Coronavírus: como nasce e se espalha um boato

A BBC rastreou o caminho do boato do 'Tio com mestrado', que cruzou fronteiras com desinformação sobre a covid-19.

23 mar 2020 - 16h23
Graphic of social media and virus
Graphic of social media and virus
Foto: BBC News Brasil

Em meio à pandemia de coronavírus, a BBC rastreou mais uma coisa que cruzou fronteiras e se alastrou rapidamente pelo mundo: um entre os muitos boatos e informações equivocadas que estão circulando pela internet.

Trata-se do boato apelidado de "Tio com mestrado" ("Uncle with master's degree", em inglês), que viralizou no perfil de Facebook de um britânico de 84 anos e chegou ao Instagram de um apresentador de TV em Gana, passando por grupos de católicos indianos e fóruns dedicados a discutir o coronavírus.

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Este é apenas um dos vários boatos e notícias falsas circulando sobre o coronavírus — e eles reproduzem desde dicas de saúde desonestas a especulações sobre planos do governo.

À primeira vista, o boato do "Tio com mestrado" tem uma aparência legítima, pois as informações são atribuídas a uma fonte supostamente confiável: um médico experiente com ótima formação.

'Post zero'

A versão mais antiga em inglês deste boato que encontramos foi postada por uma usuária do Facebook em 7 de fevereiro em um grupo chamado Happy People, que tem quase 2.000 membros.

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A autora do post compartilhou informações atribuídas ao tio "do meu colega de classe, que fez mestrado e trabalha no Hospital de Shenzhen (na China)."

"Ele está sendo transferido para estudar o vírus da pneumonia de Wuhan. Ele acabou de me ligar e sugerir que eu contasse algumas coisas para meus amigos..."

As dicas que se seguem são enganosas ou erradas. Diz-se, por exemplo, que uma pessoa não fica doente com o vírus caso tenha coriza.

Início do post original, que traz informações equivocadas sobre o covid-19
Foto: Facebook / BBC News Brasil

Dedicadas à checagem de fatos, as organizações Full Fact e Snopes, citando fontes como os Centros de Controle de Doenças dos EUA (CDC) e publicações da revista médica The Lancet, afirmaram que o corrimento nasal é incomum mas não impossível em pacientes com coronavírus.

O post no grupo Happy People também incentiva as pessoas a "beber mais água quente" e "evitar beber gelo". Atualmente, não há evidências de que essas coisas ajudem a prevenir ou curar o coronavírus.

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Tentamos entrar em contato com a autora da postagem, mas ela não respondeu.

O boato se espalha

O conteúdo dessa postagem ganhou força vários dias depois, quando compartilhada por um homem chamado Glen na Índia. Ele compartilhou a postagem em vários grupos diferentes do Facebook, incluindo muitos reunindo católicos indianos.

A nova postagem acrescentou coisas ao post original. Embora o novo post mencionasse um tio "que fez mestrado", obviamente Glen não recebeu um telefonema de um tio.

O homem dizia que apenas "encaminhou algo que recebeu".

Alguns conselhos embasados por recomendações de órgãos competentes, como a importância de se lavar as mãos, foram acrescentados.

Repostagem de homem chamado Glen deu novo impulso à desinformação
Foto: Facebook / BBC News Brasil

Mas a nova versão também incluiu algumas informações infundadas.

Por exemplo, descrevia em detalhes muito específicos como a doença progride. Os cientistas, no entanto, reconhecem que, hoje, ainda não é possível definir um padrão exato de progressão da covid-19. Os sintomas e a gravidade da infecção pelo novo coronavírus são altamente variáveis.

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O post viraliza

Durante várias semanas, esse boato ficou restrito a um ou outro grupo relativamente menor. Mas em 27 de fevereiro, um dono de uma galeria de arte aposentado de 84 anos o transformou em um viral.

O post de Peter era semelhante ao de Glen, mas também incluiu novas informações, muitas erradas e enganosas. A disseminação do post do britânico também chamou a atenção de agências de checagem de fatos, como a Full Fact e Snopes.

Por exemplo, uma alegação no post era a de que o vírus "odeia o Sol" — mas não há evidências hoje de que a luz solar mate o novo coronavírus. E há muitos e crescentes casos da doença em países de clima quente e ensolarado, como o Brasil.

Perfil de Facebook de Peter, que ajudou a viralizar post errado sobre o coronavírus
Foto: Facebook / BBC News Brasil

Outras partes do post eram verdadeiras — como, mais uma vez, a recomendação para lavar as mãos.

Peter, que vive no sul da Inglaterra, editou posteriormente as partes enganosas de seu post checadas por agências verificadoras. Mas, até ali, o post já havia sido compartilhado quase 350.000 vezes.

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Contatado pela BBC, Peter não disse especificamente onde obteve as informações do post, mas disse que confiava em sua fonte na época.

"Acreditava que realmente se tratava de um parente desse cientista, um médico que havia fornecido todos esses fatos e números", afirmou em entrevista por telefone.

Peter defende que estava tentando ajudar as pessoas a se proteger.

"Tento ser o mais factual possível. E, se eu for corrigido, ou se descobrir que disse algo incorretamente, peço desculpas e faço as alterações."

O boato passa por mutações

Apesar das edições posteriores feitas por Peter após checagens de fatos, sua versão original se espalhou e foi modificada. Algumas foram turbinadas com ainda mais informações enganosas.

A suposta fonte das recomendações também mudou. Em algumas versões, o "tio com mestrado" se tornou "membro do conselho do hospital de Stanford"; houve atribuições também a "médicos japoneses" e "especialistas de Taiwan".

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Os posts citando Stanford — há pelo menos 100 deles apenas no Facebook — se espalharam tão rapidamente que a universidade emitiu uma declaração negando qualquer relação com o conteúdo compartilhado.

Reprodução de outra versão do post em diferentes idiomas, incluindo falsas atribuições ao Hospital de Stanford
Foto: Facebook / BBC News Brasil

O boato em novos idiomas

O post então foi ainda mais impulsionado — incluindo compartilhamentos por personalidades, como um apresentador de TV ganês e um ator americano, mas também por dezenas de pessoas comuns.

Uma internauta americana, April, postou uma versão do boato em um grupo no Facebook chamado Coronavirus Updates ("Atualizações sobre o coronavírus", em tradução livre). Sua postagem atribuía as informações ao "sobrinho de um amigo nas forças armadas".

Contactada pela reportagem através do Facebook Messenger, April disse que viu as informações pela primeira vez na postagem de um amigo, mas depois percebeu que "tudo o que ele fez foi copiar e colar, como eu fiz. Parece que a maioria delas é falsa."

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"Uso o Facebook o dia todo, todos os dias", diz April. "Já encontrei muitas informações úteis... Não assisto às notícias (da imprensa tradicional)."

Começa então uma nova etapa da viralização do boato: o post foi traduzido para vários idiomas, incluindo árabe, vietnamita, francês, espanhol e italiano.

Mais informações falsas são adicionadas — como o conselho para que se faça um "autoexame" de coronavírus todas as manhãs, prendendo a respiração por mais de 10 segundos. Não há evidências de que isto funcione como um diagnóstico ou indicação sobre a infecção.

Tipo de viral: copia e cola

Entre os tipos de boatos e notícias falsas, o "Tio com mestrado" pode ser classificado como "copia e cola" — em vez de o usuário usar ferramentas de replicação direta, como "compartilhar" e "retuitar", o material é colado manualmente e às vezes alterado.

Isso faz com que cada post pareça autêntico, talvez escrito por alguém que você conhece, aumentando assim as chances de você confiar nele.

Como existem muitas postagens "originais", também torna difícil para as redes sociais e as pessoas que as estudam acompanhar exatamente até que ponto essas postagens se espalharam.

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Sabemos que a única postagem de Peter foi compartilhada centenas de milhares de vezes — mas é uma tarefa colossal, talvez impossível, calcular quantas pessoas viram as variações nascidas a partir do "Tio com mestrado" no Facebook e outras redes sociais.

O que o Facebook está fazendo

Em relação às postagens que não foram editadas nem tiveram as informações enganosas retiradas, um porta-voz do Facebook afirmou à BBC: "Essas postagens violam nossas políticas e foram removidas".

"Estamos trabalhando continuamente para remover desinformação prejudicial sobre o coronavírus", disse o porta-voz.

"O Facebook também fez parceria com o NHS (serviço público de saúde britânico) para conectar as pessoas às mais recentes orientações oficiais do NHS sobre o coronavírus — tanto diretamente em seus feeds quanto em pesquisas sobre o assunto".

Postagem, essa sim com informações confiáveis, da Organização Mundial da Saúde
Foto: OMS / BBC News Brasil

A empresa também está inserindo os textos das postagens em sistemas automatizados para detectar replicações.

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Gigantes da tecnologia como Facebook, Microsoft, Google, Linkedin, Reddit, Twitter e YouTube se comprometeram publicamente a trabalhar juntos para combater a desinformação sobre a nova doença.

Os profissionais especializados na checagem de fatos dizem que todos temos um papel a cumprir — começando por pensar antes de compartilhar.

"Pare por um segundo. Dê uma olhada. Veja se você pode descobrir mais informações sobre o assunto", diz Claire Milne, da Full Fact.

"Descubra se está correto ou se você está compartilhando algo com seus amigos e familiares que pode ser enganoso e prejudicial."

Se a fonte parecer vaga ou a postagem for uma longa lista ou tópico repleto de informações, compare as informações ali contidas com as de fontes conhecidas e confiáveis.

Mistura de verdade e bobagem

As pessoas que compartilharam o post do "Tio com mestrado" geralmente não são mal intencionadas — muitas vezes, acreditam que estão passando fatos confiáveis à frente. Ou podem não ter certeza sobre a veracidade das informações, mas acreditam que "em todo caso" podem ajudar.

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Inclusive, é mais fácil ser enganado se houver medo e ansiedade.

O post do "Tio" também é uma mistura de verdade e bobagem, o que o torna mais pernicioso e fácil de espalhar.

"Quando coisas (falsas) são misturadas com coisas que parecem razoáveis ou verdadeiras, isso confunde as pessoas e, em alguns casos, as leva a pensar que o restante dos conselhos também é legítimo", diz Kasprak, da Snopes.

Três perguntas a se fazer antes de compartilhar

1 - A fonte da informação parece vaga ou de um amigo de um amigo que você não consegue localizar? Vá fundo na busca de onde a história veio — ou não a compartilhe. Só porque o material foi enviado por alguém em quem você confia, não significa que esta pessoa recebeu informações de alguém que realmente conhece.

2 - Todas as informações parecem verdadeiras? Quando há listas longas, é fácil acreditar em tudo, apenas porque um núcleo de conselhos está correto — esse pode ser o caso.

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3 - O conteúdo desperta emoções — te deixa mais feliz, zangado ou assustado? A desinformação muitas vezes se torna viral porque afeta nossas emoções, então isso é um sinal de que pode não ser verdade. Mais uma vez, procure um pouco mais. Descobertas científicas, conselhos sobre prevenção e medidas públicas virão de fontes confiáveis.

Fontes: Full Fact, Snopes, BBC Monitoring

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