Considerada pelo presidente Jair Bolsonaro como arma no combate à pandemia do coronavírus e pivô da saída de Nelson Teich do comando do Ministério da Saúde na última sexta-feira (15), o medicamento cloroquina não tem eficácia e segurança cientificamente comprovadas contra a covid-19. De acordo com as evidências mais sólidas que existem até agora a cloroquina e seu derivado, hidroxicloroquina, não exercem influência na mortalidade de pacientes por covid-19.
Assim como outras substâncias, a cloroquina e a hidroxicloroquina são algumas entre várias que estão sendo testadas agora contra a covid-19, que já matou mais de 300 mil pessoas no mundo inteiro.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) não reconhece nenhum medicamento ou vacina para a covid-19.
O Comitê Científico e a Diretoria da Sociedade Brasileira de Imunologia divulgou um documento em que afirma que "ainda é precoce a recomendação de uso deste medicamento na covid-19, visto que diferentes estudos mostram não haver benefícios para os pacientes que utilizaram hidroxicloroquina". Já o Conselho Federal de Medicina condiciona seu uso ao critério médico e consentimento do paciente.
Atualmente, no Brasil, o uso é autorizado só em pacientes em estado crítico e moderado já internados em hospitais, quando médico e paciente concordam com o uso. Mas o presidente, Jair Bolsonaro, vinha defendendo o uso do medicamento e pressionara Teich para autorizar o uso de cloroquina em pacientes em estágio inicial da covid-19 no Brasil. Apoiadores do presidente também têm cobrado a liberação imediata do medicamento.
Teich afirmou que o medicamento era uma incerteza, e acabou se demitindo. Luiz Henrique Mandetta, ministro antes dele, disse ao jornal Folha de S.Paulo, em entrevista publicada na segunda-feira (18), que a ampliação do uso de cloroquina para pacientes com quadro leve do novo coronavírus pode elevar a pressão por vagas em centros de terapia intensiva e provocar mortes em casa por arritmia.
Também na segunda, o presidente americano, Donald Trump, disse estar tomando o medicamento como prevenção contra o coronavírus, mesmo sem evidências científicas para tanto.
Quais são os riscos do uso?
A cloroquina é usada faz algum tempo para prevenir e tratar a malária, enquanto a hidroxicloroquina já foi usada para tratar a malária e hoje é usada para tratar artrite reumatoide e alguns sintomas de lupus, além de outras doenças autoimunes.
"Em uma pandemia, admite-se o que chamamos de reposicionamento de medicamentos. Um medicamento tradicionalmente usado em outras doenças pode ser usado em outro cenário", explica Ana Cristina Simões e Silva, professora titular do departamento de pediatria da Universidade Federal de Minas Gerais e pesquisadora da CNPQ que fez, com colegas, uma revisão de literatura sobre os ensaios clínicos da cloroquina para a covid-19.
"O que não é correto é pessoas saírem comprando sem nenhum controle. O medicamento só deve ser usado no hospital, monitorado por médicos."
Por já serem usados para outras doenças, os efeitos adversos clássicos dos medicamentos, quando não associados a covid-19, já são conhecidos. Os mais relevantes são relacionados ao sistema cardiovascular — os medicamentos podem acelerar o ritmo do coração.
Segundo o documento da Sociedade Brasileira de Infectologia, outros efeitos adversos são retinopatias, hipoglicemia grave e toxidade cardíaca. Por isso, é "exigido contínuo monitoramento médico dos indivíduos em uso da cloroquina ou hidroxicloroquina". Outros efeitos colaterais possíveis são diarreia, náusea, mudanças de humor e feridas na pele.
"Sem prescrição e acompanhamento médico, a pessoa que toma o medicamento pode correr riscos. Só um médico pode monitorar os efeitos colaterais e a quantidade receitada. Isso é muito importante", diz à BBC News Brasil o médico intensivista italiano Andrea Cortegiani. "Os remédios só podem ser tomados sob supervisão médica."
Além disso, diz ele, para decidir se um medicamento deve ser prescrito para determinada situação, o órgão regulatório do país segue evidências, e médicos devem seguir o órgão regulatório.
Por fim, apesar dos efeitos colaterais clássicos serem conhecidos, pouco se sabe ainda sobre os efeitos colaterais em pacientes com covid-19, e dos efeitos adversos dos medicamentos usados em associação com outros, como o antibiótico azitromicina, para pessoas doentes por causa do vírus.
Alguns estudos já publicados
A hidroxicloroquina foi vista com esperança como um possível tratamento para o coronavírus em um primeiro momento por causa de um estudo in vitro feito na China cujos resultados haviam sido positivos. Isso significa que o medicamento foi testado com sucesso em laboratório, em cultura de células. A pesquisa concluiu que o medicamento inibiu a entrada do vírus nas células e bloqueou o transporte do vírus entre organelas das células (endossomos e endolisossomos) o que, segundo nota técnica da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) sobre o estudo, parece ser a etapa determinante para a liberação do genoma viral nas células no caso do Sars-CoV-2.
Mas o resultado obtido em um estudo em laboratório não se traduz necessariamente quando aplicado em humanos. E, para concluir de fato se é eficaz e seguro nas pessoas, é preciso fazer um estudo clínico.
Depois disso, outro estudo publicado na França, feito por cientistas da Universidade de Medicina de Marselha, anunciou resultados positivos. A pesquisa analisou o uso da hidroxicloroquina associada ao uso do antibiótico azitromicina, e concluiu que o tratamento com a hidroxicloroquina era associado à diminuição ou desaparição da carga viral em pacientes com covid-19, e que seu efeito era reforçado pela azitromicina.
Mas a pesquisa foi desacreditada pela comunidade científica. Houve críticas ao número reduzido de pacientes (apenas 36), à comparação pouco rigorosa entre grupos de pacientes e a maneira como os resultados foram medidos. O estudo não analisou se o paciente melhorou, piorou ou morreu, mas, sim, por quanto tempo o vírus era detectado em seu corpo. Além disso, a pesquisa foi aceita para a publicação em apenas 24 horas.
Outros estudos menores também foram publicados, como um na China, randomizado e com grupos de controle, e 62 pacientes. Pacientes que recebiam hidroxicloroquina, segundo a pesquisa, tiveram períodos menores de febre e tosse. A quantidade de pessoas no estudo é considerada pequena (estudos mais sólidos em geral têm centenas ou milhares de pacientes), e nenhum deles estava em estágio grave. O estudo tampouco foi revisado por pares.
No Brasil, um estudo preliminar sobre o uso de cloroquina para tratar pacientes com sintomas de covid-19 foi interrompido depois que 11 pessoas morreram. Segundo os pesquisadores, altas doses do medicamento poderiam levar a quadros severos de arritmia ou batimentos cardíacos irregulares. A pesquisa preliminar foi divulgada no medRxiv, um servidor virtual de informações da área da saúde. Mais tarde, no fim de abril, uma versão revisada por pares foi publicada na revista Jama (Journal of American Medical Association), um importante periódico do meio científico. Os cientistas recomendaram que altas doses de cloroquina não deveriam ser adotadas para pacientes em estágio grave de covid-19.
A FDA, a Anvisa americana, alertou contra o uso de hidroxicloroquina ou cloroquina fora do hospital ou de ensaios clínicos por causa de "problemas de arritmia". "Não há provas de que hidroxicloroquina e cloroquina sejam seguras ou eficazes para tratar e prevenir a covil-19", diz comunicado do órgão.
E, por fim, duas grandes pesquisas recentes foram publicadas em periódicos científicos, e as duas jogaram um balde de água fria na hipótese de que a hidroxicloroquina poderia ser uma boa solução para a covid-19. Ambas foram observacionais — em outras palavras, feitas com um olhar posterior aos dados de pacientes tratados e, portanto, com poder científico menor que ensaios clínicos.
"Nos estudos observacionais, você volta no passado e verifica o que aconteceu, ou então vai acompanhando casos sem fazer intervenções", explica Simões e Silva. " Esses estudos têm poder científico um pouco menor. Não permitem concluir se um remédio é benéfico ou não. Os estudos sugerem, e daí tem que fazer depois um ensaio clínico para ter o grau de evidência necessário."
De qualquer forma, os dois estudos foram com um número elevado de pacientes e feito com revisão por pares (submeter o trabalho científico ao escrutínio de um ou mais especialistas do mesmo escalão que os autores) de respeitados periódicos científicos, e, portanto, são mais robustos do que os estudos menores publicados até então.
Uma das pesquisas foi publicada na segunda (11) na revista Jama (Journal of the American Medical Association). O estudo com 1.438 pacientes não encontrou redução de mortalidade por covid-19 nas pessoas medicadas com hidroxicloroquina. A pesquisa analisou dados de pacientes internados entre 15 de março e 24 de abril em hospitais da região metropolitana de Nova York.
O outro estudo foi publicado no The New England Journal of Medicine, e examinou 1.376 pacientes que ficaram internados por mais de 24 horas em estados moderados ou graves da doença. Do total, 58,9% foram medicados com a hidroxicloroquina, e o restante não. A pesquisa apontou que não havia evidências de que o uso da hidroxicloroquina influenciou na redução de mortes ou intubações.
"Ensaios randomizados e controlados de hidroxicloroquina com pacientes com covid-19 são necessários", concluiu a pesquisa.
Há tantos estudos e confusão sobre eles, que um levantamento feito por pesquisadores dos Estados Unidos e Canadá analisou justamente os estudos que já existem sobre a eficácia e segurança dos medicamentos contra a covid-19. Publicado no Journal of Clinical Epidemiology, o trabalho analisou 12 pesquisas já publicadas. Concluiu que a metodologia usada até agora tem sido "muito pobre".
"A maior parte dos dados divulgados ou publicados até agora em cloroquina ou hidroxicloroquina, e as pesquisas sobre covid-19 em geral, são imprecisas e correm um risco alto de viés em suas estimativas de efeito. Essa é nossa preocupação", diz o estudo.
Segundo o levantamento, a demanda massiva por evidências de tratamento para uma doença nova como a covid-19 pode estar afetando, de modo não intencional, a conduta dos estudos científicos. Também pode estar afetando os processos de publicação e de revisão por pares.
"Entendemos as barreiras para executar pesquisas rigorosas quando os sistemas de saúde estão saturados com uma nova doença. No entanto, uma situação de emergência de pandemia não transforma métodos e dados com problemas em resultados confiáveis. A pesquisa clínica robusta e comparativa que é necessária para tomar decisões informadas e baseadas em evidências segue ausente."
Por que não há estudos com conclusão definitiva ainda?
O motivo pela falta de evidências sobre a eficácia e segurança dos medicamentos para a covid-19 é a metodologia das pesquisas publicadas até agora.
"Os estudos que temos até agora são pequenos. Alguns sugerem a eficácia do medicamento, e outros, o contrário, mostram até efeitos colaterais graves", diz Ana Cristina Simões e Silva, a professora da UFMG.
"Ainda não temos um estudo de grande porte, confiável, que dê respaldo ou conclusão sobre o medicamento para essa doença. O desenho do estudo é extremamente importante para sua conclusão. Os mais confiáveis e bem desenhados ainda estão em andamento, sem resultados publicados."
Por enquanto, diz Cortegiani, o médico intensivista e pesquisador italiano, o que podemos dizer é que os dados que temos agora são melhores do que tínhamos antes, mas ainda não são conclusivos. Em março, ele publicou uma pesquisa resumindo as evidências que se tinha até o momento para a cloroquina como tratamento para a covid-19.
Hoje, "sabemos que talvez o tratamento com hidroxicloroquina não seja capaz de influenciar a mortalidade de pacientes por covid-19, e que possivelmente ministrar o medicamento com [o antibiótico] azitromicina pode causar maiores danos".
Embora as evidências mais confiáveis até agora apontem para essa conclusão, isso ainda pode mudar com novas pesquisas, ressalta ele.
Estudos com metodologia mais completa ainda devem ser publicados. Há mais de 150 ensaios científicos registrados em diversos bancos de dados internacionais envolvendo cloroquina e hidroxicloroquina, sozinhos ou com outros medicamentos como tratamento contra a covid-19.
Nenhuma das pesquisas publicadas até agora atingiu o gold standard (o "padrão ouro", no jargão científico) para demonstrar a segurança e eficácia de um medicamento.
Esse padrão exige um ensaio clínico randomizado, ou seja, com integrantes escolhidos de forma aleatória e com variáveis controladas, e feito em grande escala. Também há outras metodologias que conferem mais legitimidade a um estudo: o duplo-cego, quando nem o paciente nem o examinador sabem o que está sendo usado como variável, e os grupos de controle, em que se examina uma variável por vez — usando, por exemplo, um tratamento padrão, um placebo ou nenhum tratamento, em diferentes grupos. "Isso torna o estudo mais robusto e a conclusão fica mais confiável", diz Simões e Silva.
Ter grupos de controle é importante para poder comparar resultados de quem recebeu tratamento com os medicamentos, e assim aferir sua eficácia e segurança. "Se você tiver efeitos adversos maiores no grupo que recebeu o medicamento em relação ao grupo que não recebeu, você consegue medir a segurança das drogas testadas", explica Cortegiani.
Um ensaio clínico randomizado é importante porque, do contrário, você não terá certeza que qualquer efeito é derivado do tratamento, diz a microbiologista americana-holandesa Elisabeth Bik, consultora em integridade científica que se especializou em analisar publicações científicas.
E Simões e Silva explica por que é necessário ter um tamanho amostral grande, de centenas ou milhares de pessoas. "Um tamanho amostral pequeno significa que pode ter tido um viés de seleção, pegando só pacientes com casos leves, por exemplo, que iam melhorar de qualquer jeito."
"Quanto mais pacientes, maior a chance da conclusão ser correta e poder ser generalizada para a população. Tem um poder estatístico maior."
Também é importante que um estudo científico passe por um processo de revisão por pares. Isso consiste em submeter o trabalho científico ao escrutínio de um ou mais especialistas do mesmo escalão que o autor, que fazem comentários ou sugerem a edição do trabalho analisado, com arbitragem do editor da publicação científica. Publicações sem esse processo são vistos com desconfiança por acadêmicos.
"É preciso entender que, sem a revisão por pares, aquela publicação consiste apenas na visão do autor sobre as coisas, sem que outros cientistas tenham lido aquilo", diz Bik.
Além disso, diz ela, "a revisão por pares, que normalmente leva meses, está sendo acelerada". "Todos estão sedentos por conhecimento sobre o coronavírus, mas pular esse processo pode causar mais danos do que o contrário", afirma.
E o fato de que os medicamentos estão no meio de uma disputa política — envolvendo pressão por seu uso feita por presidentes, com no caso do Brasil e dos EUA — não ajuda as pesquisas, segundo um artigo da revista Nature: "Algumas pessoas não querem participar em ensaios clínicos que os obrigariam a abrir mão de tratamentos com cloroquina".
O virologista Jeremy Rossman, professor da Universidade de Kent, no Reino Unido, no entanto, diz que, apesar dos estudos feitos até agora serem pequenos, tiveram uma variedade de ensaios clínicos em diferentes formatos e diferentes países com dados suficientes para provar que a cloroquina não ajuda para a covid-19. "Não só não ajuda, como há um risco."
Ele acha que nem vale a pena fazer ensaios clínicos maiores, e que seria "absolutamente essencial focar nos medicamentos com maior chance de sucesso". "Quanto mais cedo tivermos esses dados, melhor. Precisamos priorizar, e já foi provado que a cloroquina não deve ser prioridade."
Estudos em andamento
De qualquer forma, há, sim, grandes estudos em andamento — e devemos ter uma resposta mais definitiva em breve. Há um grande esforço internacional para verificar se o medicamento é de fato eficiente e seguro contra o coronavírus.
A cloroquina e sua variante estão entre os quatro fármacos que estão sendo estudados em uma iniciativa lançada pela OMS batizada de Solidariedade — e o Brasil faz parte dela, por meio da Fiocruz.
No Brasil, segundo o último relatório da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), há 15 ensaios com cloroquina ou hidroxicloroquina em andamento. Alguns resultados devem sair no fim de maio.
Um dos estudos é do Projeto Coalizão Covid Brasil, liderado pelos hospitais Albert Einstein, Sírio Libanês e HCor, além da Rede Brasileira de Pesquisa em Terapia Intensiva. Entre outros objetivos, o grupo realiza testes clínicos com a cloroquina e a hidroxicloroquina.
A ideia é realizar testes em 70 hospitais pelo país em mais ou menos mil pessoas com diferentes quadros: dos leves aos mais graves, inclusive aqueles que estão na UTI, em uma pesquisa que deve durar entre dois e três meses.
Hospital no Piauí
Apoiadores de Bolsonaro também têm incensado uma iniciativa em Floriano, uma cidade de 60 mil habitantes no Piauí, onde um hospital tem administrado hidroxicloroquina, azitromicina e corticoides de acordo com o estágio da doença. A ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, visitou o município na quinta-feira (14) e reuniu-se com o prefeito da cidade, o secretário municipal de Saúde e médicos.
Segundo o Comprova, projeto jornalístico que verifica desinformação nas redes, o tratamento aplicado no Hospital Regional Tibério Nunes foi aplicado em 15 pessoas, sem grupo de controle (pacientes que não fizeram uso do medicamento para fins científicos de comparação). Não há comparativo ou estudo que indique que a melhora clínica se deu exclusivamente por conta das medicações usadas.
À revista Veja, o secretário de Saúde de Floriano (PI), James Rodrigues, disse ter receio de que os resultados anunciados pelo município no uso da cloroquina se tornem uma "exploração política".
"Nos preocupa muito essa exploração política. Não pode. No Brasil há uma divisão: esquerda é contra a cloroquina e a direita é a favor. Não é assim. As evidências que temos aqui são pequenas. Em vez de ficar com braços cruzados, estamos buscando alternativas", disse à revista.
Para o virologista Rossman, a politização da cloroquina dá às pessoas "falsa esperança", e a sensação de que há um bom tratamento ou um bom medicamento pode fazer com que não tomem as mesmas precauções que tomariam. Também pode fazer com que elas se automediquem, o que é extremamente perigoso, além de zerar o estoque de remédios de quem realmente precisa.
"Há um perigo real em politizar o assunto antes das evidências científicas. Tem havido uma desconexão grande entre as mensagens políticas e o que os dados científicos dizem."