trauma para eles.
Mas para profissionais que estavam cuidando de pacientes moribundos em um hospital, que não podiam ir para casa porque tinham medo de contaminar seus filhos ou pais, para eles pode ter sido um trauma.
BBC News Brasil - Então o trauma é uma experiência puramente individual? Não há trauma coletivo?
van der Kolk - Você pode ter um trauma coletivo se toda a sua comunidade for bombardeada e despedaçada. Certamente foi um trauma coletivo o que está acontecendo com os palestinos bombardeados exaustivamente.
BBC News Brasil - O trauma é mais prevalente em populações de países pobres?
van der Kolk - As coisas não estão muito boas nos EUA, mas o Brasil e a Índia estão muito piores e a África Subsaariana está pior ainda. Então, há países no mundo onde o trauma é impressionantemente prevalente. Mas mesmo em lugares como Noruega, Dinamarca e Alemanha, que são sociedades muito bem organizadas, o trauma é bastante comum.
BBC News Brasil - Em São Paulo, houve um estudo recente sobre TEPT que relatou que, entre os gatilhos mais comuns, estavam testemunhar alguém sendo ferido ou morto e ser roubado ou ameaçado com uma arma. Como viver em sociedades com altas taxas de violência urbana pode impactar a saúde mental e a exposição a traumas?
van der Kolk - Ver alguém ser morto é, de fato, uma situação potencialmente traumática. Por isso é tão importante viver em uma sociedade onde as pessoas possam estar seguras.
No Brasil, é realmente chocante o nível de violência que está sendo tolerado. E as pessoas aceitam viver em comunidades cercadas, com seguranças ao redor delas para manter as pessoas violentas do lado de fora, sem de fato fazer algo por essas pessoas que se tornaram tão violentas.
BBC News Brasil - Muita gente recorre à psicoterapia ou aos antidepressivos para lidar com problemas psicológicos em geral, mas você diz que eles não funcionam muito bem para o tratamento de traumas. Por quê?
van der Kolk - Esses medicamentos certamente não funcionam muito bem para o trauma. Sabemos disso. Já a psicoterapia pode ser útil particularmente para quem sofreu violência familiar. Se o trauma está na sua família, você não tem permissão para falar sobre isso e as pessoas negam o que está acontecendo, ser capaz de falar sobre o que está escondido é muito importante.
Reconhecer a realidade da sua vida — e ter alguém dizendo: "Sinto muito pelo que aconteceu com você" — faz uma grande diferença.
BBC News Brasil - O tipo de tratamento que funciona melhor depende do que causa o trauma?
van der Kolk - É uma combinação de coisas. A resposta empática é sempre útil. Mas, por exemplo, depois de um desastre natural, não há segredos. Não há vergonha em relação ao que aconteceu. Simplesmente aconteceu.
Nesse caso, a melhor forma de ajudar pode não ser a psicoterapia, mas tornar-se parte de uma equipe de trabalho que auxilie na reconstrução das casas. Esse seria um tratamento do trauma.
BBC News Brasil - Quais são suas recomendações para pessoas que passaram por experiências traumáticas? O que elas podem fazer para obter alívio?
van der Kolk - Acho que elas devem falar sobre o tema e, definitivamente, conversar com outras pessoas que passaram por coisas semelhantes.
Foi assim que comecei meus estudos neste campo do trauma: fazíamos psicoterapia em grupo porque não havia especialistas.
Os especialistas eram as próprias pessoas que tiveram experiências semelhantes, e nós as reunimos para que conversassem entre si e pudessem dizer: "Sabe, eu fiz isso e foi útil para mim" ou "Olha, às vezes eu acordo no meio da noite. Você pode me ligar de madrugada se estiver com medo".
Era um formato parecido com os Alcoólicos Anônimos, onde as pessoas serviam de apoio umas para as outras.
BBC News Brasil - A cultura brasileira inclui algumas práticas culturais que usam o corpo, como a capoeira e o carnaval. Essas tradições podem ser uma proteção contra traumas ou ajudar no processo de cura?
van der Kolk - Minha sensação é que cada cultura desenvolveu suas maneiras de lidar com traumas. Talvez, quanto mais trauma você tem, mais você desenvolve essas práticas culturais.
Pode ser que a capoeira, o samba e todas essas coisas que vocês desenvolveram no Brasil sejam de fato métodos muito bons para acalmar seu corpo e mantê-lo sob controle.
Inclusive eu venho encorajando colegas brasileiros a estudar a capoeira como um tratamento para traumas.
BBC News Brasil - Você está fazendo uma pesquisa com MDMA para recuperação de traumas. Quais são os resultados até agora?
van der Kolk - Passei 50 anos estudando esse tema e pesquisei mais métodos diferentes do que qualquer outra pessoa viva.
Nosso estudo com MDMA foi o mais interessante da minha vida, porque vimos resultados mais expressivos do que com qualquer outra coisa.
Mas é importante dizer que foi um estudo feito com muito cuidado, onde prestamos uma enorme atenção ao cenário, criamos um relacionamento com as pessoas que tratamos e realmente cuidamos muito bem delas enquanto tudo acontecia.
Com isso, vimos resultados espetacularmente bons.
O temperamento dos pacientes mudou, a atitude deles em relação à vida mudou, sua capacidade de fazer as coisas mudou drasticamente.
A preocupação que tenho é que, vivendo em uma sociedade capitalista, imagino que as pessoas começarão a usar essas drogas descuidadamente e a distribuí-las sem o ambiente terapêutico e o auxílio terapêutico que é necessário.
E isso é extremamente perigoso, porque você pode explodir a mente de uma pessoa. Com psicodélicos, muitas vezes surgem situações muito dolorosas e difíceis.
Você precisa ter alguém te acompanhando, alguém que esteja muito atento.