O macacão azul marinho do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) está pendurado em um cabide do lado de fora da base. É uma das mudanças impostas pela necessidade redobrada de cuidado em tempos de coronavírus. Mudanças essas que se estendem ao plástico que agora envolve a parte interna da ambulância e facilita a limpeza após o atendimento de casos suspeitos, e ao uso de escudos faciais, máscaras e aventais impermeáveis que emprestam um figurino de drama ao já dramático cenário da pandemia.
As certidões de óbito timbradas e numeradas ainda a serem preenchidas, cada uma com as suas três vias (uma de cor branca, outra rosa e outra amarela), e as mortalhas (duas para cada corpo) dão a medida do que vem sendo os plantões dos socorristas na cidade de São Paulo. Os ouvidos da equipe são treinados para entender uma linguagem que a um leigo não passa de um chiado recheado de códigos que vêm de dois rádios. Do chiado, é importante estar atento ao número da ambulância (se for a sua, já comece a se preparar para sair) e o que esperar quanto às condições de quem está pedindo o socorro emergencial.
As orientações são dadas por uma central. No último mês, a atenção especial tem sido para o código 36, que indica insuficiência respiratória. Se ele vier acompanhado da letra delta, o quadro é grave e precisa de assistência imediata. A combinação do número e da letra tem levado a uma associação imediata: suspeita de covid-19. Foram 5.998 chamados nestas condições nos últimos 60 dias, segundo a Prefeitura, o equivalente a cem atendimentos diários.
O Estado acompanhou nesta semana um plantão em uma base da cidade. Lá, a reportagem conversou com um médico com mais de uma década de experiência em atendimento pré-hospitalar. A noite e a madrugada acabaram se mostrando surpreendentemente calmas principalmente se comparadas aos plantões anteriores do mês de abril. Foram dias que, segundo se recorda o profissional, a atribuição quase exclusiva era verificar óbitos em residências da cidade, boa parte deles com alguma suspeita de coronavírus. Em 24 horas, não sobravam cinco minutos para descansar.
Nesta semana, a Prefeitura informou que contratará equipes específicas para fazer esse serviço, voltando a deixar as ambulâncias para atuar nos atendimentos urgentes, como pediam os funcionários. "Não tinha cabimento tirar recurso do atendimento aos vivos", disse um funcionário.
Ao longo do último mês, esse médico, que terá a identidade preservada a seu pedido, percebeu uma intensificação do coronavírus nas periferias e entrou nas casas das vítimas, de onde saía com frequência após deixar com os parentes uma declaração de óbito. Parte do que ele viu nessas visitas e a sua percepção sobre a doença na cidade pode ser lido no depoimento abaixo, que foi dado enquanto aguardava o próximo chamado:
"Lembro bem a última verificação de óbito que fiz. Foi em Cidade Ademar (na zona sul de São Paulo), um lugar pobre, pobre, pobre. Chegamos na beira da casa, do barraco, na verdade. A vítima vinha há quatro dias com tosse e febre. De manhã, não quis comer e, quando foram ver no início da tarde, estava morta. Um homem com cerca de 40 anos com uma deficiência mental. 'Mas vocês não levaram ele para o hospital?', perguntei. 'A gente não levou porque todo mundo que vai no hospital fala que não tem como fazer o exame, que é para voltar para casa. Ele não estava tão ruim, mas de uma hora para a outra morreu', me disseram lá.
As pessoas já passaram por essa experiência alguma vez na vida de ter um pouco de tosse, de febre e dor no corpo. Parece que é só mais uma gripe mesmo. Só que não é. É uma gripe com comportamento totalmente diferente e muito traiçoeiro. Para determinadas pessoas, ela vai matar.
Entrei para ver. Era um barraco com um cômodo daqueles tipos que se estendem para dentro. Um quarto com cinco camas. Uma janela para o fundo, que era uma área de serviço. A tia, que cuidava do homem, estava deitada no sofá com uma respiração difícil. 'Vocês viram uma pessoa morrer, levem essa mulher agora para o hospital', falei para eles. 'Estou bem, doutor. Não vou, não'. Ela não estava bem, dava para perceber pela respiração. Arrumaram um carro para levá-la a uma unidade de saúde lá perto, mas ela não queria ir. O irmão da vítima também estava na casa e ficava tossindo, tossindo e tossindo. E as pessoas entrando e saindo daquele ambiente todo contaminado como se aquilo fosse normal.
Como é normal isso tudo? Como que morrer é normal? Mas acredito que tem a ver com o quanto de sofrimento essas pessoas carregam na vida. Essa talvez seja só mais uma etapa da vida que é difícil para eles. É difícil acordar cedo, se arriscar no ponto de ônibus de madrugada, conviver com a rotina da violência nas periferias. A morte faz parte do cotidiano de quem mora na periferia. A morte de gente que não era para morrer, seja por violência ou porque não teve acesso a um bom serviço de saúde. A sociedade convive com valores diferentes em Cidade Ademar em comparação a Higienópolis, valores fundamentais como o direito à vida. Quando fui declarar óbitos nas áreas mais periféricas é que percebi como a realidade da epidemia é cruel.
Ainda assim, a família te recebe bem, mas você tem que acessar a vítima no ambiente onde foi a morte para ver se não tem nada ali que sugira uma morte violenta. Tem que desnudar a pessoa, tirar toda a roupa para ver se aquela morte não foi por uma causa externa. O próprio processo de desnudar a pessoa e examinar toda a intimidade desse corpo não é uma coisa fácil. A família nunca presenciou e está sendo convidada a presenciar porque precisamos que alguém da família testemunhe que não estamos fazendo uma coisa não ética. É um exame muito completo, minucioso.
Depois, há a coleta do exame de covid, que parece uma coisa boba, por um cotonete no nariz e um outro cotonete na boca, mas é uma invasão naquele corpo que faleceu. Nem sempre a coleta da parte de trás da boca é fácil. A morte pode ter acontecido há oito, dez horas e já há rigidez. Tem que forçar para colocar o cotonete dentro da boca.
Então, vamos preparar o corpo. Toda aquela roupa que foi cortada - não tiramos a roupa, cortamos a roupa - e que ficou aberta ao redor da vítima, vamos usar o lençol em que ela já estava para dobrar e um segundo lençol para envolver. É colocada dentro da primeira mortalha, tem um zíper que fecha, que termina de ser fechado na cabeça. Deixamos sempre o rosto um pouco de fora para oferecer à família um momento de oração. Velar por cinco minutos. Temos que colocar uma segunda mortalha depois de higienizar a primeira e aí fechar definitivamente. A família não vai ter mais acesso a essa pessoa, não pode mais mexer ali.
Quando chegamos ao local para casos como esse, a família está esperando às vezes por horas, o que também é uma coisa muito desgastante. Você tem uma perda de um ente da família e fica esperando por horas. Está dependente do Estado, não tem o que fazer, não tem como alterar esse curso. Tem que se conformar e esperar.
O Estado chega, o Samu é um representante da saúde do Estado chegando lá para tentar dar uma solução para o que não teve solução antes, para a carência anterior, não foi competente para evitar essa morte. De alguma forma, depois da morte o Estado tem que ir lá e as pessoas ainda agradecem. O Estado não conseguiu evitar aquela morte que é uma morte evitável. Morte por covid é uma morte evitável na grande maioria das vezes. Entuba, cuida direito. Não vai salvar todos, mas consegue reduzir muito a mortalidade.
Sentimos a cada plantão que o problema da epidemia está se agravando. Acho que a situação aqui não tem porque ser menos ruim do que foi na Itália, na Espanha, na França nem nos Estados Unidos. Não temos as condições que a Alemanha tem seja de leito de UTI ou de capacidade de fazer testes para coronavírus. Nossas condições não são nem de longe parecidas com o que tem se visto na Europa. Nossas condições sanitárias são piores, a densidade demográfica nas periferias é muito alta. Então, o que nós estamos imaginando é que a nossa situação vai ser tão dramática quanto foi nesses locais."